(Jornal PÚBLICO 30/03/2020)
Uma
longa vida dedicada à obra de Jorge de Sena
Mécia de Sena
1920-2020. Sem a sua persistência e rigor, a dimensão pública da obra de Jorge
de Sena seria hoje consideravelmente menor. Morreu em Los Angeles. Fizera cem
anos há duas semanas
Jornal PÚBLICO 30 Março 2020 ( Obituário: Luís Miguel Queirós)
Jornal PÚBLICO 30 Março 2020 ( Obituário: Luís Miguel Queirós)
A mulher de Jorge de
Sena, Mécia de Sena, morreu anteontem em Los Angeles, na Califórnia, com cem
anos completados no passado dia 16. Foi uma figura tão relevante quanto singular
na cultura portuguesa contemporânea, já que o essencial do que lhe devemos não
é uma obra em nome próprio, mas o seu persistente e rigoroso trabalho de
décadas a organizar para publicação, prefaciar e anotar os livros ou materiais
dispersos que o marido deixou inéditos à data da sua morte prematura, em 1978,
a começar por essa obra-prima do romance português que é Sinais de Fogo (1979),
e incluindo volumes de poemas como Sequências (1980) ou Visão Perpétua (1982),
entre vários outros, e ainda teatro, traduções de poesia estrangeira, livros de
contos, e um extenso conjunto de volumes de ensaios.
Sem a devoção e o labor de
Mécia de Sena, que não se resumiram à organização e edição de textos, mas
abarcaram também um constante trabalho de persuasão junto das editoras
portuguesas e incansáveis esforços para interessar novas gerações de
universitários pela obra de Jorge de Sena, quer a dimensão da obra já
publicada, quer a atenção que lhe foi sendo prestada pelos meios académicos,
seriam hoje provavelmente mais reduzidos. A Mécia de Sena se deve ainda a
edição de diversos volumes de correspondência travada por Sena com autores como
Guilherme de Castilho, José Régio, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Sophia
de Mello Breyner Andresen, José-Augusto França, Raul Leal ou António Ramos Rosa.
“Foi muito pioneira em Portugal, onde a pouca correspondência que se publicava
se limitava geralmente às cartas enviadas ou recebidas”, diz o poeta e ensaísta
Jorge Fazenda Lourenço, durante muitos anos o principal colaborador de Mécia de
Sena, lembrando que esta “procurou sempre dar o diálogo dos dois
correspondentes, o que exigiu um trabalho imenso para convencer correspondentes
a ceder as cartas, além da tarefa ciclópica de as transcrever num tempo em que
não havia Internet nem digitalização de documentos, e sem um computador, que
nunca teve”.
Um dos primeiros volumes de correspondência que publicou, em 1982,
foi uma selecção das cartas que ela própria trocara com o marido — Isto Tudo
que nos Rodeia (Cartas de Amor) –, uma escolha muito restrita do intenso
carteio do casal, garante Fazenda Lourenço, já que Mécia terá então receado que
“a grande abertura do diálogo entre eles pudesse levar a que o livro fosse
recebido com algum escândalo”. Trinta anos mais tarde, em 2012, sairia um
volume organizado por Otília Lage com cartas do período em que Sena permaneceu
no Brasil, entre 1959 e 1965. Mas Sena e Mécia escreveram-se constantemente,
desde os tempos de namoro até à morte do escritor. “Se o Sena dava um salto a
Nova Iorque, escrevia à Mécia todos os dias para Santa Bárbara, e o mesmo
quando estavam no Brasil, se ia a S. Paulo ou ao Rio de Janeiro”, conta ainda
Fazenda Lourenço. E diga-se que muitas das cartas de Mécia de Sena são
francamente notáveis, e deveras desassombradas para os costumes da burguesia portuguesa
da época. Quando alguém se propuser prosseguir o pioneiro trabalho iniciado por
Andrée Crabbé Rocha no volume A Epistolografia em Portugal, será da mais
elementar justiça que não se esqueça de Mécia de Sena. Além das cartas, Mécia
de Sena prosseguiu uma espécie de diálogo com Jorge de Sena num conjunto de
fragmentos a que chamou Flashes, e que continua inédito, salvo dois ou três
dispersamente publicados. “É uma coisa muito interessante e que tem mesmo valor
literário e merecia ser editado”, assegura Fazenda Lourenço, que enaltece ainda
a hospitalidade com que esta recebia na sua casa de Santa Bárbara os
investigadores que estudavam a obra do
marido. “Era de uma generosidade extraordinária: a casa às vezes parecia mais
um centro de estudos de Jorge de Sena; às vezes, éramos para aí uns 20 e ela
cozinhava para toda a gente”.
Oriunda de uma família culta e melómana — o pai,
Armando Lopes, que usava o pseudónimo Armando Leça, era um conhecido músico e
folclorista, a mãe, Irene Freitas era uma talentosa violoncelista, e um dos
seus irmãos foi o professor e historiador da Literatura e linguista Óscar Lopes
—, Mécia de Freitas Lopes nasceu em Leça da Palmeira, Matosinhos, no dia 13 de
Março de 1920. Licenciada em Ciências Histórico-Filosófias pela Universidade de
Lisboa, completou ainda o curso do Conservatório do Porto e durante alguns anos
deu aulas no ensino secundário. Casou-se com Jorge de Sena em 1949, no Porto,
após um longo noivado. Tiveram nove filhos. Para ajudar os proventos domésticos,
sempre parcos para tão extensa prole, foi tendo várias ocupações, incluindo a
tradução. Desde meados dos anos 50 até ao final da década seguinte fez a revisão
de numerosas traduções, sobretudo para a editora Livros do Brasil, e traduziu
ela própria autores como Jean Cocteau ou Blaise Cendrars, a par de muitas
outras obras de diferentes géneros. Além destes trabalhos, que assinava Mécia
Freitas Leça, ou apenas Freitas Leça, associando o apelido de solteira ao
pseudónimo usado pelo pai, terá ainda colaborado, a julgar por certas passagens
da sua correspondência, em traduções que Jorge de Sena fez de romances ingleses
e americanos. “Merecem ser vistos como um par importante da cultura
portuguesa”, diz Fazenda Lourenço, observando que “sempre se consideraram como
iguais” e que, desde o início, “Mécia teve uma intimidade muito grande com a
obra de Jorge de Sena”. O que, após a morte do marido, lhe permitiu assumir
“com uma grande naturalidade”, argumenta, o plano de publicações que este
deixara mais ou menos alinhavado. Hoje é a filha Isabel que assume o papel de
guardiã da obra do pai.
Uma opção que terá
provocado algumas reservas. “Foi vítima da misoginia lusitana”, diz Fazenda
Lourenço. “Ouvia dizer, nas costas dela, que devia ter deixado a edição da obra
a um professor da Faculdade de Letras — um homem, claro, que era o que estava
implícito”.
(lmqueiros@publico.pt)
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