Ginjal e Lisboa

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15 abril, 2013

nos pequenos medos que a espaços te assaltam


Prendes-te na teia dos teus medos. Labirintos que percorres em segredo. Talvez se tivesses uma mão que te ajudasse nos momentos de solidão. Talvez se tivesses um corpo quente que se deitasse ao teu lado e te fizesse festas, meu querido, estou aqui. Talvez.

Andas às voltas na grande casa em que persistes, uma casa sem fronteiras definidas, onde as paredes se movem, o tecto desce, uma casa que não te abriga. Não sabes ao que andas, apenas sabes dos riscos, das indefinições, das dúvidas, das coisas informes que te rodeiam. Não dizes a ninguém dos temores, dos tremores, da ansiedade nocturna, das noites sem dormir. Finges, disfarças. O sorriso, uma triste farsa. 

Que destino estás a escolher para ti? Não sabes. 

O rosto mostra o cansaço. As rugas, a pele triste sem viço, manchas de idade alastrando, os olhos sem brilho. Tanto cansaço, tanto.

Para quê isto tudo? Perguntas, mas perguntas sem voz, na calada da noite, sem ninguém que te ouça, a medo.

Há quanto tempo não te debruças numa janela, não sentes o aroma fresco de uma rua feliz, há quanto tempo não sentes o coração num alvoroço de amor?

Tanto, tanto. 

Prendeste-te nesse labirinto e dele não vês como sair.

No entanto, por vezes, sentas-te às escuras numa cama triste e vazia e sentes que, dentro de ti, a inocência se mantém intacta, e que o teu corpo está ainda inteiro.



[Abaixo do poema de Tatiana Faia, temos uma nova grande intérprete, Yuja Wang que aqui faz uma entrada espectacular com Chopin, Gluck e Strauss.]


Janelas, paredes, ruínas - o velho casario do Ginjal



                                      ombro a ombro mede-se contigo
                                      na luz inclinada de clarabóias nos pequenos
                                      medos que a espaços te assaltam
                                      falará até cair de cansaço nunca dirá teu corpo inteiro
                                      e olhar limpo atravessando o limite da casa
                                      o teu pensamento como a mais intacta ânfora


                                      ['Naxos-IV' de Tatiana Faia in Lugano]

*


NON SENSE


Quando te vi, 
antes mesmo de romperem 
todas as madrugadas
tinhas 
uma réstea de vento no olhar 
e pássaros perdidos 
navegavam em ti
sem o limite de qualquer horizonte.
Encontrei-me ao ver-te, 
eu que me procurava 
por entre todas as multidões.
Porque não te alcanço 
se estás tão perto? 
Meus braços não chegam para te tocar,
cobre-te o rosto 
um silêncio de mármore 
nenhum rio te ouvirá dizer:
Quero-te



['Non sense' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]


21 maio, 2012

A perfeita, quase económica, concisão de um gesto que nos dispensasse da fala


Num fim de uma tarde silenciosa e imóvel, um homem e uma mulher sentam-se rente ao rio, de frente para o suave cenário de Lisboa. Passo perto deles e parecem conversar mas eu não os ouço. Mas vejo que olham coordenadamente no mesmo sentido. Olham em frente e olham os dois, depois passa um navio e ambos os seguem com o olhar, depois há qualquer ponto a meio e o olhar de ambos converge para esse ponto. Há ali uma coreografia harmoniosa dos olhares. Talvez já nem precisem de falar para que os olhares interpretem essa coreografia.

Neste entardecer de absoluta quietude nem os navios gemem na atracação, nem se ouvem gritos de gaivotas, nem passam carros que perturbem o silêncio. Parece que uma súbita paz desceu sobre este homem e esta mulher que parece dispensarem as palavras. 

Pairo por aqui, pela beira do rio, gaivota em terra esperando o momento certo para voar, mas dou por mim movendo-me também em silêncio. Lisboa, do outro lado, é uma pintura silenciosa, pequenas casas brancas e douradas, telhados rosados, e daqui parece ser apenas um desenho sem pessoas, sem ruído, sem mágoas, apenas um desenho minucioso de casinhas sossegadas.

E, então, do céu prateado nasceu uma luz dourada, que trouxe movimento e alegria a este espaço silencioso em que as palavras já não eram necessárias.

Nessa altura, o homem e a mulher levantaram-se ao mesmo tempo, olharam para trás ao mesmo tempo, uma última vez olharam o rio e Lisboa, e abraçados, levados por longas asas douradas, seguiram noutra direcção. Passaram por mim em silêncio. 

Claro que não me viram porque nessa altura também já eu voava, banhando-me na inesperada luz dourada que nascia do rio silencioso.



