Ginjal e Lisboa

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08 abril, 2014

No centro da cidade, um grito


Manhã silenciosa no Ginjal, manhã branca. Podia estar no céu, habitar uma nuvem, podia deslizar no dorso de uma gaivota, podia, podia deslizar nas velas de um veleiro, podia, podia sonhar num recanto secreto de Lisboa. 

Mas afinal apenas caminhava junto ao Tejo, os pés no chão, e não se via ninguém, parecia que estava eu, só eu, e as minhas memórias brancas.

O silêncio junto a um casario puído pela maresia e junto a um rio envolto em névoa é um alimento que eu e todos os amantes secretos procuram para sentir o doce fluir do tempo. Para lá caminho uma e outra e outra vez. Sempre - especialmente quando o mundo parece envolto em solidão e silêncio.


Manhã de neblina no Ginjal,
um cacilheiro atravessando o Tejo em silêncio, Lisboa mal de avistando

No centro da cidade, um grito.
Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar
e sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado.
Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos
são uma sinalização em direcção à morte.
Mas hoje, ainda longe daquele grito,
sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi,
e uma abelha pousa-me no azul do lírio
e no cardo que sobreviveu à geada.
Bebo, fumo, mantenho-me atento,
absorto - aqui sentado, junto à janela fechada.
oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez,
e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte,
acaba o corpo.
Recolho o mel, guardo a alegria,
e digo-te baixinho:
Apaga as estrelas, vem dormir comigo
no esplendor da noite do mundo que nos foge



O poeta Al Berto (1948 - 1997), diz vinte poemas na "Casa Fernando Pessoa" em 1 de Julho 1995 e um poema no "Salão nobre dos Paços do Concelho", em 25 de Maio 1996


**

O grito raso
que se esconde
no verbo aceso
que se expande.
Fuga aberta
de palavras
cobrindo de sons
o Nada.
Aquilo que fica
depois da escrita
para além dos versos 
para além dos livros 
para além do pó.


[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]


07 fevereiro, 2014

Teci com os cintilantes fios a misteriosa linguagem dos astros


Habito a noite. Quando a casa sossega e as ruas se calam, eu movo-me como uma gata cheia de silêncios e subtilezas e esgueiro-me até aqui. Brinco com as palavras, afago livros, sento-me numa mesa carregada e onde um pequeno candeeiro tenta não perturbar a quietude da noite. Ouço poetas, dizedores, ponho-me, eu própria, a escrever palavras que não sei que caminhos percorrem ou onde me levam.

Mas tenho sono. Daqui a nada tenho que tentar parecer uma criatura normal, daquelas que vive de dia. Não posso levantar-me mais tarde pois o dia começa cedo. Tenho uma verdadeira vida dupla. Vocês que aqui me lêem não me reconheceriam se me vissem, eficiente e executiva, conduzindo reuniões difíceis. Tal como qualquer das pessoas que comigo se cruza durante o dia jamais suspeitaria que eu, aquela que ali vêem, se deita tão tarde para ler, escrever, ouvir dizer poesia, coisas assim, tão contrárias ao mundo dos negócios.


Gaivota à beira Tejo

estavam os homens as águas os animais e as terras
cansados de luz e de não haver noite
levantei a mão
fiz rodar a terra para que se retirasse o sol
enrolei os dedos nas últimas fulgurações
teci com os cintilantes fios
a misteriosa linguagem dos astros
depois
fui pela escura abóbada
estendi a fantástica tapeçaria
para que lá em baixo ninguém perdesse o seu caminho
e nela pudesse adivinhar o doloroso humano destino
a noite ficou assim tão habitada quanto a terra
os homens podem hoje sonhar com aquilo que mal entendem
e quando o medo atribuiu um nome àquele luzeiro
dei por terminada a obra
cortei os fios como se cortasse um pedaço de mim
fui para outro hemisfério adormecer o dia
construir a pirâmide o quadrado o círculo a linha recta
as cores do mundo
e dar vida a outras incandescentes criaturas


['Dia da Criação da Noite por Carlos Nogueira' de Al Berto dito por Guilherme Gomes]



08 janeiro, 2013

se conseguires entrar em casa e alguém estiver em fogo na tua cama


A minha avó preocupava-se muito, tinha sempre medos, medo que eu caísse, que eu me magoasse, que eu não estudasse, que eu não fosse bem sucedida por estudar tão pouco, tinha medo que eu não tivesse sorte, que os vizinhos não dissessem bem de mim. Queria proteger-me de tudo. 

