Ginjal e Lisboa

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26 novembro, 2012

Os gritos a meio da noite das amantes a meio da loucura


Chove neste Outono triste e lacrimoso. Chove sem parar. Mesmo quando parece abrandar, cai ainda e é uma chuva miúda, uma morrinha, uma tristeza que se cola a nós. E anoitece tão cedo. Parece que cada vez mais cedo. Ou será impressão minha? É outono e no outono 'cai a folha' dizia o meu tio no dia em que velávamos a minha avó. Mas também ele já cá não está, partiu não muito depois, num inverno muito triste. Mas não é disso que quero falar.

É, pois, no Outono que cai a folha. 

E eu vejo as belas folhas cor de cobre, cor de fogo, molhadas no chão. Fotografo-as tentando guardar na minha memória uma beleza que me parece tão efémera, restos de uma vida cuja beleza se prolonga mesmo quando de rastos, pelo chão.

Foi num outono distante que eu passeei com um novo amor que me deixava louca, passeávamos num jardim atapetado de folhas cor de fogo e eu perdia a cabeça, esquecia tudo, tudo, louca de amor.

Foi num outono que eu percorri os dias e as noites descobrindo que a paixão é mais forte, mais destemperada que o amor, que a paixão avassala o corpo e a alma. Mergulhávamos nas sombras, procurávamos os recantos, tudo para que a intimidade se descobrisse, tudo para que a intimidade se resguardasse dos outros, não de nós. Outras vezes, limitavamo-nos a dar as mãos na penumbra dos cafés; mas atrás das mãos dadas vinham os beijos e vinha, sempre, a ternura imensa que nascia da troca de olhares. Um dia um homem que estava noutra mesa levantou-se e veio deixar-nos uma folha e disse, desculpem, não pude deixar de vos observar, isto é para vocês. Era um poema e ele era um poeta conhecido. Outra vez, estávamos também num local público mas a tentação e o amor e a paixão eram grandes demais para que nos lembrássemos de a conter e um senhor de alguma idade passou por nós, sorrindo, e disse, e havia carinho na sua voz, é verdade aquilo que se diz: que o namoro é poesia e o casamento é prosa. Era outono e chovia muito. Há muitos anos. 

Agora é também outono e ainda nos damos as mãos, ainda nos beijamos e a ternura ainda nasce dos nossos olhares. E eu ainda vivo rodeada de poesia.



[Já aqui abaixo das folhas de um outono bem molhado, um belo poema de Fernando Assis Pacheco e, logo a seguir, abrimos a semana com um novo compositor, mais um do século XVII, mais um compositor barroco, desta vez o alemão Johann Jakob Froberger]


Outono, com folhas no chão e chuva




                                  Eu vi o Outono desprender suas folhas,
                                  cair no regaço de mulheres muito loucas.
                                  Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
                                  na cidade de Heidelberg pronta para a neve
                                  saboreavam tepidamente a sua ignorância.

                                  Eu vi as amantes ensandecerem
                                  com esse peso de Outono. Perderam as forças
                                  com o Outono masculino e sangrento.
                                  Os gritos a meio da noite
                                  das amantes a meio da loucura voavam
                                  como facas para o meu peito.

                                  Alguns poetas li-os melhor no Outono,
                                  certos amores só poderia tê-los,
                                  como tive, nos dias doces da vindima.
 

                                  ['Peso de Outono' de Fernando Assis Pacheco in "A Musa Irregular"]

23 abril, 2012

Do beijo fica um sereno olhar, o amor das coisas minúsculas e humildes


Ah meu amor, beija-me, beija-me. Beija-me aqui, em cima do rio, em cima da maresia, neste dia em que a chuva quase nos envolve. Sinto a tua pele molhada e não sei se é chuva, se é maresia e os teus lábios molhados talvez sejam de chuva, de maresia ou de saliva. E eu nem sei se é doce, se é salgado o sabor da tua boca. Ou talvez sejas tu que sabes assim, meu amor, meu amor. Beija-me, amor, beija-me.

E o rio passa por nós, cinzento e picado, e salpica-nos e as gaivotas andam como doidas à nossa volta, ficam assim, loucas, quando te vêem a beijar-me, gaivotas loucas. E uma outra fica pousada, insolente, a olhar para nós e tu provocas, tu provocas e, também insolente, de frente para ela, portas-te de forma indecente.

