Ginjal e Lisboa

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06 janeiro, 2013

E nunca saberei se um dia a encontrei, se agora a encontro


Dizes que não sei a importância que tenho para ti e ouço-o como um lamento. Contas-me que me comparas com outras mulheres.

Procuras-me, pois, noutras mulheres. 

Quem te veja dirá, contudo, que olhas para todas as mulheres. Vêem-se absorto, talvez até com um sorriso, e pensarão que queres seduzi-las, conquistador, caçador de mulheres. Mas não. Tu dizes-me que não e eu sei que não. Procuras nas outras aquela que um dia tiveste para ti.

Dizes que dissecas com cuidada precisão o cabelo, os olhos, a boca, a expressão, o sorriso, a cor, a luz - as mulheres que vês na televisão, nos cartazes na rua, nas que se sentam à tua frente. Em todas tentas descobrir um pouco de mim, dizes. E eu acredito porque sei que comigo falas sempre verdade. 

Lembrar-te-ás, talvez, do sorriso que sorrias para mim e que eu retribuía com outro sorriso, lembrar-te-ás da aura que o sol - que entrava pela janela quase fechada - deixava em nós, lembrar-te-ás, talvez, do afecto desmedido, exultante, sequioso, do desejo que nunca mais experimentaste, do amor que, imprevistamente, encontraste.

Dizes que os teus ímpetos se extinguiram, que não mais voltaste a sentir o esplendor que, nesses tempos, dourava os teus dias.

Mas isso foi num outrora incerto e distante. Agora eu estou longe, sou apenas uma recordação, sou uma luz que se apagou e que existe apenas no sangue que escorre do teu coração. 

Ou sou talvez apenas um sonho que um dia tiveste, apenas isso. Talvez.



[Abaixo da mulher que olha com coquetterie quem passa, um poema de José Bento, poeta de quem muito gosto. Logo a seguir mais um momento feliz. Mozart une, no piano, Filipe Melo e Luiza Dedisin]



Em Cacilhas



                                   Já vi esta cabeça, esqueci onde e quando:
                                   foi num outrora incerto, mas ainda cálido, frementes;
                                   depois era uma outra, e a mesma sempre
                                   no seu perene esplendor e poderio
                                   a chamar-me com sua aura, a arrastar-me consigo,
                                   exultante e sequioso, áspero e rendido,
                                   a ser desmedida e canto e suplicante cifra
                                   do que desejo mais e nunca saberei
                                   se um dia a encontrei, se agora a encontro:
                                   lodoso manancial de ímpeto e sangue, luz total.


                                   ['Cabeça' de José Bento in Sítios]


&



Regressas
sem nunca ter chegado,
sem nunca teres partido,
sonhando sempre 
novas distâncias.
Fui eu, eu só,
que desenhei
em mim,
todos os teus caminhos!


['Ou talvez , quem sabe...' poema da autoria de Joaquim Castilho em comentário abaixo]



16 outubro, 2012

Irás descendo a um poço, uma vertigem


Sobes, Poeta, ao ponto mais alto de ti. 

Aí o ar é fresco, quase rarefeito o ar, tão belo o horizonte que abarca, tão bela a paisagem que envolve, tão insignificante o pequeno mundo, tão próximas as nuvens. 

Olhas em volta e tocas o céu. Um frémito te percorre, Poeta. Ou é do ar azul que respiras ou é das palavras que voam à tua volta. Olhas o vasto espaço e dizes vento, ar, longe, mar, asa, transparência, luz, água - e as palavras vão-se juntando sozinhas.

Aqui onde estás, Poeta, este ponto, o vértice do mundo, é a Boca do Vento.

Cá em baixo corre o rio e parece uma pintura infantil, e os barcos parecem pequenos, cheios de pequenas figurinhas. Enches o peito de ar, queres estar sempre aqui, no meio de um céu generoso, dentro da Boca do Vento.