[Logo abaixo deste homem e desta mulher silenciosos que banhavam o olhar na luz que dourava Lisboa, poderão ler um belo poema de Tatiana Faia. A seguir um coro que jamais me cansarei de ouvir, Va, pensiero, sull' ali dorate]



Na beira do Tejo, num fim de tarde cinzento que, de repente, se pôs dourado, iluminando Lisboa



                           na superfície dos dias o vidro do inverno
                           sobre a praia é de repente demasiado
                           longo demasiado pesado esta indecisa
                           melancolia que habita o espaço de cada
                           pequena vitória ou de cada pequena alegria
                           precipita-se numa palavra anterior
                           à pele eu escuto-te e é apenas uma sílaba
                           o corte de um fruto à superfície
                           a perfeita quase económica concisão
                           de um gesto que nos dispensasse da fala


                           ['Outros Pássaros - V' de Tatiana Faia in Lugano]

11 março, 2012

Uma parte de ti ficava presa na noite naquelas ruas estreitas


Numa noite como a de hoje, quente, céu limpíssimo, iluminado, eu saio pela janela, olho o rio espelhado e saio a voar. O meu destino é inevitavelmente o lugar onde outras como eu se juntam sob os telhados abertos.

Ali chegada, aspiro a maresia, ouço o toada das ondas no musgo das paredes do cais, e depois, dançando, asas ao alto, feliz, esgueiro-me por entre os buracos das paredes e procuro as gatas de olhos verdes, as gaivotas de asas brancas e bico amarelo, as sombras dos poetas. Estou entre os meus.  Olho e vejo o céu, já não há telhas, espreito pelas janelas, abertas, e vejo o céu, e as gaivotas soltam gritos e as gatas roçam-se pelas paredes e soltam gemidos estranhamente humanos e não se ouve mais nada até que, logo a seguir, um a um, os poetas vão chegando e vão dizendo palavras como nuvem, névoa, silêncio, rio quase mar, amor, grito, rasgo, desejo, ave, asa, palavra, liberdade, e eu, em silêncio, escuto e sinto-me abençoada e olho o céu, e ouço este rio que tanto amo, enrolada no chão, no meio das redes dos pescadores, abraçada às gatas e gaivotas, mulheres da noite como eu.

Depois, quando saio, o luar mostra que nessa longa parede que vai rente ao mar alguém pintou um rosto, uns grandes olhos abertos, talvez os meus, talvez seja eu ali impressa, entranhada nestas paredes que me guiam. Uma parte de mim presa na noite, nesta rua estreita, nesta parede gasta.



[Aqui abaixo a parede com os grandes olhos que nos fitam, depois o poema de Tatiana Faia e depois o piano leva-nos até Debussy que esta semana nos acompanhará.]

Parede graffitada no Ginjaal, uma parede rente ao Tejo


                                 uma parte de ti ficava presa na noite
                                 naquelas ruas estreitas a subir e cor
                                 e areia um golpe de poeira nos olhos
                                 que te forçou a fechá-los por um instante
                                 cessar de ver é uma forma de silêncio
                                 mas depois terias sempre de regressar
                                 a estas casas onde a força do vento
                                 atravessa as telhas e em cheio no rosto
                                 te acerta onde a noite te rodeia
                                 um pouco mais que nos demais lugares


                                 ['Milão. II.' de Tatiana Faia in Lugano]

01 fevereiro, 2012

Penso no exíguo espaço em que temos vivido

 
Combinamos encontrar-nos na minha aldeia para depois irmos juntos para outro local mais urbano. Saio do trabalho e venho a correr para aqui. Quero apanhar ainda a luz da tarde. Mas apanho um céu em carne viva e um sol dormente a afundar-se no rio. Fotografo, rendida, mil vezes rendida, tantas quantas assisto a este feérico espectáculo. 

E vou andando, a luz do dia esvai-se num instante e eu vou andando enquanto a noite vai estendendo os seus véus de veludo. Quase ninguém e eu ainda sozinha, uma aldeia à beira rio e quase toda só para mim.

Um ou outro vulto, alguns que passam correndo, já sei que vou ser censurada pela minha imprudência mas não consigo ter medo de nada, aqui sinto-me em segurança, estou na minha aldeia. Ali mais à frente há árvores e eu fotografo-as, mágicas, contra um céu escuro, junto a um rio com reflexos de prata. Logo a seguir, andando eu bem rente à água vejo uma gaivota lá em baixo, sozinha, solitária, olha o mar, sente a maresia e eu sou ela, ali, sozinha aspirando o fresco da noite que, entretanto, desceu. Um  silêncio escuro, fresco, dourado pela memória.

E então chegas, que um dia ainda me acontece alguma, mas eu explico que não, gosto de andar por ali, rente ao rio, rente a estes monumentos belíssimos cheios de História, estes locais que tanto representam o meu País. Eu teimosamente sozinha na noite no coração do meu País, enternecida, agradecida. Pertenço a duas ou três aldeias e esta é uma delas - a ela estou presa por laços de devoção.



[Meus amigos, nesta noite fresca e mágica, desçam um pouco mais, que logo a seguir ao poema encontrarão uma bela interpretação de uma conhecidíssima música de Gershwin.]

Hoje, já noite, na Torre de Belém - uma beleza mágica


                         penso no exíguo espaço em que temos vivido
                         cidades que conheci em todas as suas horas
                         e mesmo nas mais amargas concedi que
                         poderia seguir tendo-lhes ainda amor
                         sobra este sentimento de pertença a insistente
                         impressão de estar ao chão costurada a nossa
                         sombra de no mais escuro silêncio
                         podermos apenas evocar a memória de alguns lugares
                         cuja imagem guardamos com teimosia quase terna


                         ['Lisboa IX de Tatiana Faia in Lugano]