Escritor oitocentista ( 1839 / 1871 ), foi nas suas páginas que
se sedimentou o mito da ruralidade feliz. Pegando na ideia já desenvolvida por
Herculano no Pároco da Aldeia e que
Eça levará mais longe em A Cidade e as
Serras, Júlio Dinis valorizou intensamente a vida no campo, onde encontrava
a simplicidade e as virtudes que a cidade já não tinha e que constituíram o
cerne da sua escrita. Com ele nasce verdadeiramente o romance campesino – que
Camilo C. Branco e Herculano saudaram - ao mesmo tempo que se despede o
romantismo já gasto, em favor do olhar realista que alimentará a nossa prosa
até ao final do séc. XIX. As Pupilas do
Senhor Reitor e A Morgadinha dos
Canaviais são os momentos altos dessa escrita que encantou os leitores dos
folhetins de jornal em que primeiro foram publicados, antes de passarem a
livro.
Se nos dispusermos a enfrentar a prosa intensamente
descritiva de Júlio Dinis, ainda hoje lemos essas páginas com o encantamento
dos leitores de antanho. Nelas encontraremos os ambientes e as paisagens, os
costumes e os tipos humanos, que povoavam as nossas aldeias até há bem pouco
tempo.
Referência especial à Morgadinha
dos Canaviais: já foi livro de leitura obrigatória no ensino oficial, hoje
parece esquecido. Todavia é o primeiro romance de matriz sociológica da nossa
Literatura. Nele se retratam de forma brilhante as mudanças sociais e políticas
do século XIX português com o embate entre a tradição imobilista e as ideias de
progresso civilizacional: as novas estradas e consequente luta contra as
expropriações; os enterramentos fora das igrejas que motivaram fortíssimas
revoltas populares; o sistema representativo com os jogos eleitorais e o
caciquismo local; a idealização e dignificação do papel da mulher na família;
enfim, a importância do Ensino Público. Um livro de leitura indispensável e
gratificante, ainda hoje.
* * *
COMO FOI
POSSÍVEL?
A
vida de Júlio Dinis foi um prodígio de realização. Repare-se: morre com 32
anos, vítima de tuberculose, mal que vinha dizimando a família. Aos 19 anos começou
a escrita de Uma Família Inglesa (“Uma
obra-prima, pela observação de ambientes, contornos e tipos humanos” – História
da Literatura Portuguesa, de A. J. Saraiva e O. Lopes).
Escreveu
peças de teatro para grupos de amadores em que foi ator, o que lhe deu o
domínio da técnica do diálogo, bem patente nos romances posteriores (Teatro Inédito,
3 vols., 1946-1947). Exerceu crítica literária (Inéditos e Dispersos, 2 vols. 1910). Cultivou a poesia (Poesias, 1873-1874), o conto (Serões da Província, 1870) e o romance (As Pupilas do Sr. Reitor, 1867; A Morgadinha dos Canaviais, 1868; Uma Família Inglesa. 1868; Os Fidalgos da Casa Mourisca, 1872).
Contudo,
esta intensa atividade literária foi apenas uma parte da sua vida, oculta sob o
pseudónimo de Júlio Dinis. De facto, poucos contemporâneos sabiam que o médico
e professor da Escola Médica do Porto, Dr. Joaquim Guilherme Gomes Coelho, era
o aclamado autor daqueles livros. Sobre ser um grande criador literário e
clínico competente, ele foi um homem modesto e simples, trabalhador persistente,
pouco dado a mundanidades. Só isso explica a obra prodigiosa que nos legou.
* * *
Aguarela de Roque Gameiro
JOÃO SEMANA
Júlio Dinis
criou tipos humanos inesquecíveis, caso de João Semana, médico de província,
abnegado e altruísta, que acorria aos doentes, montado na sua mula.
Vêmo-lo
aqui, numa das muitas aguarelas de Roque Gameiro, um admirador de Júlio Dinis,
cuja obra estudou em profundidade para poder recriar fielmente os ambientes
descritos nos romances campesinos do grande escritor.
* * *
O MAU JULGADOR POR SI SE JULGA…
Júlio Dinis era um homem bom. Isso reflete-se na sua
escrita, marcada por intuitos educativos e formativos, na linha do humanismo
liberal de Alexandre Herculano. São frequentes, nos seus romances, pedaços de
prosa reflexiva, defensora da cidadania interventiva e da moralidade na vida
pública:
«É uma triste verdade esta da pouca ou nenhuma fé que se tem
no desinteresse dos outros!
Não há explicação mais difícil de ser recebida do que a que
se fundamenta n'um sentimento nobre de abnegação ou de generosidade.
É preciso que duvidemos muito de nós mesmos, para assim
desconfiarmos do próximo. Porque a final o que é verdade é que a mais exata e
infalível ciência do coração humano só se adquire pelo estudo do próprio
coração: esse é o único que nos está bem patente. É por isso que as melhores
almas são de ordinário as mais crentes.
Um homem, a quem a desconfiança tenazmente escuda contra
todas as aparências de virtude, ainda as mais insinuantes, tem já tão inquinado
o coração como supõe o dos outros.» (A
Morgadinha dos Canaviais, cap. XXXI)