Vem, meu velho, anda comigo neste barco, ajuda-me a levá-lo até ao mar. Alimentar-nos-emos de peixes. Observarei as espécies com estes binóculos, que os meus olhos já de pouco me servem. E, o que os meus olhos não virem, nem com binóculos, contas-me tu, meu velho. Dir-me-ás de que cor são os peixes, com a luz, ou com a sombra, se andam à superfície ou na fundura, dir-me-ás se andam em grupo ou solitários. Não te preocupes por não saberes de biologia marítima, meu velho, eu não sei levar o barco e eu mal vejo, ser-me-ás muito útil, está descansado. Estou a contratar-te tal como aluguei o barco.
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Tantos dias já passaram, meu velho, ou talvez meses, tantas voltas já demos aqui neste rio. Já me disseste que o vias azul, depois verde, outras vezes chumbo, outras prata, outras dizes-me que são de cobre estas águas. Gosto de te ouvir descrever este rio. E gosto das palavras que usas para me descreveres os peixes, os polvos, as algas, usas palavras que nunca li nos meus compêndios, tens a fala dos poetas. Pergunto-te pelo formato, pelo tamanho, pela cor e tu falas-me em dança, falas-me em brilho azul, em ondulações que transportam cores, falas-me num sol dourado que enleia peixes que deslizam levados pela música das marés. E quase vejo o que tu me descreves. Gostas que eu te conte dos meus livros, dos meus estudos. Mas eu sei tão pouco ao pé do que tu sabes, meu velho amigo. Que posso eu contar que verdadeiramente interesse?
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Tantos meses já passaram, meu amigo, ou talvez anos, tantas e tantas voltas já demos aqui neste rio. Nunca vivi tempos tão felizes, meu amigo. Contigo tenho aprendido a liberdade, a amizade, o gosto pelas palavras. Olha, tenho uma novidade: hoje descobri os meus velhos óculos. Vou pô-los e vou também usar os binóculos. E hoje és tu, meu amigo, que te vais sentar porque hoje sou eu que vou descrever para ti aquilo que vejo.
Escuta, meu amigo. Já consigo ver. Fecha os teus olhos que hoje vais tu tentar ver através das minhas palavras. Estou deslumbrado, até me custa a acreditar, parece um sonho. Vejo as gaivotas brancas, de longas asas, que nos acompanham. Vejo, lá ao fundo os flamingos rosados, vejo abetardas e sisões, vejo tantos pássaros, meu amigo, tantos, de tantas cores. E olha, meu amigo, nas águas que hoje estão de todas as cores, vejo não peixes, meu amigo, mas sereias, tantas sereias, meu amigo, tantas, tantas, cardumes de sereias. Estão de seios descobertos, luzem ao sol e riem-se para nós. Escuta como cantam, escuta meu amigo, escuta como nos chamam. Ah meu amigo, tantas, tantas sereias. Ah meu amigo, ah meu amigo. Anda, abre os olhos, anda, anda... Ajuda-me a apanhá-las que elas saíram do mar e andam pelos ares a voar.
[Abaixo do veleiro poderão, meus Amigos, ler o poema de José-Alberto Marques que me inspirou. Logo abaixo um fantástico dueto: duas vozes maravilhosas ao serviço da maravilhosa música de Mozart]
Elegante veleiro, todo ele apenas mastros, atravessa o Tejo paralelamente à Ponte Vasco da Gama |
Quando o cientista quase cego encontrou os binóculos
alugou um barco e um barqueiro
fizeram-se ao mar
andaram à deriva os anos que contaram felizes
alimentavam-se de estórias
até que um dia o cientista colou os binóculos aos óculos
foi quando viu cardumes de sereias
abetardas
sisões
sobrevoando o mar
[6º Poema das Autografias de José-Alberto Marques in British Barthes]