Mostrar mensagens com a etiqueta desafio atreves-te a escrever. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta desafio atreves-te a escrever. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Desafio Atreves-te a Escrever? #Tema 4 | O tesouro


[Desafio promovido pela Vera Barbosa e pela Elisabete Martins de Oliveira.]

 
Tema 4:
 
        O tesouro
 
— Deu-me uma bússola e um mapa. E agora, o que é que eu faço com isto? 
 
— Não fazes nada! — resmungo, com vontade de lhe arrancar aquilo das mãos.

Ainda não consigo acreditar no que está a acontecer. Acabamos de chegar do notário, onde assistimos à leitura do testamento do meu avô. O avô, o homem que eu mais amava nesta vida, que me criou desde pequenina, conseguiu dar-me o primeiro desgosto agora que já não está entre nós.

Deixou-me um envelope com uma carta que já me fez chorar três vezes. Recebi também um envelope dourado. Trazia no interior uma folha A4 com alguns rabiscos. Conseguem acreditar nisto? O meu avô deixou-me uma folha com rabiscos!

E o que é que ele deixou ao paspalho do Joel? Uma bússola e um mapa!

Quem é o Joel?, perguntam vocês.

O Joel é este loiro idiota que se encontra à minha frente. É restaurador de antiguidades, especializado em livros antigos e, há alguns meses, o meu avô contratou-o para trabalhar a tempo inteiro na biblioteca pessoal. O avô era um homem excêntrico e amava livros. Tinha a maior coleção que eu alguma vez vi.

Suponho que fiquei com ciúmes por ele ter passado os últimos meses de vida na companhia do Joel.

Contudo, agora que descobri esta traição, sinto-me mesmo zangada.

Deixou-lhe uma bússola e um mapa? Ainda não consigo acreditar!

— Dá-me cá isso — arranco-lhe o papel da mão.

Analiso a folha. Tem um título escrito com uma letra muito floreada. O Último Tesouro.

Estava a imaginar um mapa do tesouro como aqueles dos livros de aventuras, mas faço uma careta quando vejo umas linhas sem graça nenhuma. A única semelhança com um mapa do tesouro é o “X” desenhado ao centro da página.

Ele aproxima-se de mim, espreitando por cima do meu ombro.

— Deixa-me ver a folha que recebeste — pede, naquela voz gentil que sempre me fez perder as estribeiras.

Passo-lhe o papel, mal-humorada.

Não me interpretem mal, geralmente sou uma joia de moça. Simpática e alegre. Mas tudo em mim se altera quando estou na presença deste imbecil.

— Hum, curioso… — diz ele.

Está pensativo. Deve achar que vai ser capaz de desvendar aqueles rabiscos incompreensíveis.

— Isto não é um mapa — acrescenta.

Reviro os olhos. Até aí já eu tinha chegado.

— Claro que não é um mapa. É um monte de riscos.

— Não. Olha… — aponta para a folha dele, ainda na minha mão. — Parece a planta de uma casa.

O quê? Estão a ver como ele é palerma. Está a alucinar! Onde é que aquilo se parece com a planta de uma casa?

— Não vejo nada… — digo. E desta vez nem sequer estou a contrariá-lo de propósito. De facto, continuo a não ver nada mais que rabiscos.

Ele tira-me a folha das mãos e aproxima-se de uma mesa. Pousa as duas folhas lado a lado. Eu abeiro-me dele.

— Sei que não se parece exatamente com a planta de uma casa. Pelo menos, não uma convencional — explica. — Não temos as divisões tão perfeitas como se fosse desenhado por um arquiteto. Mas eu diria que estes rabiscos do meu papel são os contornos.

Continuo na mesma. Só vejo rabiscos.

— Talvez as duas folhas precisem de ser sobrepostas — sugere. — Tens papel vegetal?

Digo-lhe que sim e afasto-me para procurar o que ele me pediu. Habitualmente não seria tão solícita com ele, mas estou mesmo curiosa por desvendar este enigma que o avô nos deixou.

