Digo-te que sou bicho vindo do ventre da Terra, que ando pelos campos enterrando as mãos no barro, deslizando pelos campos de urze e rosmaninho, raspando as unhas no tronco das árvores, o corpo despido para melhor receber o sol e o canto dos pássaros, o colo contendo o soluço que cala uma saudade desconhecida, as pernas tremendo com o peso de uma ausência indefinida. Digo-te que sou uma mulher que vem do tempo dos silêncios e das trevas, que mergulho as mãos nas águas frias e limpas, no corpo quente das palavras. Digo-te que me entrego ao sonho, ao acaso, ao luar, à noite, à loucura. Digo-te sem saber porque digo e digo-o de joelhos, digo-o como se dissesse a verdade.
E, então, fecho os olhos, aspiro o ar fresco dos montes, imagino raízes que se enleiam, cânticos de água nascente, encruzilhadas nas florestas, clareiras fulgentes, abismos atraentes. E, quando menos espero, começo a ouvir a tua voz que me chega não sei de onde, uma voz funda e rouca que vem talvez de dentro da Terra, talvez de dentro de mim, e que me traz o perfume dos segredos sem nome, uma voz que transporta todos os perigos do mundo.
É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos te entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra
[De David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar']
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[Fiz as fotografias no Ginjal]