A câmara deixou de ser clara pois que é chegado o tempo das trevas. À gente da cultura o passos atira-lhes com o da ponte e vai mais uma imperial. Em particular aos poetas o passos atira-lhes com o relvas que de poesia percebe ele. Aos músicos o passos atira-lhes com o gaspar, que para roubar notas não há outro como ele. Aos actores o passos atira-lhes com o moedas já que tanto precisam delas para sobreviver. Pois que é chegado o tempo das trevas.
Aos pobres o passos diz que não andassem metidos no casino, aos velhos o passos diz que vivam de esmolas que a pensão é luxo a que não têm direito. Aos desempregados o passos diz que deixem de ser piegas.
Aos jornalistas e a quem o ouve o passos baralha o sujeito com o predicado, inverte a ordem dos factores, troca-se todo, troca-nos as voltas à vida, o sacana do passos. Pois é chegado o tempo dos relvas. E das trevas.
Aos jovens o passos diz que se ponham daqui para fora, ao presidente diz que chora agora porque não quer que lhe vão à reforma, milionários chama ele aos remediados. E do relvas diz que as acusações são infundadas. Não têm fundo as acusações ao relvas. São tantas que parece que vêm de um poço sem fundo, o sacana do relvas, diz o passos à laurinha. No fim disto tudo, quem fica rico ainda vai ser ele, lamenta-se a laurinha enquanto ajeita a dobra do lençol. Mas isso já é o passos a sonhar.
Aos alemães o passos diz que o banqueiro diz que aguentam, aguentam, e diz também que os portugueses são fofinhos, muito limpinhos, e aos deputados o gaspar diz devagarinho que eles fazem juízos apressados e o deputado amorim treme na sua enxúndia para dizer que o passos e o relvas e o gaspar são bons, ai tão bons, do melhorzinho que há. O deputado amorim é o máximo, é o máximo, pim pim pim.
São todos tão bons, prrrim pim pim. Todos tão pirosos, tão ignorantes, pim pam pum, e andam todos mal encarados menos o relvas que anda todo rosado e esgargalado, pim pam pum.
E nós andamos fartos deles todos, pum pum pum e, apesar de tanto ruído, ainda conseguimos perceber que para aqui andamos roídos, erodidos, delidos. E fodidos, ai tão fodidos. E pardon my french. Pim pam pum.
[Bom. Hoje saíu-me isto, num registo não usual aqui no Ginjal. Adiante. A culpa é de Vasco Graça Moura que pegou na ponta da minha língua e vá de puxar. Para ver se me desculpam e se se lembram que sou uma erudita, mostro-vos uma fantástica interpretação da malograda Jacqueline du Pré tocando Elger - e agora estou a falar muito a sério]
Mural numa parede do Ginjal |
o decassílabo menos ouvido
na quarta e sétima leva o acento:
possível é, todavia é fodido
em português ir-lhe dando andamento.
com solidão, natural sentimento,
fica erodido, doído, delido:
entre silêncio e ruído é roído
e um solavanco lhe dá o sustento.
['o decassílabo' de Vasco Graça Moura in Poesia Reunida]