Mas depois, Poeta, vem aquela força que te impele para o centro de ti próprio e queres mergulhar, procurar outras palavras, palavras que tenham a sombra por entre as sílabas, que tenham dentro de si escuridão, silêncio, ou uivos, ou dor, ou finitude, ou tristeza, ou solidão

E, então, abeiras-te do abismo, e as palavras começam a misturar-se, um remoinho à tua volta, e são agora desejo, sangue, infinitos beijos, corpo, mãos, sexo, fim, princípio, ciúme, paixão, traição.

E, quando dás por ti, já uma vertigem fatal te puxou para o poço mais escuro, mais fundo, mais insondável.

Em busca da palavra mais perfeita, Poeta, mergulhas, perdido, rendido à fatalidade da poesia.

Quando, por fim, chegas ao fundo não abres os olhos, Poeta, achas que os perdeste na queda. Não vês, portanto, a fantástica luz que subitamente o ilumina.



[Abaixo da imagem do homem que se lançou no espaço, poderão ver mais um poema de José Bento, um Poeta 'cá muito de casa', é já o 14º poema aqui no Ginjal. E, logo a seguir, uma nova interpretação de uma sonata de Franz Biber.]



Buddy Jumping na Boca do Vento sobre o Ginjal



                                         Os poemas que escrevas,
                                         ainda que muitos, são
                                         um só, inacabável,
                                         interceptado um dia:

                                         sufocante abertura
                                         por onde irás descendo
                                         a um poço, uma vertigem,
                                         com uma única saída

                                         que, enfim, vislumbrarás
                                         quando já não tiveres olhos.


                                         [Poema nº5 de José Bento in Sítios]

13 agosto, 2012

Quase inertes as mãos, de tão ausentes


E se um dia a minha voz por ti se extinguisse? E se as minhas mãos de tanto te afagar quebrassem? E se o meu coração de tanto bater por ti parasse? 

E se o vento que por mim passa me levasse também? Ou levasse a minha voz? Ou apenas as minhas mãos que por ti e só por ti as cordas afagam?

E se este rio me afogasse de tanto que o tenho bebido com o meu olhar? E se eu me deixasse ir, transformado em música, em música ausente, em música perdida, em palavras inertes e vazias?

E se o ar que banha esta cidade me dilacerasse, me levasse e eu pousasse como uma ave sem vontade no beiral da tua casa?

Sou louco, dizes. Sou louco, sei. Sou louco quando me transformo em música apenas para entrar dentro de ti, sou louco quando quebro as cordas de paixão para que me ouças, para que me queiras. 

Ou não. 

Deixa. Não te quero mais. Vou deixar-me ficar aqui até que uma nuvem me envolva. Cairei então como lágrimas silenciosas sobre ti.



[Logo abaixo do homem ausente junto ao Tejo, um poema de um poeta que tem lugar cativo aqui no Ginjal, José Bento. Talvez seja melhor agora dar um pulinho aqui já abaixo para ficar a ouvir a Solveig's Song de Grieg numa interpretação inesperada a cargo da Orquestra de Câmara de S. João da Madeira, enquanto, depois, volta para ler o poema. é uma sugestão.]



Ao cair da noite, junto ao Tejo, de frente para Lisboa




                                 Quase inertes as mãos, de tão ausentes
                                 ou ébrias da música sorvida,
                                 - quem pede às cordas para serem cúmplices,
                                 imolando-se para atingir mais que palavras?

                                 Não teme o vento lacerar-se nelas:
                                 provoca-as, insidioso, denunciando
                                 quanto ousado as deseja
                                 e canta até quebrá-las.


                                 [Poema 33 de José Bento in 'Sítios']

04 janeiro, 2012

Solta-se a voz do peso que a retinha e era mais que sufoco e privação

     
Chegas aqui trazido pelo peso que te sufoca, pela privação de confiança, e deixas-te cair. No peito um aperto, na garganta um nó. A voz presa, os olhos baços, alheias-te de quem te olha. És tu e a tua voz que não se solta. Pensas, é esta timidez, é esta incerteza.

