Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa
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26 julho, 2019

Nem no cântico dos seios nem no soluço das pernas





Digo-te que sou bicho vindo do ventre da Terra, que ando pelos campos enterrando as mãos no barro, deslizando pelos campos de urze e rosmaninho, raspando as unhas no tronco das árvores, o corpo despido para melhor receber o sol e o canto dos pássaros, o colo contendo o soluço que cala uma saudade desconhecida, as pernas tremendo com o peso de uma ausência indefinida. Digo-te que sou uma mulher que vem do tempo dos silêncios e das trevas, que mergulho as mãos nas águas frias e limpas, no corpo quente das palavras. Digo-te que me entrego ao sonho, ao acaso, ao luar, à noite, à loucura. Digo-te sem saber porque digo e  digo-o de joelhos, digo-o como se dissesse a verdade.

E, então, fecho os olhos, aspiro o ar fresco dos montes, imagino raízes que se enleiam, cânticos de água nascente, encruzilhadas nas florestas, clareiras fulgentes, abismos atraentes. E, quando menos espero, começo a ouvir a tua voz que me chega não sei de onde, uma voz funda e rouca que vem talvez de dentro da Terra, talvez de dentro de mim, e que me traz o perfume dos segredos sem nome, uma voz que transporta todos os perigos do mundo.


É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos te entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra


[De David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar']

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[Fiz as fotografias no Ginjal]

24 julho, 2019

Para que tu existas




Mil rostos, mil nomes, mil identidades. 

Numa ilha, numa casa perdida no mundo, inventando personagens, sem leme, sonhando com os deuses que habitam memórias muito antigas, construindo segredos, vive aquele que por vezes acredita que não existe. Não sabe se as feridas que recorda são suas, se dos lobos que cruzam as noites tristes, se dos personagens solitários que atravessam as madrugadas em busca do silêncio. Não interessa: são feridas intactas para as quais não há consolo. 

Os nervos adormecidos, as lágrimas esvaídas, as mãos sem força, o coração falando uma língua estrangeira, ele segura a taça vazia na qual se reflecte um corpo indefinido, desconhecido, um corpo que vem de um outro tempo, de uma terra desconhecida e longínqua, um corpo feito de palavras nuas, inexistentes.


Para que tu existas
com todos os teus nervos
como linhas de força
empunho a minha ferida
como se fosse um leme
Os segredos mais vivos
assomam-se a um rosto
onde sonham as ilhas
onde crescem as taças
dos deuses terrestres


[De António Ramos Rosa in 'A intacta ferida']

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Como sempre, fiz as fotografias no Ginjal

23 julho, 2019

Em mim, imaterial e ausente





Pego em palavras e misturo-as. Não quero saber do sentido das coisas. Se o poema tem palavras como 'outro', 'longe', 'imaterial' e 'ausente' é nelas que, ao acaso, vou pegar para desenhar outros significados. Acasos. Gosto de acasos. Assim também a escolha do poema. Abro a estante, puxo um livro sem saber o que procuro, disponível para o acaso. Com ele ao meu colo, sem saber o que vou encontrar, abro numa página e, sem pensar no que transcrevo, transponho para o écran branco as palavras que não são minhas. Aliás, sinto que nunca são minhas as minhas palavras. Só quando, às cegas, deixo que se percam de mim. Por exemplo, se escrever, do nada, sem querer saber do seu significado, qualquer coisa como: 
Traduz o que escrevo, encontra o que se oculta no que escrevo, inventa uma língua só tua para o que se esconde à vista de todos, inventa sentimentos para elas, abraça o remoinho que se forma quando se soltam os pássaros que as habitam, guarda-as onde eu não mais as encontre, para sempre escondidas de mim, numa outra língua, inexistente, indizível
Aí, quando as palavras não fazem sentido e nascem do nada, aí talvez sejam minhas. Mas não sei, não as reconheço.

