Ginjal e Lisboa

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04 novembro, 2013

Tens a paz entre os mamilos e esperas que seja uma flor silvestre


Não fujas, deixa-te ficar aqui ao pé de mim. O mundo é verde e puro, e a terra cobre-se de um manto sedoso, limpo, uma cama macia e perfumada. Folhas, flores, lagos, reflexos dourados, espelhos molhados, saudades. Desdobro a dobra do lençol, espero enquanto te vejo a afastares-te. As nuvens correm no céu, cortinas que querem cerrar-se em volta das minhas pernas - e tu não vens.

Espero por ti na beira desta cama verde, chamo-te, chamo-te, vem, e, ao ouvir o meu chamamento, os pássaros elevam-se, voam brancos, cavalos livres, alados, e correm sobre mim, dançam à minha volta. 

E a paz que me trazem não a sei dizer por palavras. Destapo-me então, dispo-me, deixo que vejam os meus seios, que percebam como os meus mamilos são doces, e descubro as pernas para que vejam a flor silvestre que lá se esconde, e espero que vão contar o que viram, que voem até ti e te contem, te desafiem, te deixem doido de ciúme ou de desejo.

Depois adormeço. E depois não sei se o que sinto na minha pele é a suavidade das nuvens ou a penugem branca dos pássaros ou a macieza suada dos cavalos brancos ou se és tu que voltaste para colher a flor.



[Abaixo dos pássaros brancos como cavalos alados, poderão encontrar mais um poema de Abel Neves, o Poeta que eu conheci há pouco e que tanto estou a gostar de descobrir. Logo a seguir, a menina bonita da voz de mel e ouro, Mayra Andrade. Traz-nos a música de Zeca Afonso e chama amigos - e que mais poderemos nós querer?]


No Parque da Paz


                                                      entre o verde verde das folhas
                                                      a nuvem é um alvo branco
                                                      o cavalo no ribeiro é um dardo branco
                                                      tu não         não tens brancura
                                                      tens a paz entre os mamilos
                                                      e esperas que seja uma flor silvestre
                                                      as horas enchem-se de melancolia
                                                      adormeces com a boca na dobra do lençol
                                                      e é tudo
                                                      um lençol branco
                                                      igualzinho a cavalos e a nuvens



                                                      [Poema da pag.48 de Abel Neves in 'Quasi Stellar']

14 outubro, 2013

O poeta morreu, uma folha arde


Subias, Poeta, para do alto melhor veres o mar, as copas das árvores, o voo das aves, a solidão dos homens.

Subias, Poeta, para do alto mais perto do céu de sentires, anjo sem asas, anjo branco e mudo, subias estes degraus para tentares entrar nas nuvens, no coração dos pássaros.

Tantas vezes, pela calada da noite, te esgueiravas por estes degraus acima, subindo, subindo, sabendo que estes degraus não levam a lado nenhum.

Até que um dia, Poeta, caíste no vazio. Contigo tombaram as folhas das árvores, contigo tombaram os sonhos.

Sobram os degraus puídos pelos teus passos cansados e que, aos poucos, vão ficando azuis como o céu onde talvez agora voes livre e cheio de futuro ou como as águas do rio onde talvez tenhas mergulhado com os bolsos pesados de amargura.

Ah, Poeta porque te foste?



[Abaixo da escada do Jardim do Ginjal, um poema de Abel Neves que nos leva com ele escada acima. A seguir, uma bela canção. É Cecile McLorin Salvant que aqui nos traz um momento de jazz.]



Escada que não leva a lado nenhum no Jardim do Ginjal



                                               vêem-se os degraus que subiu
                                               nenhum abismo aos lados nem acima
                                               só o polido calcário do desgaste
                                               o poeta morreu       uma folha arde
                                               bordada com as últimas palavras
                                               é um branco sujo de caminhar na neve
                                               são os degraus



[Poema da pag.31 de Abel Neves in Quasi Stellar]

24 junho, 2013

além dos lábios procurava gentileza


O homem que aqui passa no rio é um solitário. Tem um corpo bonito, tisnado, tem um rosto também bonito, e passa aqui, à minha frente, olhando a cidade, o rio, o horizonte. Quer perder-se no oceano, esquecer a boca que para ele se fechou pouco tempo antes.

