Ginjal e Lisboa

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16 maio, 2013

Seguindo o sulco negro das consoantes dos teus cabelos, desenho lentamente os traços do teu rosto [no dia em que Nuno Júdice ganhou o Prémio Rainha Sofia]


Passas como uma sombra, uma nuvem. Percorro a rua e tu do lado de lá do vidro. Não me vês. Segues o teu caminho. Para ti não existo, pois não?

És um rosto recortado contra a mais bela cidade do mundo e, ao ver-te, é como se a cidade existisse apenas para emoldurar o teu rosto. Pelo meio corre um rio mas é como se te envolvesse como um manto azul. Segues, pois, como uma rainha, corpo inteiro, olhar frontal, orgulhosa, uma mulher em toda a sua majestade.

Deslizas como um enigma. Olho-te. Não vejo de que cor são os teus olhos, os teus lábios, o teu cabelo. Não sei como é a tua voz. Quando falas é como se as pétalas das palavras voassem em tua volta como pássaros brancos, como uma coroa alada? Gostava de saber.

Estou agora a escrever tentando descrever-te enquanto segues o teu caminho. Mas não consigo, sobram-me adjectivos, falta-me pele, perfume, o teu olhar.

Retiro algumas vogais, tento chegar à tua carne que é com certeza macia, tento chegar à tua alma, se necessário for retirarei também algumas consoantes. Tudo farei para te ter aqui, límpida, na superfície branca do écran que me olha.

Mas não te consigo adivinhar. Apenas adivinho o teu rasto.

Não faz mal. Talvez seja mesmo melhor que continues assim, misteriosa, uma mulher que a seguir se vai evaporar e entrar na paisagem azul, rodeada de pétalas silenciosas, de palavras luminosas, de pássaros brancos.




[Hoje é um dia grande para Nuno Júdice, um Poeta que transporta a luz, a música e o amor para dentro da sua poesia. Para o assinalar trago-o para o Ginjal, é a sua 14ª visita, e é sempre dia de festa quando isso acontece. Para o acompanhar com a dignidade que o momento requer, uma música também muito especial - e, uma vez mais e sempre, os meus agradecimentos ao Leitor que tão generosamente me dá a conhecer momentos musicais tão belos -, a música coral de Arvo Pärt]


No Cais de Cacilhas, de frente para Lisboa, o Tejo de permeio




                                            Seguindo o sulco negro das consoantes
                                            dos teus cabelos, desenho lentamente os traços do
                                            teu rosto. O meu objectivo é recortá-lo do papel
                                            e ver-te à transparência da página, limpando
                                            de vogais as tuas faces. Ponho-te neste retrato
                                            de olhos fechados, e colho dos teus lábios
                                            as pétalas que caíram com as sílabas
                                            do amor, para as voltar a pousar nas mãos
                                            que me estendes. Depois, vou buscar a luz
                                            que me falta ao fundo da tarde, e derramo-a
                                            pelo teu corpo, vendo soltarem-se da tua pele
                                            as gotas primaveris de um céu límpido
                                            como a imagem que aqui vejo florescer.


                                            ['Modelo ao ar livre' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']


20 fevereiro, 2013

Um vento levantou-se das mãos do ocaso


Se eu invento névoas, ventos, penumbras, búzios que guardam a música dos mares porque haveria alguém de me calar?

Saio das ruínas, atravesso janelas inexistentes e desloco-me sem peso, leve, silenciosa como uma palavra caída de um poema.

Atravesso paredes maceradas, ignoro os apaixonados que se escondem nos desvãos de escadas que não levam a lado nenhum, e roço ao de leve os olhos molhados dos gatos que bebem o azul dos rios. 

Cruzo as águas, abro as minhas asas, suplico luzes no olhar daquele me olha com o seu frio olhar de pedra, atravesso as nuvens, as névoas, sobrevoo as árvores nuas.

Ninguém.

Onde a memória dos que por aqui desfiavam poemas, onde a saudade dos que por aqui soltavam palavras no ar?

O céu rasga-se e descobre uma faixa de azul muito puro, uma gaivota olha a cidade e espera o vento e eu por aqui, em silêncio, tanto silêncio, tanto. O mundo caíu num pesado silêncio, tão pesado, tanto silêncio, tão silenciosa a queda. 

O vento anuncia-se, as aves recolhem-se, sabem como o vento pode ser cruel, a mancha de azul estreita-se, e eu tenho vontade de me enrolar nas árvores, de me cobrir de palavras e, em silêncio, sempre em silêncio, espero que o vento me traga os deuses, as casas, os viajantes, a vontade de voar. O vento, o vento, esse voar lento.



[Abaixo do céu em que o azul quase se ocultou, um belo poema de Nuno Júdice e, logo abaixo, mais uma maravilhosa interpretação de Yo-Yo Ma, agora com Bach, talvez a voz de Deus.]