Mas estas que agora vou escrever não são minhas. São nada. São sombras, reflexos. Colho-as do poema, misturo-as, abro a janela e deixo-as sair: 
Estás aqui e estás longe. Respiras e não te ouço. Aproximas-te para te esconderes dentro de ti. Foges. Quanto tempo passou desde que deixaste de existir? Estás mas nunca és tu. Brincas e finges que estás num jardim mas não estás, estás ausente, longe, muito longe, imaterial, sem rosto, sem nome, perdido num vasto e profundo silêncio. 
Também eu sou nada, uma presença intangível feita apenas de palavras, alguém que é apenas um rasto que fica de quem passou. Não fujo. Simplesmente não existo. Uma presença ausente. 
Perdidos num espaço vasto, infinito, silencioso. Ambos. 
Palavras sem significado, pois. Poeira cósmica que ficará a flutuar na imensa distância que nos cerca.


Quem está aqui
cada vez mais longe?
O que fala foge
para dentro de si.

Quanto tempo passou
pelo que já não sou
em que outro lugar
onde não estou a estar?

Alguém brinca infinitamente
num jardim e em mim
lembrando-se de isto em mim,
imaterial e ausente.

E sinto em alguém
que tudo é tudo
e eu também,
vasto e profundo.


['Lugar' de Manuel António Pina in 'O caminho de casa']

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(Fotografias minhas, feitas no Ginjal)

24 março, 2015

Talvez seja apenas uma confidência


São instantes mas eu queria que fossem horas. E se são horas eu queria que fossem dias. E os dias somam-se aos dias e já são meses. E em cada instante desenhamos confidências, segredos inocentes, uma verdade tão nossa que parece ter nascido connosco, um pecado original que transportávamos sem o saber. Mas não é pecado, não, parece uma bênção, uma magia.

Afasto-me por vezes, quero ver as palavras de longe, quero ver se brilham como brilham quando em silêncio nos enunciamos secretas descobertas, memórias partilhadas, um registo de uma comunhão que parece imaginada.

E eu quero fechar a minha mão na tua para que feches nelas o nosso segredo, para que as palavras não voem, para que não fiquemos desamparados, sem as nossas asas que são comuns, sem os nossos sonhos que são os mesmos.

Fecha as tuas mãos nas minhas, envolve-me com um abraço, não deixes que os instantes se vão, prende as tuas palavras às minhas, e deixa-te ficar, sereno e alegre, olhando os meus olhos ou os meus sonhos. Guarda bem os nossos segredos. Nas nossas mãos. Meu querido.








Talvez seja apenas uma confidência. Sabemos
que cada vez mais é de nós que essas palavras
se afastam e assim se compreende melhor o sentido
que têm. Depois havemos de esquecê-las, para que se tornem
iguais a um segredo e se possa finalmente dizer
como tudo já cabe noutras mãos tranquilas e abertas.


[de Fernando Guimarães in Os caminhos habitados]




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Hayley Westenra interpreta Bachianas Brasileiras No. 5, Aria,  Heitor Villa-Lobos

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As fotografias foram feitas no Ginjal

...

20 fevereiro, 2014

Sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas - bem o diz Cora Coralina


Saber viver deveria ser a principal disciplina que nos ensinavam na escola: saber agradecer a vida que nos é dada a viver, saber vivê-la o melhor possível, saber tornar melhor a vida dos outros, tornar este percurso numa aventura boa, saber acarinhar a terra, amanhá-la para que fique ainda melhor para os que vêm a seguir, saber fazer com que a nossa vida não tenha sido em vão. 

Encher a nossa vida de abraços, beijos, sorrisos, crianças, afectos, mãos que se abrem para receber outras mãos, corações disponíveis para acolher outros, saber olhar com carinho o céu, a terra, o mar, as plantas, as pedras, os animais. Tudo isso. 

Saber viver.


