Chove neste Outono triste e lacrimoso. Chove sem parar. Mesmo quando parece abrandar, cai ainda e é uma chuva miúda, uma morrinha, uma tristeza que se cola a nós. E anoitece tão cedo. Parece que cada vez mais cedo. Ou será impressão minha? É outono e no outono 'cai a folha' dizia o meu tio no dia em que velávamos a minha avó. Mas também ele já cá não está, partiu não muito depois, num inverno muito triste. Mas não é disso que quero falar.
É, pois, no Outono que cai a folha.
E eu vejo as belas folhas cor de cobre, cor de fogo, molhadas no chão. Fotografo-as tentando guardar na minha memória uma beleza que me parece tão efémera, restos de uma vida cuja beleza se prolonga mesmo quando de rastos, pelo chão.
Foi num outono distante que eu passeei com um novo amor que me deixava louca, passeávamos num jardim atapetado de folhas cor de fogo e eu perdia a cabeça, esquecia tudo, tudo, louca de amor.
Foi num outono que eu percorri os dias e as noites descobrindo que a paixão é mais forte, mais destemperada que o amor, que a paixão avassala o corpo e a alma. Mergulhávamos nas sombras, procurávamos os recantos, tudo para que a intimidade se descobrisse, tudo para que a intimidade se resguardasse dos outros, não de nós. Outras vezes, limitavamo-nos a dar as mãos na penumbra dos cafés; mas atrás das mãos dadas vinham os beijos e vinha, sempre, a ternura imensa que nascia da troca de olhares. Um dia um homem que estava noutra mesa levantou-se e veio deixar-nos uma folha e disse, desculpem, não pude deixar de vos observar, isto é para vocês. Era um poema e ele era um poeta conhecido. Outra vez, estávamos também num local público mas a tentação e o amor e a paixão eram grandes demais para que nos lembrássemos de a conter e um senhor de alguma idade passou por nós, sorrindo, e disse, e havia carinho na sua voz, é verdade aquilo que se diz: que o namoro é poesia e o casamento é prosa. Era outono e chovia muito. Há muitos anos.
Agora é também outono e ainda nos damos as mãos, ainda nos beijamos e a ternura ainda nasce dos nossos olhares. E eu ainda vivo rodeada de poesia.
[Já aqui abaixo das folhas de um outono bem molhado, um belo poema de Fernando Assis Pacheco e, logo a seguir, abrimos a semana com um novo compositor, mais um do século XVII, mais um compositor barroco, desta vez o alemão Johann Jakob Froberger]
Outono, com folhas no chão e chuva |
Eu vi o Outono desprender suas folhas,
cair no regaço de mulheres muito loucas.
Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
na cidade de Heidelberg pronta para a neve
saboreavam tepidamente a sua ignorância.
Eu vi as amantes ensandecerem
com esse peso de Outono. Perderam as forças
com o Outono masculino e sangrento.
Os gritos a meio da noite
das amantes a meio da loucura voavam
como facas para o meu peito.
Alguns poetas li-os melhor no Outono,
certos amores só poderia tê-los,
como tive, nos dias doces da vindima.
['Peso de Outono' de Fernando Assis Pacheco in "A Musa Irregular"]