Aqui estás, olhando a cidade luminosa, a cidade que veneras e não tens a quem dizer, esta cidade é muito bela, olhas o rio e pensas, sem voz, este rio é tão bonito. Pensas, vou deixar que a voz se solte. Mas receias que a voz voe pelos ares, que alguém te ouça, reprimes esse tão receoso impulso. E se a voz se esvai por este abismo à beira do meu peito?

Ai, esta minha voz que não se solta tanto é o medo de que caia onde ninguém a possa salvar...

O coração bate com mais força, a aragem aproxima-se e sabes que ela quer levar as tuas palavras. Estás sozinho, ninguém te ouve. Ninguém com quem falar, a voz perdeu o seu rumo, a voz perdeu-se na ausência de companhia. Com quem ajeitar as palavras, com quem conversar?

Sentas-te aqui, aconchegas-te em ti próprio, as mãos juntas entre os joelhos, ombros curvados, e pensas, é desta luz que assim ilumina a bela cidade, esta luz queima-me as palavras, esta luz impede-me a voz.

E então um súbito sobressalto, uma mão no teu ombro, um sorriso, um sopro de voz, uma aragem que ondula rente a ti. Olhas. Ouves então: 'que música é esta?' e então, sem bordão, sem medo, ouves-te a dizer, 'esta é a música das sereias que habitam o fundo do rio'. E não acreditas que estas são as tuas palavras, que esta é a tua voz.



[A música de hoje, já ali abaixo do poema, é de uma tão grande beleza que não deverá ser perdida. Pegue nas inesperadas palavras do homem à beira do rio e, com cuidado, leve-as consigo, e segure-as com cuidado enquanto ouvir o piano, o violino e violoncelo do trio de Tchaikovsky]

Suspenso sobre o azul do tejo, homem contempla Lisboa


                                       Solta-se a voz do peso que a retinha
                                       e era mais que sufoco e privação,
                                       - sendo incerteza,
                                       receio de rasgar-se, projectando
                                       a tímida afirmação do seu impulso.

                                       Onde o instrumento para a sossegar,
                                       a acompanhar com uns tragos, o bordão
                                       para as forçosas passagens rente ao abismo?
                                       Já se aproxima na mão que vibra um tema,
                                       chega com o sopro que ondula a sua parte.

                                       O seu encontro só assim se exprime.,
                                       aí se basta, não compõe sem eles
                                       a altura de cada um e o seu total:
                                       trago a extremar-se em luz para fundir-se
                                       num latejo que a vai sustendo e todo a serve.


                                       (Poema 112 de José Bento in Sítios)

21 dezembro, 2011

Um beco denso chama ao segredar que não virá ninguém

 
Ninguém chama por ti. Ninguém te espera. Vais até onde os passos te levam que o coração ficou para trás, naquela casa velha, paredes caídas, janelas exangues.

Caminhas e ninguém te acompanha, ninguém fala contigo. Vais por este caminho que não te leva a casa nenhuma, que não te leva a ninguém. Vais rente a estas outras casas, casas vazias, casas desoladas, e tentas ouvir uma riso, uma voz, um gemido que seja. Nada. Ninguém. As vozes ausentaram-se destas casas há tanto tempo. Encostas-te mais, talvez das paredes venham segredos, um sussurro, uma respiração. Nada.

Então, começas, sozinho e quase silente: dá-me, meu deus, um sorriso, dá-me, meu deus, o calor de uma mão, dá-me, meu deus, uma luz, uma voz, dá-me, meu deus, algum alento, não me deixes aqui sozinho, meu pai, dá-me um rosto que se debruce sobre o meu, dá-me, meu pai, um olhar que me aqueça, dá-me, senhor, uma casa onde alguém me espere. Por aqui vou, meu pai, ao longo da margem deste rio e vou exausto, tão exausto, meu deus, tão exausto, dá-me senhor alguma ilusão, alguma alegria. Dá-me, senhor, uma mão que limpe estas lágrimas que me queimam, dá-me, senhor, um carinho, um qualquer afecto, estas paredes estão caídas, estas casas estão mortas, a minha casa está tão triste, meu pai.