Assim que encontro o papel, volto para junto dele e fico a vê-lo copiar os desenhos da minha folha. De seguida, coloca a folha de papel vegetal em cima da folha dele e… uau! Que magia foi esta que aconteceu aqui?

Surpreendentemente, ele estava certo. Depois de sobrepor as duas folhas, os desenhos que, isolados, pareciam apenas rabiscos, transformaram-se perante nós. Agora víamos um mapa mais composto, com contornos, pequenas divisões e uma saliência que eu julgava ser uma porta.

— Acho que o teu avô queria que trabalhássemos juntos — diz, sorrindo-me. Formou-se no rosto dele uma daquelas covinhas enervantes. Mas porque é que ele tem de ser tão imbecil e… atraente? — Reconheces isto?

Analiso melhor o desenho.

— Não me parece a planta de uma casa. — Havia qualquer coisa que não me fazia sentido. De repente, abro muito os olhos. Percebi finalmente o que aquilo era. — É a planta da biblioteca!

Ele parece confuso durante três segundos e depois concorda comigo.

— Anda, vamos! — agarra-me na mão e puxa-me em direção à biblioteca do avô.

O meu corpo obedece. Não tenho qualquer voto na matéria, uma vez que me sinto enfeitiçada pelo toque suave da pele dele, pelo calor que daí emana e que se alastra braço acima, causando-me arrepios.

Já na biblioteca, ele larga-me a mão, completamente indiferente às sensações que provocara em mim.

— Temos de procurar o “X” — diz ele.

Tentando recompor-me, analiso o papel e procuro situar-me. O “X” parece estar entre as estantes e a secretária de mogno. Nesse espaço, apenas existe uma enorme carpete.

Aponto para ela.

— Vamos levantá-la.

Ele apressa-se a enrolar a carpete e ficamos a olhar para o chão de madeira. Não parece haver ali nada.

Ajoelhamo-nos e tateamos ao longo de todo o chão.

A certa altura, os meus dedos tocam num pedaço de madeira mais oca que a restante. Chamo-o.

Com alguma perícia, ele consegue levantar uma das extremidades. Por baixo da madeira, há um pequeno esconderijo.

Lá dentro, uma caixinha de madeira.

Naquele momento, nenhum de nós consegue esconder o entusiasmo. Estamos perante uma verdadeira busca pelo tesouro.

Abrimos a caixa e encontramos uma espécie de chave, mas que se assemelhava mais a um tubo.

E agora, para que serve aquilo?

Voltamos para junto da secretária, onde estavam pousados os mapas, e foi então que demos com a bússola, completamente esquecida.

Pego nela. Se o avô a deixara era porque servia para alguma coisa.

— Esta bússola é falsa — afirmo. — Vês como o ponteiro não se mexe e está fixado no norte?

Ele abre a boca de espanto.

Analiso a bússola e encontro um pequeno orifício, onde cabia a chave que encontráramos.
 
Apressamo-nos a experimentar a chave e ouvimos um clique.

A bússola abre-se como um porta-joias.

Lá dentro encontramos outra chave. Está enrolada numa tira de papel, onde se lê novamente: O Último Tesouro.

— Fazes ideia de onde pertence esta chave? — pergunta-me o Joel, confuso.

Os meus olhos brilham. Sei exatamente o que aquela chave abre. Há muito tempo que pedia ao avô para me mostrar o seu esconderijo secreto e ele nunca concretizara o meu desejo.

Conduzo o Joel para junto da grande estante que cobria quase uma parede completa. De um dos lados, há uma saliência que eu conheço de cor. Introduzo a chave, rodo duas vezes e ouve-se um clique. A parte da frente da estante mexe-se. Juntos, puxamo-la e abre-se uma passagem.

Entramos. O Joel liga a lanterna do telemóvel para iluminar o interior. Ficamos assoberbados com o que vemos diante de nós.

Pousado num cavalete de enormes dimensões, encontra-se um magnífico quadro. É um retrato da avó, a mulher que ele amara toda a vida.

O avô deixara-nos o seu último tesouro. O amor.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Desafio Atreves-te a Escrever? #Tema 3 | A fuga


[Desafio promovido pela Vera Barbosa e pela Elisabete Martins de Oliveira.]

