Ginjal e Lisboa

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27 novembro, 2013

O peito esquece a hora em fuga


Está frio, um vento frio. A vinha virgem está em fogo mas não vem dela calor suficiente para aquecer estes dias tão frios. A luz que há no ar é azul, gélida, os tempos são de fuga, de peitos vazios, de corações deixados ao abandono. As mãos estão desoladas, caídas, o olhar fechado, ausente. 

Onde o olhar alcança apenas há pó, lembranças desfeitas. 

Mas, sabes velho leão dos mares?, não tarda as ruas encher-se-ão de novo e todos juntos cantaremos, unidos e levantados. Já vai sendo tempo das cidades vibrarem com a emoção dos renascimentos. 

Devemos essa força ao exemplo das árvores que resistem às intempéries, que se mantêm de pé, livres, encerrando toda a força do vento, apesar da tristeza das chuvas que, por vezes, vêm chorar no seu regaço. 

Ressurgiremos um dia destes, paredes em flor, corações ao alto, faces erguidas, mãos abertas, olhar lavado. Ressurgiremos. Ressurgiremos.



[Abaixo da Boca do vento, mais um belo poema de Soledade Santos e, logo a seguir, mais uma magnífica interpretação de Benjamin Schmid]



Uma parede coberta de vinha virgem na Boca do Vento
(sobre o Ginjal, com Lisboa do lado de lá)


                                              Sopra um vento nítido erguendo
                                              nuvens de pó na serra ao longe e vibra
                                              a alegre conversação das folhas.
                                              Árvores acodem
                                              de todos os sítios da lembrança e do olhar agora.
                                              O peito esquece a hora em fuga,
                                               fala o vento    a luz     o corpo imediato.


['Exterior' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra']


03 fevereiro, 2013

Como entrar num quarto que pintámos de amarelo e encontrá-lo desse azul a que os ingleses chamam blue


O amarelo nos espaços, dizem, estimula o companheirismo, o trabalho de equipa. Alguém nos disse, vendo-nos sempre tão indiferentes, pintem o quarto de amarelo. E nós, estando por tudo, e não nos interessando por nada, assim o fizemos. 

Eu queria amarelo da cor do sol e tu, mais moderado, quiseste amarelo da cor do mel. Aceitei, tanto me fazia. Procuraria o sol noutro lado.

Dizias, talvez o mel das paredes escorra para o teu coração, para os teus lábios. Deixa que eu os beije e sinta a doçura que já não vejo nos teus olhos - como eram antes, lembras-te?

Encolhi os ombros. Está bem.

Mas eu não tinha mel no coração pelo que também não o encontraste nos meus lábios. E eu dizia-te, devíamos ter pintado as paredes da cor do sol para ver se as sombras param de invadir este nosso espaço. Encolhias os ombros, para quê a luz dentro de casa? Se a queres, procura-a na rua. E eu procurei.

Hoje, tanto tempo depois, voltámos lá. Não se deve voltar ao lugar onde já fomos felizes, parafraseaste. Não sei se fomos muito felizes naquele quarto, corrigi.

Mas voltámos.

Já não estava amarelo. Alguém o tinha pintado de azul. Um poeta e a sua amante viviam agora intensas paixões naquele quarto azul. Abriste a janela. Entrou uma aragem que cheirava a maresia e, no silêncio daquele quarto, uma música de prata vinda dum móbil suspenso do tecto, percorreu-me os sentidos.

Vamo-nos embora, disse-te; quis logo sair dali, fugir. Olhaste à volta, parecias procurar qualquer coisa. Há aqui qualquer coisa, disseste. 

Puxei-te para fora.  E afastei-me apressadamente.

Não te disse que aquele lugar há muito que tinha deixado de ser teu. Não te disse que é neste quarto azul com cheiro a mar, com a música de prata, leve, muito leve, afagando a minha pele que agora ouço palavras de amor da boca de um poeta.



[Abaixo da gaivota que hesita entre o amarelo e o azul, um poema de Soledade Santos, uma poetisa de cuja poesia muito gosto. A seguir, no ciclo dos Grandes Intérpretes, Sviatoslav Richter, pianista. Começa com Schubert. Uma maravilha.]