Graffiti num muro junto à ex Lisnave

Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas. 
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove. 
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar

        ['Saber viver' de Cora Coralina]




Documentário Cora Coralina - realização: ALLTYPE


05 fevereiro, 2014

Com tantas guerras que travei já não sei fazer as pazes


Caminhando rente a um grande muro, numa avenida vazia, numa manhã sombria, chuvosa, quase arrastada por um vento frio, começo a ouvir vozes vindas da parede, choros, súplicas. Ninguém. Abrando, tento perceber se sonho, se testemunho qualquer situação inesperada. Suspiram, lamentam-se, as vozes parecem sair de dentro do muro. Acelero o passo, começo a sentir medo. Inquietação. Ouço passos, parecem acompanhar os meus. Não vejo ninguém. 

No céu as gaivotas gritam como loucas. Um gato foge assustado.

Então vejo uns olhos tristes. Olham-me. Pedem ajuda. 

Cobardemente afasto-me. Não sei lidar com situações extremas. Memórias, saudades, uma história estropiada, trabalho arrancado a quem queria trabalhar, tantas saudades a destas pessoas cuja vida ficou presa aos barcos que por aqui acostavam. Vidas cortadas ao meio.

Fujo, tanto abandona dói-me. Os muros estão desolados. Por aqui já não passa ninguém.


No silêncio das manhãs sombrias e chuvosas, nem só as vozes incertas e invisíveis, ou as tristezas de certos olhares nos inquietam. Os nossos medos parecem soltar-se de certas memórias que habitam o lodo dos muros desolados, e das pedras rotas e maceradas das avenidas vazias. 
Apetece-nos gritar com a loucura das gaivotas que nos miram e vigiam essas inquietações. A cobardia é em si mesma a situação extrema que nos arrasta, como gato que foge, para as memórias de tantas vidas cortadas ao meio.
Se estamos vazios, mais inquietações nos preenchem o espírito, ávido de respostas que não surgem na vertigem da caminhada.
Na guerra que travamos, entre ruínas de tantas batalhas, a inquietação é coisa para acontecer e não perceber. Entre tantas perguntas, em autêntico torvelinho, haveremos de chegar algures pois há sempre qualquer coisa que teremos que fazer.
Fugir da inquietação é abandonar a dor que já ninguém passará.

[Texto a itálico da autoria do Leitor dbo no comentário aqui abaixo]

Grafitti num muro junto à antiga Lisnave




A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes 
São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha 
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda 
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda 
Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas 
Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho 
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda

['Inquietação' de José Mário Branco, interpretada por Camané e os Dead Combo; maravilhosa animação de Ryan Woodward]


13 janeiro, 2014

Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada.


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Graffiti numa parede junto à ex-Lisnave

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Cacilhas numa manhã fria de chuva

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada. 
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem chiadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Junto ao Tejo, numa manhã de névoa e frio

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.



'Todas as vidas' de Cora Coralina dito por Clemente Drago


Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas ou Cora Coralina, (Cidade de Goiás, 1889 — Goiânia 1985) foi poeta e contista brasileira. Produziu uma obra poética rica em motivos do quotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás. Começou a escrever poemas aos 14 anos, porém, publicou seu primeiro livro em 1965, aos 76 anos. 

12 janeiro, 2014

Moço, cuidado com ela! Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...


Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia. 



Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês. 




Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
 julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.  


E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!


['Aviso da Lua que menstrua' de Elisa Lucinda dito pela própria no espectáculo"Parem de falar mal da rotina"]


07 janeiro, 2014

Já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida.


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: 
Se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? 
Às vezes dá certo. 
Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase 
"se eu fosse eu"
que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. 
Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. 

Graffiti numa parede junto à antiga Lisnave

Experimente: 
Se você fosse você, como seria e o que faria? 
Logo de início se sente um constrangimento: 
A mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. 
No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. 
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado.
Como?
Não sei !
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. 
Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. 
E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao Futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. 
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. 
Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. 
E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. 
Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. 
Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.