E, então, sentes um afago ligeiro no rosto. Sorris. Com a tua mão sentes o teu rosto que tão suavemente foi acariciado. Sabes que foi o vento, outra pessoa diria que foi apenas o vento. Mas que mal tem?

E então, acompanhado pelo vento, caminhas mais feliz, já não vais tão sozinho.



[Não deixe de buscar o som de deus nos violinos de Bach. Está logo a seguir ao poema de José Bento]


No Ginjal, casario velho, abandonado, o Tejo bem vivo e alguém que olha


                                       Uma estrada, um carreiro
                                       inscrito por passos que o não lembram;
                                       um beco denso chama
                                       ao segredar que não virá ninguém.

                                       Aí mantém-se a casa,
                                       apesar de tão ausente em anos
                                       de estar e não estar
                                       senão com o dono, como errante.

                                       Onde vozes e luzes
                                       se conciliam a cingir os dias;
                                       e palpitante, a sombra
                                       prolonga quartos, orações, vigílias.

                                       Margem de um rio exausto,
                                       esse domínio jaz incerto
                                       com astros, ervas, sangue,
                                       cifras para interrogar ou prescrever.

                                       Ao findar essa estrada
                                       outra começa, e um descampado;
                                       onde se tentam vagas
                                       passadas a conduzir a um acaso.

                                       Se um apelo nos laça,
                                       talvez venha de lá, mas sem um nome
                                       a trazê-lo com rosto.
                                       E só nos move o longo vento ao longe.


                                      (Poema 69, 'a Ricardo Defarges' de José Bento in Sítios)

01 dezembro, 2011

Há um homem além em busca da unidade. Vêmo-lo a percorrer a despojada linha de um caminho translúcido.


Caminhas ao longo do Tejo, junto a uma linha feita de palavras. És um homem só, e caminhas sem ver os que te rodeiam; vais, errante, despojado, quase como se não tivesse corpo, apenas ideias, apenas sonhos.

Passas e ninguém te vê. Só eu.

Fiquei a olhar-te. Passavas e ninguém detinha o olhar em ti, eras um homem que seguia sozinho uma linha feita de palavras. Ali ias, como se te dirigisses a casa, uma casa templo, o teu domínio, só teu.

Passaste por mim e também não me viste. E, no entanto, eu fiquei presa à força da tua imagem, uma imagem una, íntegra, um homem denso, um homem que transporta uma luz em sua volta, talvez sejam raios que saíam do teu peito, raios de fogo. Fotografei-te, três vezes o fiz e tu não me viste, não vias ninguém e ninguém mais te viu.

Invisível, seguindo o translúcido caminho das palavras, soletranto em silêncio as amáveis sílabas, as indizíveis letras, uma breve toada, um ligeiro som, o suave gemido das palavras que nascem dentro de ti. Passaste e eras um homem em busca da sua unidade, um homem pronto a reduzir-se a ninguém se alguém tocasse os seus pensamentos, as suas palavras, os intangíveis sonhos.



[Nesta semana de Chopin, abaixo, depois do belíssimo poema de José Bento, Maria João Pires traz-nos uma Fantasia - um tema e uma interpretação que atravessam os tempos para se encontrar aqui connosco]

Percorrendo a despojada linha de um caminho translúcido


 A António Ramos Rosa


                                Há um homem além em busca da unidade.
                                Quem o avista descobre ser menos que o circuito
                                que só inteiro se fecha e acende o centro
                                onde se adensa e expande o seu domínio:

                                é um segmento errante, nunca se há-de saber
                                se um dia foi diferente e outros corpos teve
                                a projectar em volta os raios do seu peito:
                                o fogo e a neve rútila, um desvairo de flechas.