E vem o vento e envolve-nos, o vento envolve-nos, envolve-nos e as gaivotas voam e o rio salpica-nos e eu deixo-me ficar, aninhada nos teus braços, junto ao teu corpo quente e nem vejo o rio, nem vejo as gaivotas, nem sinto o vento porque tu me beijas e quando tu me beijas eu voo em volta de mim como as gaivotas loucas que voam, que voam.

E eu quero que tu me beijes para sempre, beijos eternos meu amor, beijos eternos que nos protejam contra os venenos da vida, meu amor, contra a morte, meu amor. Para sempre, meu amor.



[Pois, meus Amigos, em dia de amantes unidos contra os venenos da vida, convido-vos à leitura de um belo poema de Assis Pacheco para logo de seguida ouvirem um trecho belíssimo de Rossini numa história de amor e morte.]


Numa tarde sombria, chuvosa, namorados junto ao Cais das Colunas, rodeados pelo Tejo e por gaivotas


                                     Do beijo fica um sabor,
                                     do sabor uma lembrança,
                                     um vento leve, uma espuma.

                                     Do beijo fica um sereno
                                     olhar, o amor de coisas
                                     minúsculas e humildes,
                                     um pássaro que vai e vem
                                     da nossa boca às palavras.
                                     Do beijo fica, suprema,
                                     a descoberta da morte.
                                     Um vento leve, uma espuma
                                     salgada, à flor dos lábios.



['Um vento leve, uma espuma' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']

27 março, 2012

Então acordo e sinto a meu lado o esplendor tranquilo da amada que respira, adormecida sobre o flanco

 
Abres a janela e dizes que já é dia, que me chegue a ti, que me deite no teu ombro, que acorde. Protesto, quero dormir mais. Abraças-me e dizes que já é dia, que me chegue a ti. Protesto, quero dormir mais.

Tantas vezes isto, tantas.

Outras vezes acordo e estás a olhar para mim, dizes que já estás assim há muito tempo e eu olho pela janela aberta e vejo os pássaros pousados na varanda. Olham-me também. E eu protesto, não gosto de acordar a sentir-me observada. E tu dizes que já é dia, que acorde e que me chegue a ti. E eu protesto, não quero que me olhes, quero dormir mais.

Tantas vezes isto, tantas.

Mas, outras vezes, raras vezes, acordo e estou sozinha, ninguém me acorda, ninguém me olha, a janela está fechada, a luz não entra, os pássaros não olham. Fico, então, admirada, sem saber de ti, sem saber que dia vai ser aquele que começa assim, tão estranho, tão solitário. 

Penso, então, só para mim, em segredo, que o teu olhar e o teu abraço enchem de claridade o começo dos meus dias. Mas que ninguém me ouça...



[Em silêncio, rente à claridade do dia, sigamos até à lírica de Fernando Assis Pacheco que está já aí, a seguir à gaivota que hesita. Depois, sigamos um pouco mais porque o piano hoje é surpreendente.]


Numa manhã de doce claridade no Ginjal, gaivota caminha entre o gradeamento e a beira do cais,
 mesmo rente ao Tejo, hesitante entre voar e andar, meditando


                        Então acordo e sinto a meu lado
                        o esplendor tranquilo
                        da amada que respira
                        adormecida deitada sobre o flanco
                        vertendo a prata dum sorriso

                        nas ravinas da noite
                        esferas cantam a alegria
                        é um sítio de grama rociada

                        e passam horas
                        durante as que da rua
                        ouvindo vozes turvas
                        eu ficarei teimando
                        na claridade a todo o preço

                        de que me falam as aves


                       ['Lírica de Pardilhó' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']

29 fevereiro, 2012

Porém nada perdido, que este verde coração se arruma como louco sobre as ondas, e procura e procura


Sobre este rio cintilante cujas saias se desdobram e alargam para o mar há um veleiro que todos os dias abre as suas brancas velas e vai, incansável, a favor do vento, ou contra o vento.