 
Tema 3:
 
        A fuga
 
Já é tarde demais. Eles querem vingança. Não tenho escolha senão fugir.
 
Apresso-me a seguir em frente. Mas não consigo sequer dar meia dúzia de passos. De repente, vejo-me cercado. Várias mãos aproximam-se de mim e agarram-me.

Fui apanhado. Não vou sobreviver depois disto.

Sinto uma agulha perfurar-me o braço. E, por fim, escuridão.

Duas horas antes

Acordo desorientado. Sinto a cabeça pesada e custa-me focar o olhar.

Onde estou? Que lugar é este?

À minha volta vejo tudo branco. Oiço bips de máquinas.

Estou preso a uma cama. Como raio vim aqui parar?

Tento mexer-me mas o meu corpo não me obedece. Drogaram-me?

Onde estou?

O meu coração acelera as suas batidas e a máquina dos bips exalta-se, como se não lhe agradasse a alteração que se dá no meu corpo.

Eles estão a controlar-me.

Forço-me a respirar mais devagar. Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro.

Algum tempo depois, os bips retomam a normalidade. Contudo, nesse momento, alguém abre a porta.

Fecho imediatamente os olhos. Mantenho-me imóvel.

É uma mulher. Oiço-a sussurrar qualquer coisa e escrevinhar numa prancheta. Entreabro ligeiramente um olho e vejo-a mexer no saco do soro. A minha intuição estava correta: estou a ser drogado.

Aguardo que ela saia da divisão. Consigo mexer a mão direita. Agora sinto-me um pouco menos entorpecido. Levanto a mão e, com os dentes, arranco a agulha que está lá espetada. Acabaram-se as drogas.

Atiro para o lado o lençol que me cobre o corpo e olho por mim abaixo, procurando perceber o que se passa comigo. Os meus batimentos cardíacos disparam novamente.

Agora entendo porque é que não conseguia mexer a mão esquerda. É porque ela não está lá.

Olho esbugalhado para o meu membro dilacerado. A minha mão desapareceu. O meu antebraço desapareceu. Deparo-me apenas com uma enorme faixa de tecido a envolver aquilo que imagino ser um coto amputado.

Sinto-me prestes a vomitar. A minha cabeça anda à roda.

Respiro fundo. Procuro ativar a memória. E eis que finalmente vejo uns lampejos de sangue. Oiço gritos. Metralhadoras. Explosões.

Começo a recordar-me do ataque surpresa para resgatar os prisioneiros civis. Algo correu claramente muito mal. Surpreendemos as tropas inimigas mas elas estavam preparadas.

Fui capturado.

Aqueles malditos soldados não têm regras. Ouvi muitas vezes o boato de que eles capturavam os inimigos, faziam deles prisioneiros, torturavam-nos por diversão e chegavam até a vender os seus órgãos.

Não encontro no meu corpo sinais de tortura, por isso sei que reconheceram a minha patente superior e que me levaram para algum hospital secreto onde me vão ser removidos os órgãos.

Estremeço.

Esta é a vingança deles.

Não sei se vou sobreviver, mas tenho de tentar fugir. É a única escolha que me resta.

Com a ajuda da mão direita, consigo sentar-me na cama. Embora tenha as pernas enfaixadas, estas parecem estar inteiras. Arrasto-me para o lado. Com cuidado, tento pôr-me de pé. Os meus pés tremem quando tocam no chão e só não me estatelo completamente porque me seguro com firmeza à cama com a minha única mão disponível.

Experimento dar um passo. Depois outro. Aos poucos, o meu corpo começa a reagir. Abeiro-me de um pequeno armário junto à porta. Lá dentro, encontro uma bata. Visto-a para cobrir a minha nudez.

Chego-me à porta e espreito pela pequena janela. Vejo apenas parede e uma outra porta do lado esquerdo. Muito devagar, abro a porta e ponho a cabeça lá fora. Não se vê ninguém. Fico aliviado por não estar nenhum soldado a guardar a minha porta. Isso ajudar-me-á no meu plano de fuga, uma vez que não me sinto capaz de lutar.