E eu, cabrita maltês, queria era correr pelos campos, brincar ao lencinho queimado no meio do mato, brincar às escondidas atrás das pedras, dos arbustos, jogar ao prego, andar a monte pela serra.

A minha outra avó não queria saber das opiniões dos outros para nada, eu que fizesse o que queria. Esta era a mãe da minha mãe mas, nas férias, a minha mãe ficava mais descansada comigo na casa da minha outra avó, porque a sogra tentava tomar conta de mim enquanto a mãe não se importava que eu andasse toda a tarde fora de casa. 

Mas eu gostava mais de estar com a mãe da minha mãe. Ela gostava muito de ler, tinha sempre muitos livros e revistas e deixava que eu lesse tudo o que quisesse, e gostava de ouvir as notícias, tinha opinião sobre a actualidade. Era uma mulher corajosa. Viveu sozinha, viúva, desde nova. Quando se foi, há pouco tempo, descobrimos alguns papéis. Uns eram a correspondência dela e da mãe dela com os primos. Um foi presidente da república. Escreviam coisas muito engraçadas uns aos outros, um deles fazia versos muito divertidos e tinham letras invulgarmente bonitas.

Do meu avô, pai da minha mãe, só me lembro de o ir esperar, muito pequena, ao pé do portão e dele me levar às cavalitas para casa. Era muito alto, muito louro, olhos muito claros. A minha mãe saíu a ele. Foi-se embora muito cedo, num acidente, teria eu uns dois ou três anos e a minha mãe e a minha avó iam morrendo de desgosto. Fizeram tudo para eu não dar por nada. Não dei. Mas fiquei a gaguejar durante algum tempo. 

O meu outro avô, casado com a minha avó cheia de medos, era um homem muito tranquilo que, no tempo livre, gostava de pescar e de tratar da terra. Nunca se zangava e tinha muita paciência para mim e para a minha avó. Eu andava sempre atrás dele enquanto ele andava a sachar e a dispor cebolinho, alhos, feijão verde de trepar, tomate, morangos. Eu regava ou, pelo menos, abria a torneira e achava que o ajudava. Ele chamava-me para eu o ajudar e eu ficava muito contente. A minha avó não queria porque eu me sujava toda, porque não tinha jeito nenhum isso. Mas ele não se importava com a opinião dela e eu também não.

A minha mãe tinha um irmão mais novo, parecido com a minha avó, cabelo escuro, olhos castanhos esverdeados, de que gostava muito e de que eu gostava tanto que quis que ele fosse meu padrinho de casamento. Lia muito, muito. Sabia tudo. E via todos os programas de divulgação científica, cultural e de política. Estava sempre muito bem disposto. Ria muito, falava muito alto, era um excelente conversador. Nunca o vi zangado. Tudo para ele era simples, agradável. Quando era novo pintava. Pintou o meu retrato. Foi-se embora no início do ano passado. A minha tia perguntou-lhe, no dia em que se despediu dele, porque é que ele a tinha deixado tão cedo. A minha mãe não foi capaz de ir, estava devastada. 

Quando vejo as fotografias de um verão, não há muito tempo, estava ele e a minha avó no meio de nós. Estavam todos sentados, in heaven, pais, filhos, netos, bisnetos, trinetos, muita gente sorridente, conversando. 

Os meus outros avós tinham partido não muito antes.

Mas regressam muitas vezes, todos. As minhas memórias têm-nos lá dentro. Gostavam muito de mim, tal como eu gostava muito deles. Continuam a sorrir, a conversar, a minha avó continua a apoiar-me, o meu tio continua a ensinar-me. Sentamo-nos ainda em volta, nas tardes de verão, outras vezes vou regar com o meu avô, ouço os cuidados da minha outra avó. Estão todos ainda muito perto de mim. Dentro de mim. Voam dentro de mim.



