Mostrar mensagens com a etiqueta Ceifeiros. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ceifeiros. Mostrar todas as mensagens

4.3.11

CENTENÁRIO DA MORTE DE FIALHO DE ALMEIDA

Seara, de Van Gogh

AQUi deixei alguns dados sobre Fialho de Almeida, escritor alentejano que marcou as nossas letras com o traço grosso de uma prosa viril, truculenta, salpicada de vocabulário já em desuso mas de  sonoridade expressiva. Isso se pode ver neste extracto da descrição que ele faz do trabalho sobrehumano da ceifa, no tórrido verão alentejano:



Apenas os calores primeiros de Junho encinzeiram o céu de tintas baças, toda a seara, tornada em palha de repente, cobre os margios dum infindável preia-mar cheio de galgões. Em quatro dias, os aspectos desse oceano de espigas transmutam para uma sinfonia oftálmica de cores cáusticas, entre que a vida crocita, nas mordeduras da luz, que bebe o sangue das ervas, como louca.
Hálito do inferno, já duas vezes o suão, ou vento levante, passando o Estreito, todo abrasado da escandência das areias africanas, veio sobre esses grandes vales argilosos do distrito de Beja lançar a morte; e o Verão do país sem água, o Verão alentejano, martirizante, irradiante, começa a encher de angús­tias a província e prepara cenário à colheita cerealífera, que este ano foi, sempre lho digo, duma vitoriosa e esplêndida abundância.
Vem na vanguarda a debulha das favas, o primeiro cereal que seca, na escala dos cultivados no Alentejo; após, vêm as cevadas; e o trigo logo; e, no fim de todos, os tremeses, que ainda mal espigam, quando já todo o faval está no celeiro.
Seca a seara, forçoso é ceifá-la célere e mão-tente, pois, nas cevadas sobretudo, apenas o bago mirra, desagrega-se da cáp­sula e logo tomba, do que a formiga se aguarda, para poder dizer à cigarra: —«Agora dança!».
Para os lavradores retardatários estas perdas de sementes chegam a contar-se por dezenas de alqueires, sumidos pelo formigal no subsolo, caso de espanto que nesta província sem braços obriga a disputar, a poder de dinheiro, os ceifadores.
O usual é dar as searas grandes de empreitada. Formam-se então bandos de trabalhadores à voz dum chefe. Vilas e aldeias, em ranchos, amaltesam para os campos das herdades, que no Alentejo, lá baixo, têm quilómetros. E a horrível faina começa sob os cinquenta graus do Sol, num céu de chumbo irradiante.
Nos anos quentes, é de ordinário o primeiro domingo de Junho, cinco da tarde, já pela fresca, a hora propícia para a abalada das companhas de ceifeiros. Â boca das estradas, no adro das igrejas, pelos cerros jacentes aos casebres, vem o manajeiro tocar uma buzina espinhosa, das que se desenter­ram na praia de Sines, e que produz no ar apático das vilas alguma coisa do apelo soturno que ficou talvez da tradição, das guerras célticas.
Logo, a pouco e pouco, começam a chegar os troços de rapazes, vestidos de velho, cotins arremendados, jaleco e alforje às costas com as provisões da semana — seis pães de trigo rijo, queijo de cabra, e o tarro das azeitonas sapateiras —, e à cinta a foice ,e o chapeirão braguês sombreando faces doi­radas de morenos, tão árabes algumas, onde olhos pretos, pro­fundos, de animal, estrelam a nostalgia dessa casta poética e mercenária.
(…)

Eles entanto, em linha à borda do trigo, distanciando seis metros um dos outros, começaram em silêncio a terrível faina de ceifar. Trazem as pernas apolainadas de trapos, atados estes por cordas que se lhes entrecruzam, desde os sapatos até às coxas, por defesa aos abrolhos do restolho; trazem nos braços e mãos peúgas velhas, de que fizeram mite-nes contra as escoriações da palha ardente; e a cara mal se lhes vê sob as abas do chapeirão de feltro ou de palmeira, e o mover dos seus rins trai o derreamento de miseráveis envile­cidos pelas moedeiras da fome e do trabalho. Com a mão direita lançam a foice ao rés da terra; com a esquerda agarram nos caules e vão deixando atrás de si o trigo, em pequenos molhos paralelos. Aqui, além, inda os mais novos cantam, mas nas respirações opressas, cantiga e palestra entrecortam-se--lhes de pragas, quando o suor, trespassando a saragoça das calças e o pano cru das camisas, começa de se lhes pegar à carne, salgado e chamuscando-lhes as sarnas como fogo. As primeiras horas até ao almoço, são suaves, porque os 38 graus do Sol pouco fazem nessas índoles de salamandra, afeitas a torrar. Apenas alguma sede, um ou outro assopro aos mos­cardos que os perseguem, e olhadelas ao Sol para indagar se a meia hora de descanso do almoço, estará longe. Esse plácido interregno, porém, por pouco alcança, que a fornalha solar refila de brasidos, graduando o martírio na proporção da mais atroz perversidade. A oriente o Sol vem caminhando, saindo da fumarada do horizonte, passando da cor de sangue a bronze líquido; e os seus raios, à medida que se aprumam, trazem na escandescência náuseas de veneno, e a angústia horrorosa do metal derretido sobre a carne; rareia o ar, a aragem matinal cessa de todo, os cães arquejam de língua caída, as cavalga­duras cessam de rilhar; e calando-se os pássaros, e os voos mais lentos, os ares mais turvos, a sombra mais efémera — a hora do tormento diabólico da sede, não sede do paladar, tendo por centro de refrigério a gorja seca, mas sede do sangue espessado nas artérias, extenuadora sede dos tecidos, colossal, geral, que nada estanca, e sob cujo estertor o cérebro zumbe nos alucinantes delírios da insolação! Julgareis que a tempe­ratura, marcada ao Sol por 44 mortais riscos do termómetro, tocado este acume, regresse lentamente às virações mais frí­gidas da tarde.

Falando em ceifeiros do Alentejo, logo acode a lembrança de um comovente poema que viemos encontrar AQUI,  "Canta, ceifeiro, canta", com uma foto dos anos 30, num blogue muito interessante sobre o Alentejo esquecido...