Finalmente, aventuro-me corredor fora. Doem-me as pernas e arrasto um pouco o pé direito, mas consigo caminhar, segurando o que resta do meu braço amputado.

Quando chego à esquina, viro à direita. Passo por algumas portas. Espreito pela janela de uma delas, onde vejo alguém deitado numa cama. Não consigo reconhecer se é homem ou mulher, pois tem a cabeça coberta de ligaduras.

Continuo o meu caminho, até que de repente oiço vozes. Assustado, olho em volta. Preciso de me esconder. Abro a porta mais próxima e enfio-me lá dentro. Está escuro e cheira a detergente. Talvez seja uma despensa.

O galope do meu coração acelera à medida que as vozes se aproximam, mas elas continuam em frente. Respiro fundo.

Preciso de continuar antes que alguém dê pela minha falta e dê o alarme.

Saio do meu esconderijo, olho em volta e prossigo o caminho. Lá ao fundo, vejo um elevador. Não me parece nada boa ideia entrar naquele cubículo. É arriscado, não sei o que poderei encontrar do lado de lá. Mas também não estou em condições de descer escadas com o pé direito que se arrasta cada vez mais.

De repente, oiço uma balbúrdia. Tenho a certeza de que acabaram de perceber que desapareci.

Entro em pânico. O que faço agora? Para onde vou?

Opto por seguir por um corredor à esquerda do elevador, mas é tarde demais. No momento em que empurro o puxador da porta, o elevador abre-se e sai de lá uma mulher. Ela arqueja, fica surpreendida a olhar para mim e depois desata aos berros.

Não! Vai-me denunciar!

Ela aproxima-se de mim e, sem pensar, uso o meu braço bom para a atirar contra a parede. Ela cambaleia, desequilibra-se e cai.

Aproveito a distração e apresso-me a seguir em frente. Não consigo sequer dar meia dúzia de passos. De repente, vejo-me cercado. Várias mãos aproximam-se de mim e agarram-me.

É tarde demais. Fui apanhado. Não vou sobreviver depois disto.

Tento espernear mas estou tão cansado que me parece apelativo aceitar o fim que me está destinado.

Sinto uma agulha perfurar-me o braço. Oiço vozes longínquas.

“Levem-no. É o doente da cama quinze. O tenente. Braço amputado e múltiplos ferimentos de guerra. Traumatizado e ainda instável. Precisa de repouso.”

E, por fim, escuridão.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Desafio Atreves-te a Escrever? #Tema 2 | O estranho


[Desafio promovido pela Vera Barbosa e pela Elisabete Martins de Oliveira.]

 
Tema 2:
 
        O estranho
 
Novamente este rosto. Acho que estou a ser seguida.
 
Ele olha-me fixamente, sentado junto ao balcão da pastelaria.

Já o vi antes a rondar o apartamento. É por isso que o reconheço de imediato. É tão ruivo que parece que tem um fogo a arder em cima da cabeça.

Enfrento-o. Prendo o meu olhar no dele, tentando fazer a minha melhor expressão desafiante, tentando não demonstrar medo. Não posso entrar em pânico. Não agora. Não aqui.

Parece ter resultado porque ele desvia a atenção. Suspiro de alívio e termino o café. Limpo as migalhas do bolo de arroz que ainda persistem nos cantos da minha boca e volto a olhar na direção do balcão. Estremeço.

Ele está novamente a fixar-me. Que raio pretende de mim?

Não devia ter saído de casa.

O meu coração faz ruído dentro do meu peito. Levanto-me depressa e agarro a bolsa. A alça está presa nas costas da cadeira e, ao puxá-la com força, ela revira-se e metade do seu conteúdo cai ao chão num grande estrondo. Agacho-me e apresso-me a apanhar todos os meus pertences. Estou a tremer.

Retiro cinco euros da carteira e deixo a nota em cima da mesa, saindo tempestuosamente dali.

Mesmo antes de virar a esquina, consigo ver pela janela que o homem também se levantou e se aproxima da saída.

Oh meu Deus, ele vem mesmo atrás de mim.

Apresso o passo, apertando a bolsa bem junto ao corpo.