Gaivota, numa manhã muito fria, no Ginjal: o Tejo muito, muito azul



                                          Como entrar num quarto
                                          que pintámos de amarelo e encontrá-lo desse azul
                                          a que os ingleses chamam blue

                                          E suspenso do tecto
                                          em silêncios de prata um móbil
                                          no espaço quieto.


                                          [Blue de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra']
                                       

08 novembro, 2012

Partes, o céu demora-se a entardecer e a lassidão flutua


Ah meu amor que te foste. Ah meu amor. Saberias a falta que me ias fazer quando partiste? Imagino que não, mas imagino isso apenas para me poupar. Sofrerei menos se pensar que te foste, levado pelo vento, pelo acaso, sem sequer imaginares que eu iria ficar aqui, assim, cheia de sombra no olhar, cheia de restos de amor nas mãos, cheia de tristeza. Ah quanta tristeza, meu amor.

E o silêncio, e a noite que desce sobre mim, e a solidão colada à minha pele tão fria?

Saio para o dia que anoitece e detenho-me a olhar o imenso espaço vazio que se abre à minha frente. E não te vejo meu amor, nem a tua silhueta transparente, nenhum vulto, nenhum, nada, nem ouço a tua voz. E queria tanto ouvir o meu nome dito por ti. Queria tanto que aqui estivesses ao meu lado, que falta me fazes, que falta, meu amor. 

Apenas a nossa gata, que gostava tanto de ti e que agora chora suaves lamentos todas as noites, me olha. Grandes olhos verdes, límpidos, tristes. Ela e eu, as duas com tantas saudades, meu amor, as duas olhando o vazio, esperando por ti que não vens.

Vem, vem, vem. Estamos aqui em silêncio, cheias de frio, sozinhas, lágrimas pesadas e quentes caindo num chão desamparado, desamparadas as duas, esperando por ti. Vem, vem, meu amor.



[Abaixo da gata triste, um poema igualmente triste de Soledade Santos e, logo abaixo, o Te Deum de Lully]



Uma gata triste no Ginjal



                                         Partes, o céu demora-se
                                         a entardecer e a lassidão flutua
                                         como as volutas do incenso a arder.
                                         Saio à varanda, regresso
                                         aos gestos que me fixam
                                         e a gata no telhado
                                         seguindo-me com o olhar.
                                         Estamos bem assim, eu sozinha
                                         no azul da quase noite, ela em cima
                                         no fulgor do dia que se esvai.


['Azul da quase noite' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra']

21 maio, 2012

No fundo da ternura há um som de lágrimas


Tu que olhas indiferente os valorosos navios que parecem navios de sonhar

e que olhas, solitário, em silêncio, esta água onde o sol se afoga para, todos os dias, depois, renascer, 

tu que te deixas levar magoado pelas lembranças de barquinhos de papel e infantis fantasias, 

tu que te ergues sombrio para que a tua vida desfile, desalentada, ante os teus olhos banhados desta luz mansa que vem das nuvens,

tu que não sentes a chuva, o frio, o vento, os sorrisos, as palavras que afagam,

tu que, só por vezes, deixas que a ternura que atravessa os tempos se chegue até aos teus olhos, 

                  esquece as mágoas, esquece os desencantos, esquece os tristes entardeceres, esquece as lágrimas, as quedas, as perdas. 

                       E deixa que a vida clara, luminosa, promissora, envolta em ternura, para sempre preencha os teus dias.



[Abaixo poderão o terno poema de Soledade Santos e, logo a seguir, abro a semana com La Traviata - é Verdi e a música que vibra plena de fulgor]



Em Cacilhas, no domingo, Dia da Marinha, a Sagres engalanada e um submarino em primeiro plano
O Tejo azul, tingido de verde



                         No fundo da ternura há um som de lágrimas -
                         água clara onde o sol do entardecer
                         odoroso se deteve;
                         vem das lembranças, cristais de sal,
                         chispas na pele esfolada pelos jogos
                         infantis e as perdas
                         de que a vida nos preencheu os dias.
                         Companheira amável do desencanto,
                         outra forma afinal de dizer mágoa.