[Logo a seguir ao poema do Al Berto, é tempo de espantar tristezas. Maria João e Mário Laginha, num momento feliz, espalham a música sobre a nossa pele]



Avistados do Ginjal, navios de diferentes portes e usos no Tejo
É como se partissem mas não partem, estão sempre aqui, no rio, ou eles ou outros por eles



                                      se conseguires entrar em casa e
                                      alguém estiver em fogo na tua cama
                                      e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
                                      e do tecto cair uma chuva brilhante
                                      contínua e miudinha - não te assustes

                                      são os teus antepassados que por um momento
                                      se levantaram da inércia dos séculos e vêm
                                      visitar-te

                                      diz-lhes que vives junto ao mar onde
                                      zarpam navios carregados com medos
                                      do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
                                      a morada de uma vida inteira e pede-lhes
                                      para murmurarem uma última canção para os olhos
                                      e adormece sem lágrimas - com eles no chão.


                                      ['incêndio' de Al Berto in Horto do Incêndio]


02 dezembro, 2012

Onde talvez se esconda o contorno quase terno do rosto de deus


Por estes lados não se sente o sopro quente do deserto, nem há tamareiras de doces frutos, nem areias levantadas pelo caos. Não.

Por aqui não passam cavalos endoidecidos, resfolegando, bafo quente, patas inquietas. Não, nem pensar.

Por aqui não há rosas nómadas, flores ardentes, terras sequiosas, corujas em telhados de zinco. Não, meu amigo, não há.

Aqui há água, muito céu, barcos, há pescadores, há sombras, ruínas, telhados abertos, paredes despedaçadas. Gatos vadios, gaivotas loucas, gansos imaginados, cães sábios, bichos e homens muito velhos, mulheres que voam, também.

Por aqui ninguém os chama para as orações da tarde, e, por isso, ninguém se ajoelha, ninguém reza. Por aqui os deuses são desconhecidos. Quem por aqui anda, anda à procura da imensidão que há para além do horizonte, anda à procura das vozes dos que por aqui muito amaram e que por aqui deixaram a alma à solta.

Não passam, pois, cavalos em correria, nem se ouvem chamamentos, nem sinos, nem uivos, nada. Apenas silêncio. Gente sem dono. Gente que os deuses abandonaram.

E, no entanto, por vezes, alguém que passa em absoluto recolhimento olha ao longe, olha para além do azul e vê, lá muito ao longe, uma sombra ou apenas o esboço de uma sombra, ou apenas um suave contorno. E nisso pensa ver o abençoado o rosto de um terno e muito distante deus. E isso basta a quem nada tem. Isso basta, meu amigo.



[Abaixo do poema de Al Berto, estreia-se hoje um compositor de quem, nem sei como, me tinha esquecido, Franz Joseph Haydn. Na tentativa de reparar tão irreparável erro, abro com uma interpretação a cargo de Rostropovich]


No Ginjal, caminhando rente ao Tejo


                                 a luminosidade é uma placa de zinco suspensa
                                 do céu do deserto

                                 em redor
                                 a imensidão das areias vibra contra o caos
                                 de pedra e de eufórbios que se multiplicam
                                 a perder de vista

                                  o bafo inquieto dos cavalos acende
                                  a pólvora das festas inesperadas

                                  uma coruja morre
                                  no cimo açucarado da tamareira

                                  caminhas
                                  sitiada pelo canto agudo do muezzin
                                  chamando à oração

                                  mektoub

                                  sítios onde a vida cessou e tudo está escrito
                                  há séculos - onde o coração dos homens
                                  é uma rosa nómada e calcária

                                  no limite da escassa água e desta terra seca
                                  mal abençoada - caminhas
                                  na plana noite das ardósias
                                  nas jeiras de súplicas e recolhimento onde
                                  talvez se esconda
                                  o contorno quase terno do rosto de deus



                                 ['mektoub' de Al Berto in 'Horto de Incêndio']

13 julho, 2012

Se conseguires entrar em casa e alguém estiver em fogo na tua cama


De noite, antes da madrugada raiar, as gaivotas juntam-se no jardim ao pé da minha casa. Vêm do rio e, da minha cama, eu ouço-as, são gritos longos, sentidos. A essa hora chegam-me pois, da noite, desalentos soltos, lamentos agudos. Sinto vontade, então, de abrir a janela do quarto, chegar-me à varanda e voar para junto delas.