Não devia ter saído de casa. Não devia ter dado ouvidos à minha terapeuta. Disse-me que não era normal ficar quatro meses fechada em casa e que algum dia teria de enfrentar o mundo. Comece com algo pequeno, dissera, vá ao supermercado, vá lanchar a uma pastelaria, visite a biblioteca. O que raio sabe ela? Segui o seu conselho e agora estou a ser perseguida. Vai tudo repetir-se outra vez.

Enquanto caminho, vou olhando para trás. Não o vejo. Terá desistido? Ou seguiu por algum atalho para me surpreender?

Esse pensamento alarma-me. Onde estará ele?

Viro à direita. É então que o vejo lá atrás a dobrar a esquina. Sem pensar duas vezes, desato a correr. Ainda posso despistá-lo.

As pernas tremem-me e sinto-me ofegante. Quase não consigo respirar. As pessoas olham para mim como se eu fosse louca.

Falta-me apenas uma rua, mas já vejo a fachada do meu apartamento. Estou quase lá.

Olho para trás e vejo que ele ganhou balanço. Está a correr. Atrapalho-me e quase caio.

Chego à porta do prédio, encontro-a entreaberta e entro de rompante. Atiro-a para trás com força para que se feche.

Estou quase em segurança. Paro em frente ao elevador e carrego no botão. Ao olhar para a rua, o coração quase me salta do peito. O homem está parado junto ao prédio. Ele não vai entrar, pois não? Não pode, precisaria das chaves.

Ainda não estou em segurança. Desisto de esperar pelo elevador e corro escadas acima. São dezenas até ao terceiro andar, mas eu sou capaz. Tenho de ser.

Quando chego lá acima, o meu coração parece estar num campeonato de saltos acrobáticos.

Faço mais um esforço e percorro o corredor até à porta do meu apartamento. Debruço-me sobre a minha bolsa e procuro as chaves.

É nesse momento que oiço a campainha do elevador. Sinto-me gelar. Olho naquela direção e, quase em câmara lenta, vejo as portas a abrirem-se. Fico petrificada quando uma cabeleira ruiva sai de lá de dentro.

Este é o meu pior pesadelo.

Continuo a vasculhar a bolsa. Onde raio meti as chaves?

A sola dos seus sapatos ecoa pelo corredor à medida que ele se aproxima. Estou tão consciente desse barulho como das gotas de suor que me escorrem pelas têmporas.

— Desculpe, perdeu as chaves?

Estou tão alterada que nem entendo as suas palavras. Decido agir. Desta vez, vai ser diferente, serei capaz de me defender.

Viro-me e fito-o corajosamente. À minha frente só vejo sangue. Vejo os rufias a rodearem-me e a navalha a espetar-se na minha barriga.

Atiro-me a ele, apanhando-o de surpresa, e borrifo-o com o spray de pimenta que retirei da bolsa.

Ele grita e dá um passo atrás, levando as mãos à cara.

— Mas que raio! Porque é que fez isso? — pergunta.

— Afaste-se de mim!

— Só lhe perguntei se perdeu as chaves. — Ele leva a mão esquerda ao bolso, tira umas chaves ruidosas e atira-mas. — Deixou-as cair na pastelaria. Vim atrás de si para as devolver.

Fico a olhar para as chaves, exatamente aquelas que me fartei de procurar em vão dentro da bolsa.

Engulo em seco. Agora sinto-me extremamente envergonhada pelo que fiz.

O homem encosta-se à parede e desliza para o chão, sentando-se. Continua a tapar os olhos com as mãos.

Retiro uma garrafa de água da bolsa e estendo-lha.

— Use isto. Pode ser que ajude — digo, sentando-me ao seu lado.

Fico a vê-lo lavar os olhos com os dedos molhados. Parece-me abatido, e não apenas por ter acabado de ser atacado.

Há, contudo, uma questão que não me sai da cabeça.

— Como conseguiu entrar no prédio?

Ele olha para mim. Tem os olhos vermelhos mas já os consegue entreabrir.

— Moro aqui. — E aponta para a porta em frente à minha.