                                Vêmo-lo percorrer a despojada linha
                                de um caminho translúcido a conduzir à casa
                                que a si mesma se erige para quem partilhar
                                o coral desse templo ao alongar a nave

                                da palavra total feita por ele
                                para ser pleno,

                                                      ainda que indizível
                                pelos que tudo julgam dizer, ignorando
                                reduzir-se a ninguém ao tocar as suas sílabas.



(Poema 7,  'Há um homem além em busca da unidade' de José Bento in Sítios)

 

03 novembro, 2011

Quando escreves com uma das mãos prendes o papel

    
Quando escrevo aqui, escrevo com sentimento mais do que com pensamento. Quer a minha mão direita, quer a esquerda são o prolongamento do meu coração. As minhas mãos escrevem, correndo velozes sobre o teclado, semeiam palavras, sem intenção, sem ambição, sem cautela, sem medo. Tento nem pensar, não quero distanciamento, não quero ser cerceada, e escrevo como se falasse, ávida, volátil. Quero que as minhas palavras carreguem tempestades, desejo, paixão ou luz, silêncio, simplicidade.

As minhas palavras sou eu, sem reservas, sem filtros, sem véus, as minhas palavras são laços que estendo a quem as ouve, a quem as lê. Quem segura a ponta desses laços não tem apenas as minhas palavras - segura a minha mão, tem um pouco de mim.



[Se acredita na qualidade dos meus conselhos, peço-lhe então que, depois de ler o belo poema de José Bento, desça um pouco mais. É com saudade que hoje me despeço do ciclo musical que aqui decorreu durante estas semana, 5 Árias e Duetos, e despeço-me com um grande de Portugal, Tomaz Alcaide. Ouçamos juntos a sua fantástica voz num líndissimo trecho de Bizet]

Homem no Ginjal

                         Quando escreves com uma das mãos prendes
                         o papel, que a outra vai lavrando,
                         semeando a palavra e a turbação
                         no impulso que excede
                         a força que as unifica e as separa,

                         sob a luz a prometer que teu ardor
                         ausculta um chão ávido e volátil.

                         Tua destra segue o coração, prolonga-o;
                         a outra, mais perto dele um infindo nada,
                         nunca se distancia nem alheia
                         da matéria da fala

                         que, em tenso adágio ou numa tempestade,
                         de teu sangue transbordam, incorporam
                         desejo e posse, ruína e despedida.



                         (Poema de José Bento in Sítios)

01 agosto, 2011

os olhos cerro para acender neles altas lembranças, delírios que adivinho

Por ti designada Artemes, a esplêndida arqueira, por ti amada e jamais esquecida, de ti a eterna e nunca lograda namorada,

o torso, os cabelos, os seios, o ventre, as mãos

o retrato que não conseguias destruir

De ti me afastei num espasmo de onda

e nunca mais voltei.


Há pouco, em Cacilhas, mesmo em cima do Tejo


Que evidência murmura o gorgolejo
da água em teu corpo!:
na curva da nuca para os ombros
sua língua derrama-se,
tarda no enleio de uma cintilação
e espuma até à concha de tua mão que a espera,
a colhe e torna afago
do peito que se arrepia e inturgesce.

Pausa breve esse arpejo,
tão ténue que teus dedos
filtram quase prazer na tepidez macia:
sua avidez flui, a tentear
o mais secreto de ti, mais desejado.

Calado o jorro que te fez despir
e te vestiu, diáfano,
querendo eu ser sua matéria,
concebo-te como ninfa de uma fonte
ao modelar-te com o que de ti lembro
e a secura cujo ímpeto em mim cresce
até abrir-se numa espera cálida.

A parede que te raptou e veda
é incitante distância, tão delgada
que oiço teu fôlego, tanto
que antecipo a meu lado tua graça,
mais agressiva pelo rubor com que arde;

os olhos cerro para acender neles
altas lembranças, delírios que adivinho
ao encaminhar-te para mim num espasmo de onda.