Antes de embarcar procurou-me. Eu estava ao sol, no meio dos gatos e das gaivotas, aconchegada nas rochas molhadas, pensando em palavras, em sombras, em raízes, no fundo do mar.

Chegou apressado, espantou as gaivotas, afugentou os gatos, avançou para mim, braços fortes, peito quente, e agarrou-me. Os lábios sedentos, entreabertos, procuraram a minha boca. Não cuidou de antes tocar a minha alma, não cuidou de antes roçar minha a pele. Não. Avançou como um guerreiro sobre fortaleza já conquistada. 

Fechei os lábios. Pensei: não, assim não.

O homem tisnado, forte, apressado, deu um passo atrás e olhou-me, admirado. Porquê?, quis saber.

Não fui capaz de dizer nada. Calei-me.

Ele olhou-me com espanto e ainda desejo, essa tua boca de ameixa madura, deixa-me comê-la.

Mantive os lábios cerrados. Tantas coisas para dizer. Tanta vontade de me aninhar no colo, pedir para me levar no veleiro, deixar-me ir rente à água, as gaivotas talvez a voar junto a mim. Mas não disse, a ameixa madura sangrava de solidão.

E, por isso, sem um beijo, sem uma palavra, o homem tisnado fez-se à água, solitário, silencioso.




[Abaixo do homem que não comeu a gentil ameixa madura, mais um poema de Abel Neves e, logo a seguir, uma interpretação fantástica de Shostakovich pelo Simón Bolívar String Quartet, uma nova agradável surpresa]


Navegador num veleiro deslizando no Tejo, avistado do Ginjal, com Lisboa em fundo



                                                      azul forte e frio
                                                      procurou os lábios     sem pressa     eram dela
                                                      eram carne de ameixa
                                                      no exacto ponto em que está madura
                                                      corria o avesso da época das colheitas
                                                      não estou pronta     disse
                                                      além dos lábios procurava gentileza
                                                      uns passos mais no bairro feliz
                                                      abriu a janela      havia tanto para falar
                                                      e ela ali sem saber o que fazer     o que dizer



                                                      [Poema de Abel Neves in 'Quasi Stellar']

19 junho, 2013

a confissão das pedras é oração


Entro. Se vejo um mosteiro sinto necessidade de entrar. E, se o mosteiro em vez de santos tem memórias e se em vez de ouro tem pedras, ainda mais eu me comovo.

Entro. Vou em silêncio, ando na direcção da luz. Passo os claustros e tu vens comigo, paro e tu paras junto a mim, olho o céu e a luz e tu esperas por mim. Sabes que estou a rezar. Não rezo a deuses que não conheço: aqui entre as ruínas que me abrigam como uma pele sobre o meu corpo nu, eu rezo. Agradeço a luz que me ilumina, agradeço a tua presença, agradeço os caminhos que juntos haveremos de percorrer, agradeço o teu olhar compreensivo e doce, agradeço a esperança em dias melhores. Nada dizes mas talvez em silêncio rezes também. 

As paredes parecem desfazer-se, carne macia, uma seda íntima e eu rezo e tu esperas por mim e eu desejo que rezes comigo, por isso o digo mais que uma vez, reza comigo, reza por mim, a luz entra e eu hesito entre sair da sombra ou avançar para dentro da luz e, decida o que decidir, tu acompanhar-me-ás e eu digo-o porque quero que me acompanhes, vem comigo, vem, vamos percorrer juntos todos os caminhos.

São assim as minhas orações, sabes?, por isso não as posso dizer para que as ouças, não pareceriam orações a sério e são, são mesmo a sério.



[Abaixo do casal que entrou na ruína do Ginjal, um poema de um outro poeta que desconhecia, Abel Neves, mais uma boa surpresa. E porque de surpresa em surpresa vou percorrendo estes meus caminhos no Ginjal, a seguir tenho mais uma música muito especial, tal como especial é a interpretação do compositor, José Valente. Bem haja José Valente!]


Num espaço em ruínas no Ginjal



                                           entrar no mosteiro a qualquer hora
                                           ir adiante no recolhimento     na ruína
                                           sem livro nem pressa
                                           a confissão das pedras é oração
                                           no claustro há o suspiro do lagarto
                                           mas isso é no claustro     nas pedras ao largo
                                           íntimas do musgo



                                           [Poema de Abel Neves in Quasi Stellar]