Fico boquiaberta. Não consigo acreditar que este homem é o meu vizinho do esquerdo, com quem eu nunca me tinha cruzado.

— Imagino que tenha ficado assustada quando a olhei fixamente no café — acrescenta.

— Sim — admito, em voz baixa.

— Peço desculpa. Não o devia ter feito. É só que… — hesita, como se lhe custasse falar do assunto. — Acho-a parecida com a minha noiva. Ela abandonou-me no dia do nosso casamento. Faríamos hoje um ano de casados. — Outra pausa. — Às vezes, parece-me que a vejo em todo o lado.

Olho-o em silêncio. Tenho andado tão centrada na minha dor, nos meus medos, na minha incapacidade de combater o pânico, que me esqueço que as outras pessoas também têm as suas cicatrizes.

Devagar, coloco a mão por cima do ombro dele. Puxo-o para mim. Acho que ele está a precisar de um abraço.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Desafio Atreves-te a Escrever? #Tema 1 | O espelho


[Desafio promovido pela Vera Barbosa e pela Elisabete Martins de Oliveira.]

 
Tema 1:
 
        O espelho
 
A casa abandonada ergue-se perante mim, altiva, severa.
 
Engulo em seco.
 
Não sei o que é que me deu na cabeça para meter aqui os pés.
 
Estou cansada e confusa. Os últimos dias ainda estão bastante nublados na minha cabeça.
 
Olho em frente e fixo as paredes de pedra desta casa majestosa. Embora as plantas trepadeiras cubram a maior parte da fachada, há algo nela que me atrai. Consigo discernir alguns buracos na parede, resultantes dos anos de existência e da falta de manutenção. O abandono fez-lhe mal.
 
O crocitar de um corvo assusta-me. Observo o pássaro segundos antes de pousar numa grande chaminé parcialmente destruída. Junto ao telhado, há uma janela circular, cujos vidros estão também partidos.
 
Sinto os braços arrepiados. O outono chegou agreste. Aconchego o casaco de malha ao corpo e subo o primeiro degrau.
 
Alcanço a imponente porta rústica e levo a mão ao puxador, reparando de imediato numa frincha. A porta não fecha bem.
 
Empurro-a. O som agudo das dobradiças causa-me um novo arrepio. O corvo volta a crocitar lá no céu. Um mau presságio.
 
O interior da casa é quase tão decadente como o exterior. O chão está coberto de entulho, a tinta das paredes parece ter sido arrancada com as unhas, os móveis encontram-se escondidos por debaixo de uma camada de pó e as plantas entram pelas janelas e buracos das paredes, continuando a crescer livremente.
 
Caminho com cuidado, procurando não tropeçar em nada. A iluminação é fraca, conferindo à casa um tom soturno.
 
Não me demoro muito no piso inferior. Aproximo-me da enorme escadaria, utilizando a lanterna do telemóvel para iluminar o caminho.
 
Não sei exatamente o que estou aqui a fazer, mas algo me impele a continuar.
 
À medida que subo as escadas, a escuridão adensa-se. Aponto a lanterna, na tentativa de descortinar o caminho.
 
Viro à direita e percorro um longo corredor. Sei que estou a seguir o caminho certo, pois comecei a ouvir vozes a sussurrar.
 
Detenho-me junto a uma porta. As vozes subiram de tom, parecem uma algazarra.
 
Incerta daquilo que irei encontrar do outro lado, preparo-me para abrir a porta. Contudo, como se pressentisse a minha presença, ela abre-se sozinha, deslizando silenciosamente para o interior.
 
Nesse exato momento, duas coisas acontecem em simultâneo: as vozes calam-se e o meu telemóvel falha, apagando-se. Fico mergulhada no mais completo silêncio, na mais devastadora escuridão.
 
O meu coração pulsa apressado e sinto-me prestes a desfalecer. Estou tão cansada que nem consigo sentir medo.
 
Dou um passo em frente. Os meus olhos começam a habituar-se ao negrume e sou capaz de perceber que a sala está completamente vazia. Ou quase.
 