Dia após dia, o veleiro rompe as águas, alarga as velas, enfrenta o sol ou a chuva, percorre os caminhos brancos do rio e sai gritando, gritando, gaivotas desesperadas em coro, e o veleiro desliza, rodopia, adorna, quase se vira. Mas continua sempre.

E vem a noite e o veleiro hesita em regressa; já todos os outros voltaram às docas e este veleiro, bravo, lutador, ainda aqui anda, e grita, grita e as gaivotas gritam em volta.

E as velas envelhecem e o branco tolda-se e as ondas batem na madeira gasta e os gritos tornam-se roucos, cansados.

O rio brilha, indiferente e orgulhoso e este veleiro aqui anda, em volta, procurando, procurando e, quem está na margem, é sempre o mesmo nome que ouve, um nome às vezes quase cantado, outras implorado, até chorado. E as gaivotas gritam os seus gritos desolados e o nome já quase não chega a terra. Mas todos os dias, com vento, sem vento, com sol, sem sol, este gasto veleiro, salta as ondas com a esperança dos pequenos barcos que ainda não experimentaram as decepções da vida e grita, grita sempre o mesmo nome e, na margem, as pessoas esperam ver, um dia, sair das águas o ser cujo nome há tanto tempo alguém grita. 

Lá dentro, naquele veleiro silente e belo, um coração louco, um coração que um dia se perdeu e que desliza com velas brancas sobre o mar.



[Meus amigos, deslizem com o veleiro pelo rio cintilante, vejam o belo poema de Assis Pacheco e depois, por favor, sigam até ao violino e piano na música perfeita de Brahms]

Belo veleiro cruza o Tejo num dia cintilante


                        O meu coração é um navio
                        que te procura nos sete mares,
                        que à flor das águas vai e vem
                        gritando, atirando o teu nome.

                        O meu coração é um navio
                        que te procura mas não te encontra.
                        A oeste, a Leste, a Sul, ao Norte
                        retesa as velas, mas não te encontra.

                        Envelheceram já muitas palavras.
                        Porém nada perdido, que este verde
                        coração se arruma como louco
                        sobre as ondas, e procura e procura.


                        ['Guiarás o Povo' de Fernando Assis Pacheco in 'A musa irregular']
 

23 fevereiro, 2012

Falei de ti com as palavras mais limpas

 
Tantas vezes aqui clamo o meu amor, grito-o ao vento, voo sobre o Tejo e grito-o aos barcos, às gaivotas, enrolo-me nas velas dos veleiros brancos e grito que te amo, deslizo e mergulho, e digo que te amo. Ou torno-me aragem, vento, pluma, pena e acaricio a tua face e beijo-te e abraço-te, ou corro pelos ares e sou como as folhas douradas e ando junto aos teus pés, enrolo-me nas tuas pernas, folha, flor, vento, pássaro, aragem, e sou eu sempre junto a ti.

Outras vezes sou transparente, silencioso, e encosto-me a ti enquanto vais sozinha, e falo contigo, sussurro ao teu ouvido e tu ris, e brinco com o teu corpo, mexo-te, puxo-te, enrosco-me e tu contas-me os teus segredos, contas-me os teus sonhos e eu ouço-te, minha amiga, meu amor, conta-me tudo, que eu estarei sempre a teu lado ou, então, dentro de ti.

E quando estás tensa, triste e cansada ou quando estás animada e feliz, estou eu sempre junto a ti, a minha mão a conchegar o teu coração, o teu sorriso na concha das minhas mãos, sempre a teu lado, sempre a sentir a tua respiração rente à minha.

Mas tu sabes isto, não sabes?



[Palavras em festa pedem uma música em forma de primavera - é já aí em baixo, depois do belo poema do Assis Pacheco]

Rente ao Tejo de frente para Lisboa, a Bela e Luminosa


                             Falei de ti com as palavras mais limpas,
                             viajei, sem que soubesses, no teu interior.
                             Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
                             tropeçavas em mim e eu era uma sombra
                             ali posta para não reparares em mim.

                             Andei pelas praças anunciando o teu nome,
                             chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
                             Em tudo o mais usei da parcimónia
                             a que me forçava aquele ardor exclusivo.

                             Hoje os versos são para entenderes.
                             Reparto contigo um óleo inesgotável
                             que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
                             brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.



                             ['Sem que soubesses' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']