“Homem bom” – antiga designação daqueles que se distinguiam na vida cívica. Assim foi António Cordeiro Melo. Homem de ideais, de cultura, de estudo. Cultor das letras e das artes, foi um dos obreiros do já lendário SUPLEMENTO cultural do Badaladas, em 1961. Humanista íntegro, resistente da liberdade, solidário com os desprotegidos. Marcou a vida cultural e política do Oeste. Deixou-nos no passado 23 de Junho, tinha 82 anos.
Vinha muitas vezes a Torres Vedras mas residia na Merceana, concelho de Alenquer, onde desenvolveu uma vida dedicada ao ensino, à dinamização cultural e à participação política. Professor no antigo ensino primário, destacou-se como co-fundador e director da Tele-Escola da Merceana, e como pioneiro e dinamizador dos Centros de Apoio Pedagógico. Foi fundador, sócio nº 1 e o primeiro Presidente da Direcção do Clube Regional de Recreio e Cultura da Merceana, tendo também participado na Assembleia de Freguesia desta povoação. Fez parte da primeira Direcção do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa.
Em Alenquer, onde nasceu em 1925, deixou marcas profundas da sua acção. Foi membro da Assembleia Municipal desde as primeiras eleições livres até ao anterior mandato, eleito pela CDU como militante do Partido Comunista Português. Participou como Vogal na Comissão Administrativa de Alenquer após a revolução de Abril, onde criou e foi titular do primeiro pelouro municipal da Cultura. Colaborou activamente no “Jornal de Alenquer”que ajudou a fundar. Foi co-autor da monografia “O Concelho de Alenquer”, uma obra de referência para o estudo da etnografia e do património construído daquele concelho. Publicou diversos estudos sobre os usos e costumes, lendas e trabalhos agrícolas da região.
Detentor do Curso de Artes Decorativas do Instituto António Arroio, destacou-se como artista plástico, na pintura e na marcenaria, tendo sido profissional desta arte desde os 18 anos. Cursou Filosofia e Letras na Universidade de Lisboa, onde completou, já depois de reformado do Ensino, a Licenciatura em História.
No Voto de Pesar, aprovado pela Assembleia Municipal de Alenquer em 27 de Junho passado, a sua memória foi largamente documentada, recordando-se que a António Cordeiro Melo já havia sido atribuída a Medalha de Mérito Concelhio, Grau Prata e propondo-se a perpetuação do seu nome numa rua da Merceana.
Cordeiro Melo no BADALADAS
Esteve entre os fundadores do “Suplemento” do BADALADAS, em 1961, juntamente com António Augusto Sales, Ruy Moura Guedes e outros. Para quem não se lembre, tratou-se de um suplemento cultural que teve enorme importância na época, pela audácia, inovação e até desafio ao obscurantismo reinante.
Em 1993, a Cooperativa de Comunicação e Cultura relançou uma nova série desse Suplemento, homenageando os fundadores. Cerca de trinta anos depois, Cordeiro Melo aceitou prontamente voltar a colaborar:
[…] Assim, e neste início dos anos 90, estamos perante outras formas de agir e pensar, novas linguagens, novos “campos experimentais de cultura”, em suma, estamos perante uma nova geração. Dele emerge, agora, um novo grupo para quem a vida, também, não faz sentido sem utopia, que vem dar o novo sinal de partida para a publicação deste novo Suplemento de Badaladas [...]
[...]Eu tive o privilégio de ser solicitado e a sorte de estar vivo para poder estabelecer o elo de ligação entre os dois actos inaugurais, com a convicção de que a questão de fundo e as razões fundamentais que deram origem ao primeiro, continuam actuais para este novo SUPLEMENTO, 30 anos depois…
AS VELHAS TORRES
Lá no alto, correm as cristas de Montejunto. Cá em baixo, no fundo da cova e ao centro daquelas abas da serra, ergue-se, imponente, o Santuário.
As torres do templo enchem os olhos a toda a gente. A seus pés, afunda-se e rasteja uma aldeia calafetada de vinhedos.
Por cima, uma nesga de céu dá passagem às agulhas dos cata-ventos em busca de infinitos…
- Ninguém pode perder as torres de vista – já diziam os antigos.
Vivências milenárias afloram aos gestos e às palavras em cada esquina.
Lobisomens, almas penadas e espíritos maus andam a monte noite e dia; mas à noite zurram, uivam, piam, batem asas sobre as almas adormecidas e fazem mal. Fazem muito mal. Bruxedos, presságios, forças ocultas eclipsam auroras de claridade nascente em terras sagradas do Boi Marciano.
- Ninguém pode perder as torres de vista – clamam os velhos convictos.
Os olivais, as rendas da casa dos Romeiros e algumas cobranças aos mercadores que vêm fazer a feira todos os meses no Terrado, lá vão equilibrando as posses da Casa Santa; as quotas dos irmãos, esmolas e quetes dominicais fazem crescer, ao fim do ano, um pão feito de migalhas.
- Ninguém poder perder as torres de vista – dizem os novos desalentados.
A alegria e a tristeza dobram e repicam no alto das torres. Ecoam lá longe nas gargantas da serra. Vozes de bronze, cavas e fundas, tenórias ou finas – vibram no ar: clamores, preces, aleluias, finados, rebates; boas novas também.
A voz do tempo é a voz dos campanários. É uma voz que governa, anuncia, chama, recreia e dita. Voz que acerta o passo; enrola cigarros com lentidão de cava a dois ferros em terra dura. Voz desejada ao sol-poente para endireitar a espinha; o repique ao dia e à hora de receber a féria.
- Ninguém pode perder as torres de vista – aprendem as crianças.
O electricista deixa a luz acesa até altas horas da noite, mas ela perde-se nos bancos da Praça sem viv’alma. Amortece na escuridão dos cerros e vales onde as almas do outro mundo conspiram e apagam faróis atrevidos…
*
Sereias, relógios, cimento, vidro e ferro gritam progresso por atalhos e caminhos em direcção aos quatro ventos das vinhas do Oeste. Porém, tudo se cala à voz do sino grande. O seu badalar é um badalar dos tempos. Voz de um passado medieval que anima e conduz o coração e as ideias dos povoados que branquejam entre retalhos verdes e castanhos-claros. Voz a quem se obedece de dentro para fora. É uma voz sagrada a falar dentro de um tempo e de um espaço sagrados. Não há ano de 365 dias; há quatro tempos sagrados: o Presépio, a Páscoa, a Procissão do Senhor dos Passos e a festa grande em honra do Santíssimo. É a festa da Casa. Estes quatro tempos não são quatro estações de três meses. Longe disso. O tempo de nascer é pelas searas de trigo ou de milho; casam-se pela azeitona ou vindima; morrem pelo tempo da «fruta do tarde». Este é o regimento da vida dos montes redondos, dos vales bem feitos, das rainhas milagreiras e misericordiosas. Quando a poda e a empa mais o sulfato e o enxofre correm de feição: há o S. Martinho regado e repiques canoros vibram o azul rutilante do céu. Luas más, lado suão, Berlenga contrária, o silvo do comboio galga para cá da serra: amanhos ruins, «provas» desapaladadas – os vinhos não valem. E o mercado de Outubro já não é a feira por excelência. Negócios fracos. Ninguém se chega a comprar.
- Quer alguma coisa freguês?
(Excertos do livro Contos Portugueses de que Cordeiro Melo foi co-autor)