Após caminhar alguns passos, deparo-me com uma parede retangular, ao centro. Toco-lhe com a mão e a sua textura áspera e rugosa magoa-me a ponta dos dedos. De imediato, a parede desvanece-se e outra coisa aparece à minha frente.
 
Um espelho.
 
Uma ténue luz cor de âmbar reflete-se do seu interior, iluminando o espaço à minha volta. A seguir, surge o meu reflexo.
 
Só que a mulher que vejo não sou exatamente eu. Ela tem o cabelo desgrenhado e a cara deformada. Fios de sangue começam a escorrer-lhe de um golpe na testa.
 
E nesse momento sinto a dor.
 
A tremer, levo a mão ao rosto e tateio uma substância quente e pegajosa.
 
O sangue é meu.
 
O que se passa? O que está a acontecer-me? Onde estou? Quem sou eu? Porque é que não me lembro de quem sou?
 
Sinto o pânico a apoderar-se de mim.
 
Continuo a fixar o estranho reflexo no espelho e vejo surgirem outros cortes no meu rosto, que agora sangra com mais intensidade.
 
— O que é que me está a acontecer? — grito para a escuridão, para o nada.
 
De repente, a imagem do espelho muda. Vejo uma outra mulher. Vem de mãos dadas com um homem. Ambos parecem bastante serenos, felizes.
 
— Vem connosco — diz a mulher. Parece a voz de um anjo.
 
Nesse momento sinto uma nova pontada de dor. Levo a mão ao abdómen, onde também estou golpeada. E é então que os reconheço.
 
— Mãe? Pai?
 
Não é possível. Sou órfã desde os dezasseis anos. Estou ferida, devo estar a alucinar.
 
A imagem volta a mudar. Desta vez é um jovem que me sorri e me estende a mão.
 
— Não, não pode ser — sussurro, abanando a cabeça em negação.
 
Tenho tantas saudades do meu irmão.
 
Sinto-me cada vez mais fraca. Continuo a perder sangue abundantemente e a cabeça lateja-me. Quase não consigo manter os olhos abertos.
 
As lágrimas escorrem-me pelo rosto, causando uma estranha mistura de sangue e sal.
 
Quando a imagem volta a mudar, recuo, incapaz de enfrentar aquilo que sei que vem a seguir. Não quero olhar. Não posso.
 
Mas ela vem sem pedir permissão. O homem que surge no espelho também tem a mão estendida, chamando-me.
 
— Vem, estamos à tua espera.
 
O meu coração explode e perco a forças nas pernas. Caio desamparada no chão pegajoso do sangue que me foge das veias.
 
O seu sorriso continua a ser a coisa mais maravilhosa que tive na minha vida. Há três dias, o meu marido estava deitado num caixão. Não consigo enfrentar esta nova realidade.
 
Estou sozinha no mundo. Não tenho ninguém.
 
Cravo as unhas no chão e choro. Uivo de dor. Os meus soluços são tão selvagens que acabo por perder a pouca força que me resta. Deixo cair a cabeça no chão.
 
Antes de perder a consciência, oiço, muito ao longe, as gargalhadas de uma criança.
 
— Mamã?
 
E é nesse momento que me recordo. Não estou sozinha. Tenho uma filha.
 
***
 
— Minha senhora? Consegue ouvir-me?
 
Oiço uma voz diferente. Uma que não reconheço.
 
Abro devagar os olhos. A luz fere-me a vista. Vejo uma cara diante de mim. Porque é que o homem está com a cabeça virada para baixo? Parece pendurado.
 
Arquejo quando me invade a dor vinda de várias partes do corpo. Sinto algo pegajoso colado às pestanas e a minha boca sabe a ferro. O que se passa?
 
Distingo outras vozes ao fundo. Oiço palavras dispersas: piso escorregadio, viatura capotada, equipa de desencarceramento.
 
Estou confusa. O que aconteceu?
 
— Minha senhora? Vamos tirá-la daí. Está quase. Aguente só mais um pouco.
 
Aceno levemente com a cabeça e olho em frente pelo vidro da viatura. As paredes de uma casa abandonada parecem desvanecer-se, ao longe.
 
Um corvo levanta voo e perde-se no ar.