MANUEL DA FONSECA
A ESCRITA DE UM IMENSO E TORTURADO ALENTEJO
ALDEIA
Nove casas,
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.
Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para longe
um nome familiar
se assustam pombos bravos
e acordam ecos no descampado.
(OBRA POÉTICA, Manuel da Fonseca,
Ed. Caminho, 1998)
“Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.” (Início do conto O Largo do livro O FOGO E AS CINZAS, de Manuel da Fonseca)
A escrita de Manuel da Fonseca (MF) é marcada por fortes traços autobiográficos sem, no entanto, cair na limitação de uma visão individualista da vida. Pelo contrário, Manuel da Fonseca –, cujo centenário do nascimento passou no dia 15 de outubro – exprime brilhantemente a condição do povo alentejano que ele bem conhecia, esmagado por condições de vida desumanas, num Estado Novo onde as liberdades cívicas eram diariamente espezinhadas. Sem o esquematismo simplista de que os neo-realistas foram injustamente acusados, MF deixou obras de intenso dramatismo romanesco, - a romance SEARA DE VENTO, por exemplo - ou contos magníficos pela observação do seu ambiente de origem, o Alentejo queimado e ressequido de fome – caso de O FOGO E AS CINZAS -, ou ainda as crónicas de certeira descrição de um mundo urbano em acelerada mudança, em que ele viveu muitos anos – caso de UM VAGABUNDO NA CIDADE.
Quer na prosa quer na poesia, Manuel da Fonseca tem uma escrita límpida e direta, sem efeitos retóricos, mas intensa de lirismo e forte sentido da dimensão humana. Do ponto de vista literário, o tempo não desgastou esta obra, e teve o condão de lhe dar uma forte componente de testemunho histórico e sociológico sobre a segunda metade do século XX em Portugal. | JMD
RESUMO BIOGRÁFICO
Nome: Manuel da Fonseca
Nascimento: 15-10-1911, Santiago do Cacém
Morte: 11-3-1993, Lisboa
Partiu ainda jovem para Lisboa para realizar estudos secundários, tendo desempenhado posteriormente na capital diversas atividades profissionais no comércio, na indústria e no jornalismo. Antes de colaborar em Novo Cancioneiro, com Planície, coleção onde se afirmariam algumas coordenadas da estética poética Neorrealista numa primeira fase, editou, em 1940, Rosa dos Ventos, obra pioneira do neorrealismo poético português, nascida do convívio com um grupo de jovens escritores, entre os quais Mário Dionísio, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Manuel Mendes e Armindo Rodrigues, unidos numa "obstinada recusa de ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do Homem, ela teria um papel estimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação de um mundo podre" (DIONÍSIO, Mário - prefácio a Obra Poética de Manuel da Fonseca, 1984, p. 21).
(…)
Bibliografia: Rosa dos Ventos, Lisboa, 1940; Planície, Coimbra, 1941; Aldeia Nova, Lisboa, 1942; Cerromaior, Lisboa, 1943; O Fogo e as Cinzas, Lisboa, 1951; Seara de Vento, Lisboa, 1958; Poemas Completos, Lisboa, 1958 (inclui obras anteriores e poemas inéditos, Lisboa, 1969); Um Anjo no Trapézio, Lisboa, 1968; Tempo de Solidão, Lisboa, 1969; Obra Poética, Lisboa, 1984; Crónicas Algarvias, Lisboa, 1986; Bairro de Lata, Lisboa, 1986; O Vagabundo na Cidade, Lisboa, 2001)
Bibliografia: Rosa dos Ventos, Lisboa, 1940; Planície, Coimbra, 1941; Aldeia Nova, Lisboa, 1942; Cerromaior, Lisboa, 1943; O Fogo e as Cinzas, Lisboa, 1951; Seara de Vento, Lisboa, 1958; Poemas Completos, Lisboa, 1958 (inclui obras anteriores e poemas inéditos, Lisboa, 1969); Um Anjo no Trapézio, Lisboa, 1968; Tempo de Solidão, Lisboa, 1969; Obra Poética, Lisboa, 1984; Crónicas Algarvias, Lisboa, 1986; Bairro de Lata, Lisboa, 1986; O Vagabundo na Cidade, Lisboa, 2001)
(Infopédia, Porto Editora)
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UM GRANDE POETA
«(…) a poesia de Manuel da Fonseca continua a existir com a sua frescura inicial e a sua energia, a sua capacidade de comover e seduzir, o seu reservatório de sonho, o seu mistério. Porque, se algum mistério na poesia há, só pode ser este interminavelmente descobrir e nos fazer descobrir que em cada coisa que o homem produz e em si produz — uma palavra, um ato de renúncia ou de revolta, um silêncio de espanto ou uma marcha Almadanim — em cada coisa, que sem ela morreria, sempre vive e arde uma riqueza interior que não se esgota, a lava da tal razão que a razão desconhece, uma força de prodígio, um apelo irresistível que vai de homem a homem, que muda, mudará os homens e as coisas; o apelo que ilumina e aquece toda a obra de Manuel da Fonseca, todo o seu encantamento e toda a sua violência, toda a sua rudeza e toda a sua ternura.(…)»
(Mário Dionísio, 1969, Prefácio da OBRA POÉTICA de Manuel da Fonseca, Ed. Caminho, 8ª edição, Lisboa, 1984)
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Tejo que levas as águas
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar
Lava-a de crimes espantos
De roubos fomes terror
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amor
Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro
Lava palácios vivendas
Casebres bairros da lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta a outros mata
Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas
Lava avenidas de vícios
Vielas de amores venais
Lava albergues e hospícios
Cadeias e hospitais
Afoga empenhos favores
Vãs glórias ocas palmas
Leva o poder de uns senhores
Que compram corpos e almas
Desata abraços de lodo
Rostos corpos destroçados
Lava-os com sal e iodo
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar.
ª ed, ed. Caminho, Lisboa, 1998)