A minha avó preocupava-se muito, tinha sempre medos, medo que eu caísse, que eu me magoasse, que eu não estudasse, que eu não fosse bem sucedida por estudar tão pouco, tinha medo que eu não tivesse sorte, que os vizinhos não dissessem bem de mim. Queria proteger-me de tudo.
E eu, cabrita maltês, queria era correr pelos campos, brincar ao lencinho queimado no meio do mato, brincar às escondidas atrás das pedras, dos arbustos, jogar ao prego, andar a monte pela serra.
A minha outra avó não queria saber das opiniões dos outros para nada, eu que fizesse o que queria. Esta era a mãe da minha mãe mas, nas férias, a minha mãe ficava mais descansada comigo na casa da minha outra avó, porque a sogra tentava tomar conta de mim enquanto a mãe não se importava que eu andasse toda a tarde fora de casa.
Mas eu gostava mais de estar com a mãe da minha mãe. Ela gostava muito de ler, tinha sempre muitos livros e revistas e deixava que eu lesse tudo o que quisesse, e gostava de ouvir as notícias, tinha opinião sobre a actualidade. Era uma mulher corajosa. Viveu sozinha, viúva, desde nova. Quando se foi, há pouco tempo, descobrimos alguns papéis. Uns eram a correspondência dela e da mãe dela com os primos. Um foi presidente da república. Escreviam coisas muito engraçadas uns aos outros, um deles fazia versos muito divertidos e tinham letras invulgarmente bonitas.
Do meu avô, pai da minha mãe, só me lembro de o ir esperar, muito pequena, ao pé do portão e dele me levar às cavalitas para casa. Era muito alto, muito louro, olhos muito claros. A minha mãe saíu a ele. Foi-se embora muito cedo, num acidente, teria eu uns dois ou três anos e a minha mãe e a minha avó iam morrendo de desgosto. Fizeram tudo para eu não dar por nada. Não dei. Mas fiquei a gaguejar durante algum tempo.
O meu outro avô, casado com a minha avó cheia de medos, era um homem muito tranquilo que, no tempo livre, gostava de pescar e de tratar da terra. Nunca se zangava e tinha muita paciência para mim e para a minha avó. Eu andava sempre atrás dele enquanto ele andava a sachar e a dispor cebolinho, alhos, feijão verde de trepar, tomate, morangos. Eu regava ou, pelo menos, abria a torneira e achava que o ajudava. Ele chamava-me para eu o ajudar e eu ficava muito contente. A minha avó não queria porque eu me sujava toda, porque não tinha jeito nenhum isso. Mas ele não se importava com a opinião dela e eu também não.
A minha mãe tinha um irmão mais novo, parecido com a minha avó, cabelo escuro, olhos castanhos esverdeados, de que gostava muito e de que eu gostava tanto que quis que ele fosse meu padrinho de casamento. Lia muito, muito. Sabia tudo. E via todos os programas de divulgação científica, cultural e de política. Estava sempre muito bem disposto. Ria muito, falava muito alto, era um excelente conversador. Nunca o vi zangado. Tudo para ele era simples, agradável. Quando era novo pintava. Pintou o meu retrato. Foi-se embora no início do ano passado. A minha tia perguntou-lhe, no dia em que se despediu dele, porque é que ele a tinha deixado tão cedo. A minha mãe não foi capaz de ir, estava devastada.
Quando vejo as fotografias de um verão, não há muito tempo, estava ele e a minha avó no meio de nós. Estavam todos sentados, in heaven, pais, filhos, netos, bisnetos, trinetos, muita gente sorridente, conversando.
Os meus outros avós tinham partido não muito antes.
Mas regressam muitas vezes, todos. As minhas memórias têm-nos lá dentro. Gostavam muito de mim, tal como eu gostava muito deles. Continuam a sorrir, a conversar, a minha avó continua a apoiar-me, o meu tio continua a ensinar-me. Sentamo-nos ainda em volta, nas tardes de verão, outras vezes vou regar com o meu avô, ouço os cuidados da minha outra avó. Estão todos ainda muito perto de mim. Dentro de mim. Voam dentro de mim.
[Logo a seguir ao poema do Al Berto, é tempo de espantar tristezas. Maria João e Mário Laginha, num momento feliz, espalham a música sobre a nossa pele]
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Avistados do Ginjal, navios de diferentes portes e usos no Tejo
É como se partissem mas não partem, estão sempre aqui, no rio, ou eles ou outros por eles |
se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes
são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te
diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão.
['incêndio' de Al Berto in Horto do Incêndio]