(Belo, belo, belíssimo poema (13) de José Bento in Sítios)

13 julho, 2011

A noite é breve e sôfrega. Veloz e esquiva a luz enlaça a luz.

É de noite que eu vivo melhor.

Espero que a noite sorva o dia para me sentir pronta.

É de noite, no silêncio da noite, ou nos sons da noite, que a vida, para mim, ganha nova vida.

O sono - é bem verdade - furta-me o tempo.

É de dia que os sonhos são melhores mas é de noite que melhor os concretizo (ou que concretizo os melhores) - acordada.

A noite guarda, dentro de si, a manhã, o dia seguinte. Mas é breve, a noite, é sôfrega.

Ginjal e o Tejo e Lisboa - entre a noite e o dia

A noite é breve e sôfrega.
Veloz e esquiva a luz enlaça a luz:
do tardio crepúsculo
vai emergindo a precoce manhã,
e o sono furta-nos o tempo
ou rapta-nos e afoga-nos com ele,
a abreviá-lo ou sumi-lo ou devorá-lo
onde não se tem um sonho para achá-lo.

(Poema XXXV de José Bento in Sítios)

05 junho, 2011

Atinge mais profundo o toque de uns lábios sem palavras que o golpe em busca do sangue derradeiro

Não quero palavras onde basta um olhar, não quero palavras onde bastam os teus lábios.

Na estação de embarque de Cacilhas, belo perfil de homem, bela silhueta

Esta luz exalta um corpo, ao irradiar
seu jorro imprevisto e temerário,
deslumbrante enquanto se difunde
e paira entre uma lâmpada e os olhos
que em recompensa lhes cedem seu abrigo:
campo sereno, completo ao afirmar-se.

Aqui não permanece, não se amplia
além do feixe que súbito se anula:
nunca é no olhar onde pousa uma ferida.
Mas em sua brevidade, que poderá
ser lampejo de uma pedra, de uma pétala,
adverte que atinge mais profundo

o toque de uns lábios sem palavras
que o golpe em busca do sangue derradeiro.


(Poema '35. Esta luz exalta um corpo' de José Bento in Sítios)

09 maio, 2011

Mais cálido e infindo é o espaço

Não sei se sou livre ou se vivo aprisionada na minha liberdade. Às vezes quanto fogo a impelir-me a furar este meu imenso espaço. Às vezes, pela alvorada.

No Ginjal, hoje, numa manhã limpa, gaivota orgulhosa contempla o Tejo, Lisboa, o espaço

Mais cálido e infindo para a ave
é o espaço onde vive aprisionada
se se evola em seu canto
- no fogo que a incita ao colher a alvorada.

(XIV de José Bento in Sítios)

26 abril, 2011

Lugar exausto por não mais se suster do sangue límpido que foste

Toco o vazio e já não te encontro.

E mal encontro aquela que fui.

Tento lembrar-me, aproximo-me, rondo a memória mas já não estás lá.

Apenas encontro o vazio.

Num fim de tarde no Ginjal, estas casas desabitadas iluminam-se no meio de uma escuridão radiosa, o Tejo lento e cúmplice por baixo

Lugar exausto
por não mais se suster
do sangue límpido que foste:

lembro,
             aproximo,
                             rondo,
canto,
          toco esse vazio
para reconhecer-me
na escuridão radiosa
da casa por ti desabitada.


(XXVII 'Lugar exausto', de José Bento, in Sítios, livro quase sagrado)

17 abril, 2011

Por um sopro na cinza onde o fogo, de tão breve, fora frio

Às vezes penso em ti e para tão perto de mim te chamo que te sinto, como se estivesses aqui, ao pé de mim, quase sinto o teu afago.

E o teu nome: eu não sabia dizê-lo, lembras-te? E então dizia meu menino, meu amor.