"Se eu Fosse Eu" - ( Clarice Lispector ) - [ Na voz de Aracy Balabanian ]


(aqui)

05 janeiro, 2014

Mulher, essa espécie ainda envergonhada


Mulher. Eu sou mulher. Sinto-me muito mulher. 

Uma vez, uma amiga contou-me que um amigo dela que me tinha conhecido lhe perguntava sempre por mim e, quando ela brincou com ele, ele disse-lhe que achava que eu era a mulher mais mulher que ele tinha conhecido. Nunca nada sobre mim me agradou tanto. 

Uma mulher muito mulher. Toda mulher. Orgulhosamente mulher. Feminina, namorada, amante. E mãe. E muito mãe. Mãe desdobrada em mãe dos filhos dos filhos, cada vez mais mãe.

Ser mulher não me pesa. Ser mulher deixa-me voar.

Mulher desde que nasci, sempre. Em cada instante. Mulher. Escrevo palavras de mulher. Sou corajosa como só as mulheres sabem ser. Sou brava e sou doce como só às mulheres fica bem ser.

Mulher.


Graffiti numa parede perto da ex-Lisnave




Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira
- cargo muito pesado pra mulher,
essa espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


['Com licença poética' de Adélia Prado, aqui]



Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


[Início de 'Poema de Sete Faces' de Carlos Drummond de Andrade']


29 março, 2012

A dança vem do colorir da mente, e o amor de um toque invisível

 
Assim és tu, mulher que olhas de frente os pássaros azuis; e assim sou eu que desço até ao rio cujo azul se adensa com o cair da noite.

Estremeces, sentindo que todas as partículas luminosas que atravessam os ares, carregadas do azul do céu e dos mares, desde as luzes do cais, às luzes da cidade, à grande luz azul do farol, até às luzes felizes que dançam dentro dos teus olhos, são formas de te aproximar do teu amor longínquo. Assim estremeço eu também.

Não chove e o ar está seco, as árvores estão secas, as pétalas secas tombam junto aos nossos pés atordoados e, lá longe, o meu amigo tem os olhos secos de tanta solidão. 

Mas o ar transporta estas invisíveis partículas azuis que trazem e levam dentro de si indizíveis afagos. As que hoje de noite pousaram no meu rosto, depois de dançarem em lânguidos e quase fantasmagóricos movimentos, atravessaram continentes, cruzaram um oceano, voaram lá de bem longe e trazem ainda o calor terno e bom do olhar sem lágrimas de um secreto ser que habita bem longe, um amigo silencioso, alguém que gosta de olhar as montanhas, de sentir os ventos, alguém que tem um bom e triste coração.

Hoje, de noite, quando vi o rio, já não havia faluas no Tejo e as gaivotas já dormiam no fundo do mar. Mas hoje, repito, hoje senti que um secreto e longínquo lamento, solto no vento, fragmentado em miríades de pequenas e luminosas partículas azuis, vinha dançando no ar, vinha colorir a minha mente, beijava-me com uma suavidade quase dormente.

Por isso, não deixes, amigo, não deixes que a ternura seque dentro do teu coração, deixa, deixa, amigo, deixa que as minhas palavras para sempre povoem o teu olhar.



[A rapariga da pele carmim - que, acima, se transformou na rapariga de pele azul - começou aqui abaixo, nas mãos de Ana Marques Gastão. A seguir, hoje, uma música de invulgar harmonia. É Mendelssohn a despedir-se]

Painel pintado numa parede da cidade de Almada, no Largo Gil Vicente, ex-Largo do Repuxo


                          Estremeço, estrangeira.
                          Estranhas, rodo as maçãs
                          entranhadas no rosto;
                          sujeito-as ao pó de arroz,
                          sabendo que, ao toque,
                          são início e logo fim,
                          laboriosa dança.

                          A dança vem do repouso,
                          de luminosas partículas,
                          e também do movimento,
                          mas já sem lamento.
                          A dança vem do colorir
                          da mente, e o amor
                          de um toque invisível.


                          ['Pele de Carmim' de Ana Marques Gastão in Adornos]