                          ['Da ternura' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra'

20 dezembro, 2011

Não sou a imagem que buscas fixar, na objectiva do espanto tu não me vês

 
Dizes, vou fotografar-te e eu sei que queres tanto fazê-lo. Dizes, vira-te para a luz e eu faço-te a vontade, fico de frente para a luz. Dizes, vira-te um pouco, quero-te quase de perfil; eu viro-me, assim está bem?

Olhas pela objectiva e dizes, estás tão séria, sorri, e eu olho-te nos olhos, por dentro da objectiva e digo, não consigo.

E tu olhas-me nos olhos por fora da objectiva e eu recebo o teu olhar nu. Eu, que estou virada para a luz, entrego-me nua, banhada pela luz, sem te ver. Não sorrio, não te vejo. Dizes-me, então, não feches os olhos e eu digo-te que é da luz mas que foi apenas um bater de pálpebras. E tu dizes, não estás aí.

E eu digo-te que estou, que fixes a minha imagem. E tu insistes, não estás cá.

E eu, então, fecho os olhos e penso, não, não estou aqui. A minha quietude esconde o meu voo, estou a voar, parti sobre o rio, não me vês porque não podes, guarda o teu espanto.

Esta que aqui vês, que tem o meu cheiro, que tem os meus olhos, que tem o meu corpo, esta que ocupa um espaço que antes era meu, esta não sou eu. Eu há muito que parti, eu há muito que estou onde não me podes alcançar. Mas não faz mal, eu finjo que estou aqui. Vou sorrir, dispara agora.



[E então a flauta de Bach começa a vibrar enchendo este grande espaço. Desça um pouco para recolher as notas, para segurar as palavras, para registar o instantâneo.]




                                    Não sou a imagem que buscas fixar,
                                    na objectiva do espanto tu não me vês
                                    porque não podes.
                                    A quietude é uma velocidade vertiginosa,
                                    entre um oscilar de pálpebras e outro
                                    orbitei o universo
                                    regressei ao ponto de partida.

                                    E não são meus
                                    os aromas de bosque que ocuparam
                                    o espaço onde antes fui eu.


                                    ('Instantâneo' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra')

21 novembro, 2011

Os gritos trespassam a noite e pela incisão começam a entrar cães de inverno e potros azuis

  
Aqui estou nesta minha sala, uma pequena luz mal iluminando o que escrevo. Assim gosto de estar. Só eu. Na noite escura, eu e os meus livros, eu e as minhas palavras, eu e os meus pensamentos.

E então, como um gato vadio, chega-me a tua imagem. Entra pela janela, salta-me para o colo, roça o pêlo macio por mim, traz o teu cheiro, traz-me o teu olhar. Olha-me o vadio, olha-me impudico. Mal se vê, ninguém o vê, confunde-se com o escuro da sala, ninguém dá por ele. Só eu o sinto, só eu o vejo. Gato escuro, moreno, esguio. Sorrateiro, desliza, roça-me as pernas, olha-me as pernas, e eu deixo-o, és tu que atravessas a noite, vens do lado do rio, vadio, vadio, e deixo-te entrar, deixo-te estar. Gato com cio, atravessas  a noite ao encontro do meu cheiro.

Interrompo os meus livros, calo as minhas palavras. Depois, quando me sinto satisfeita, saciada, a saudade acalmada, deixo-te ir. Abro de novo a janela e tu, gato vadio, lá vais, pelos telhados, atravessas a cidade, voltas ao rio, até que eu lá vá, ver-te de longe. E só eu te vejo, gato vadio, memória amada, cavalo alado.