Em círculo no relvado, andando com as suas longas asas quase por terra, as gaivotas estão intranquilas, desafiam-se, choram. Gritam, gritam e os seus gritos são viscerais, parecem carregados de lágrimas. Mas também podem ser gritos de desafio, de celebração. Talvez seja um ritual, talvez festejem apenas o dia que vai chegar, não sei.

A esta hora a casa está em silêncio. Pela janela chega uma quase invisível claridade, vestígios sombrios da noite. De olhos abertos vejo então as sombras que se desenham nas paredes. Penso que são os anjos que me protegem, talvez os meus que já partiram e que agora voltam, com as gaivotas, para ver que estou bem, ou para que eu lhes conte os meus sonhos, os meus medos, os meus segredos. Podiam ser deles os gritos que ouço mas sei que não são, os gritos vêm do jardim, das sombras brancas que clamam pela chama do dia. As paredes do meu quarto estão em silêncio, sorriem mas sorriem em silêncio. 

Passado algum tempo, ouço o bater de asas, param os gritos, entra no quarto a primeira claridade do dia. Nessa altura os anjos partem também, satisfeitos por me saberem tranquila.

Fecho, então, os olhos e imagino que vou com as gaivotas a caminho do rio, rasgando os céus que se descobrem com os tons da aurora, que vou a caminho do mar, voando ao lado dos navios que se fazem ao mundo. E adormeço feliz, protegida, sem medos. 



[Logo abaixo do espaço azul por onde passam caravelas brancas, poderão ver um belo poema de Al Berto e, logo a seguir, o som dos anjos desce, pela mão de Salieri para nos aconchegar]



Há algumas semanas, belo veleiro no Tejo com o Padrão das Descobertas em fundo


                         se conseguires entrar em casa e
                         alguém estiver em fogo na tua cama
                         e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
                         e do tecto cair uma chuva brilhante
                         contínua e miudinha - não te assustes

                         são os teus antepassados que por um momento
                         se levantaram da inércia dos séculos e vêm
                         visitar-te

                         diz-lhes que vives junto ao mar onde
                         zarpam navios carregados com medos
                         do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
                         a morada de uma vida inteira e pede-lhes
                         para murmurarem uma última canção para os olhos
                         e adormece sem lágrimas - com eles no chão


                         ['Incêndio' de Al Berto in 'Horto de Incêndio']

27 julho, 2011

O amor aumenta com o amarelecimento do linho, maior quietude rodeia agora a casa lunar

Talvez seja verdade. Talvez que, com os anos, o amor aumente.

Talvez não: é certo.

Melhor: Com os anos, aumenta a capacidade de amar.

Com os anos, percebe-se melhor a efemeridade das coisas, a transitoriedade de todos de nós. Com os anos, os anos que nos restam vão escasseando, há que não se ser mesquinho no seu uso.

E, se o amor se torna mais tolerante, torna-se também mais urgente.

Quanto ao desejo: esse é sempre o mesmo.

Em Cacilhas, casal conversa sobre o Tejo, mesmo de frente para Lisboa

o amor aumenta com o amarelecimento do linho
maior quietude rodeia agora a casa lunar
soçobram do fundo dos espelhos submersos os instrumentos
de muitos e delicados trabalhos
repousam sobre a erva para sempre

só o desejo dalguma eternidade despertaria o terno arado
mas a vida tropeça nos húmidos orgãos da terra
as selvagens flores afligir-te-ão o olhar
por isso inventaremos o necessário ciclo do outono

a noite dilata a viagem
pressentimos a nervosa luta dos corpos contra a velhice
mas nada há a fazer
resta-nos descer com as raízes do castanheiro
até onde se ramificam as primeiras águas e se refaz o desejo

as bocas erguem-se
procuram um rápido beijo no éter da casa


('O amor aumenta' de Al Berto in 'Trabalhos do Olhar')