Alguém mais te chama como eu te chamava, alguém mais te olha como eu te olhava?

Em Cacilhas, às portas do Ginjal, alguém deixou calças, tshirt e camisa - vá lá saber-se porquê.

Por um sopro na cinza
onde o fogo, de tão breve, fora frio,
sabemos que estiveste aqui:
um afago vazio
demasiado em ti,
só no verde que a teu nunca levou.

Como o teu nome.
- Quem mais te chamou?

(François, de José Bento in Sítios)

12 abril, 2011

Uma boca na outra, dois hálitos num só, cada vez reduzem mais o sulco que principia a escoar-se

Hoje quero dizer-te que não esqueço os momentos em que as nossas bocas se uniam, em que a minha carne se completava na tua carne, em que eu sentia a tua pele sobre a minha pele, em que as tuas mãos me percorriam e as minhas te percorriam a ti.
Não esqueço.
Não esqueço a minha mão no teu cabelo.
Não esqueço o teu olhar mergulhado no meu, até que o meu rosto deixava transparecer todos os meus segredos.
Não esqueço as pernas abraçadas, não esqueço os nossos corpos a celebrarem o sentimento que nos unia.

Não sei, hoje, quando voltaremos a ter estrelas para iluminarem a nossa festa, não sei quando completaremos a dança que iniciámos e que nos transformou.

Mas hoje digo-te, uma vez mais: vives dentro de mim.

Cadeira num dos cais do Ginjal, mesmo em cima do Tejo, de frente para Lisboa, a gloriosa

Uma boca na outra, dois hálitos num só,
cada vez reduzem mais o sulco
que principia a escoar-se.
Uma das mãos sustém uma nuca sem peso,
abeira seus cabelos, luz a apagar os ombros;
febril, a outra requesta
curvas ávidas, inquietas, que respondem
à tensão e desordem de um apelo.

Assim as mãos percebem ser a hora
de cumprir o que desejam.
Mas nenhum conhecimento
as persuade a não estremecerem
com a radiação do sangue desvelado,
turbando-as, aplacando-as
na esperança de se apossar do que tenteiam:

os olhos absorvem quanto se lhes oferece
até reconhecerem não ser o bastante
para aplacar o recíproco alvoroço:
cada corpo tem de apurar no outro
a própria claridade.

Nada conspira para refrear
a ascenção de ambos,
com serpeantes olores na sua fala,
as pernas abraçadas, não a travar a sua fuga
mas porque assim se conjugam no voo
e transbordam num só, insaciado.

Os corpos concentram em seu vértice veemente
a premência que atingem para dar-se,
- carne a completar-se em outra carne
numa unidade colhida e laborada:
orvalho ou sortilégio da pele sobre a pele,
ímpeto quase dolorido
a esvair-se e deleitar-se em gomos
sôfregos da quietude prometida
para a celebração que incitam e consumam.

Os segredos de um rosto transparecem
por fim na abundância do outro.

Não sabe nenhum deles se hoje haverá noite,
mas estrelas hão-se acordá-los ao partirem
para na alva recriarem a música sem pauta,
a dança onde completem a viagem
que jamais termina sem nos transformar.

(Poema 29, 'Uma boca na outra', belíssimo, belíssimo poema de José Bento in Sítios)

02 dezembro, 2010

Estás todo em ti, mar, e todavia como sem ti estás, que solitário, que distante de ti mesmo.

Quase tenho ciúmes das ondas do mar quando é nelas que pousas o teu olhar.

Que distante estás....

Tal como as ondas, o meu pensamento vai e vem, partindo para nenhum lugar.

Pulsa-me o coração e não o sentes, estás longe, a olhar o mar.


(O rebentar das ondas num dia de bravura do Tejo, contra um dos cais do Ginjal)

Estás todo em ti, mar, e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sentes...
Que plenitude de solidão, mar solitário!

(Solidão de Juan Ramón Jiméneztradução do poeta José Bento)