[Siga o meu gato até lá mais abaixo, até onde Schumann nos invade com o seu Romanze]


Nas rochas, quase se confundindo com elas, gato vai rente ao Tejo
                   

                        Gritam os gatos todo o serão estridências
                        de cio que não pressionam mas despertam
                        a minha gata. Erguemos o olhar,
                        eu do livro ela do sono redondo e aspiramos
                        uníssonas correntes de ar gotículas nas vidraças.
                        Não sei que cheiros lhe fazem fremir o negro nariz.
                        Fecho as cortinas espevito o lume
                        volto ao livro, de vez em quando
                        os gritos trespassam a noite e pela incisão
                        começam a entrar cães de inverno e potros azuis.


                        ('Nocturno com gatos' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra')

   

17 março, 2011

Deita a cabeça no meu ombro, dá-me as tuas mãos, fecha os olhos

Fecha os olhos, deixa-te estar quietinho como gostas.

Olha as tuas mãos, sente as minhas mãos sobre as tuas. Sentiste?

Ouve o teu coração: ouviste-me respirar lá dentro?

Vou falar baixinho: meu amor. Ouviste?

(Até para a semana)

O Tejo, a ponte, Lisboa, o Ginjal - beleza superlativa

Deita a cabeça no meu ombro,
dá-me
as tuas mãos, fecha
os olhos.

Depois
canta baixinho
as canções que ambos sabemos.

And be still, my love,
que não te faço mal,
que não te peço muito
nem te direi as palavras tristes.


(Respirar de Soledade Santos in Sob os teus pés a terra)

09 fevereiro, 2011

Sou as palavras e os segredos que guardei

Hoje quero beijar-te com saudade como beijo o Tejo com o olhar, este rio que tanto amo.

Hoje quero entregar-me inteira como sempre me entreguei, como me entrego à beleza deste Tejo que tanto amo.

Hoje quero manter bem guardadas as lembranças que não se diluem porque são lembranças sagradas, como sagradas são as ondas e tudo deste Tejo que tanto amo.

Hoje sou as tuas palavras, a música da tua voz, o teu olhar perene, sou o teu sono, a tua companhia - meu Tejo, meu amor.

(Magia, beleza: assim mesmo, sem qualquer retoque, vi este branco barco à vela, numa manhã branca no jardim do Ginjal)

Sou as palavras e os segredos que guardei
e um estrito reservar-me nunca soube porquê
se tão completa me entrego as vezes que me entreguei.
Sou a lembrança que se vai diluindo
em olhos que julguei perenes e consanguíneos.
Sou canções  poemas e tantas
malbaratadas luas. E a música e os livros
e a varanda que um arquitecto desenhou
sem saber que era p'ra mim. E que perdi.
Sou o teu sono, minha gata, redondo ainda
e já inclinado ao fim. Sou árvores, o rio que amei,
as aves, as giestas, uma pouca de terra.

(Alguém de Soledade Santos, belíssimo poema in Sob os teus pés a terra)

07 fevereiro, 2011

Deixemos que o tempo nos leve na curva dos dias sem história

Deixemos, meu amor. Talvez amanhã, talvez um dia, talvez.

 Adiamos. Adiamos como forma de resolução.
Ouvimos a canção e parece escrita para nós: só nós dois é que sabemos o quanto nos queremos bem, o amor quando acontece não pede licença ao mundo.
Mas não conseguimos continuar: que falem não nos interessa, o mundo não nos importa. Não, isso não conseguimos dizer.

Mas vamos viver o presente tal qual a vida nos dá, o que o futuro nos reserva ninguém sabe o que será.

Quem sabe algo não se rasga trazendo-nos novas possibilidades, um novo início?

 
Num dia branco, velas brancas de pano e de pedra, numa visão abençoada a partir do Ginjal, Lisboa branca e luminosa, o Tejo uma suave aguarela. Uma beleza mágica.

Deixamos que o tempo nos leve
na curva dos dias sem história
e uma canção de Cohen
ou a terra dos versos amados
adormeçam o sobressalto da madrugada.
E adiamos. E dizemos amanhã,
talvez amanhã haja palavras e um gesto novo
ou antigo trazido à luz,
e algo se rasgue e instaure
não a inquietude
mas as suas possibilidades. E adiamos
e temos tudo resolvido. Subitamente
a farpa de um início.

(Alarme de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra', )