Num dia de névoa no Ginjal, Lisboa sob uma luminosidade coada


                                        Um vento levantou-se das mãos do ocaso,
                                        atravessou as ruas com o seu passo lento,
                                        fez descer os panos das cordas onde os deuses
                                        os tinham pendurado, e entrou nas casas,
                                        arrombando as janelas com o seu pulso
                                        ferido. Segui a nuvem vermelha que
                                        o anunciara; e colhi as aves exaustas
                                        da árvore do crepúsculo, enchendo
                                        com elas os sacos da memória. Mas
                                        o viajante que encontrei à entrada
                                        da cidade perguntou-me para que
                                        os queria; e quando lhe dei esses sacos
                                        sangrentos pô-los às costas, seguindo
                                        o seu caminho, até desaparecer
                                        do outro lado do horizonte. E
                                        o vento foi atrás dele, perseguindo
                                        o seu canto, e deixando nas ruas
                                        o silêncio de um mundo imóvel.


                                        ['Vento' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']

02 julho, 2012

No retrato em que estás nua, com a mão a esconder o rosto


Quero sentir o sol na tua pele, na minha pele. Que se soltem as doces gotículas do teu corpo salgado e doce, que se soltem que eu quero bebê-las. Deita-te comigo aqui ao sol. Deita-te no meu ombro e deixa que o rio corra aqui sob os nossos pés, tapete viajante; deixa que o sol doure a tua pele transpirada, deixa, não te mexas, meu amor.

Está calor e o teu corpo abre-se ao sol que cobre e afaga e beija o teu corpo. Conheço bem os gostos do teu corpo. Tenho os olhos fechados mas poderia descrever a forma como, depois de cobrires o rosto com a mão, com uma delicadeza muito feminina, as juntas sob os seios, como arqueias as pernas macias, como passas vagarosamente a língua pelos lábios que ficam secos. 

E, então, eis que passa um veleiro e depois outro. Têm velas brancas e atravessam, pequena aves marinhas, suaves pétalas de sol, este rio que brilha tanto que, se abrisses os teus olhos, eu poderia ver neles, reflectido, este brilho azul com sabor a maresia.

Se abrisses os olhos e fizesses um gesto, bastaria apenas um gesto, talvez até apenas um sorriso, um dos marinheiros dos veleiros brancos viria buscar-te. Gostam de deusas louras de pele branca os marinheiros tisnados pelo sol, habituados a lidar com as aves, com as sereias. Viria buscar-te, ah disso eu não tenho dúvida, e levar-te-ia rio adentro para o ajudares na navegação, deusa, mil vezes minha deusa.

Mas, felizmente, não abres os olhos, felizmente não partes com um dos marinheiros. Ficas comigo, aqui, doce, ao sol. E eu fico então a imaginar-te, quando chegarmos a casa, despida, elegante, de pé contra a luz da rua, de frente para mim, minha deusa, minha amada. E eu, meu amor, para te homenagear ler-te-ei um poema daquela que há oito anos se foi levada pela luz, como se fosse com o rio viajante, com o veleiro de asas brancas, a nossa querida Sophia.



[Logo abaixo da imagem poderão ler mais um dos muito belos poemas do mais recente livro de Nuno Júdice. Imediatamente a seguir mais um belo momento musical da autoria de Manuel de Falla, um momento de grande amor à música]



Em Lisboa, sobre um Tejo azul brilhante, de frente para um 'outro lado' que se estende até à serra de Palmela



                             No retrato em que estás nua, com a mão
                             a esconder o rosto, passa um lento barco de
                             velas brancas como as pétalas que se desprendem
                             do sol. Um só remador o conduz, guiando
                             o seu rumo como se não fosses tu o seu último
                             porto; mas dobras-te ligeiramente para um fim
                             de verso que o vento arrastou até ao limite
                             da página, como se quisesses ajudar
                             essa navegação por entre as ondas tempestuosas
                             dos cabelos louros. Há muito o sol desceu
                             sobre esta sala; e quando te encostas à falsa
                             coluna de um templo vago, és tu a deusa,
                             ou essa a quem ela deu o seu corpo.





['Cara de Mallarmé a Méry Laurent' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']

28 junho, 2012

Amei-te nas fotografias obscenas


Olha para mim. Regista agora a minha imagem. Repara na cor do céu e na cor do rio, ajusta a entrada de luz. Estou bem assim?

Devo endireitar as costas? Devo deixar descair um pouco o ombro da camisola? Vê lá. Queres que me chegue mais para trás? 

Ou queres, antes, que me deite aqui em cima do muro? Ouve, vê lá como achas que fica melhor. Se quiseres tiro a blusa, não me custa nada. Sabes bem que estou habituada. Não foi assim que me conheceste? E então? Não estamos agora aqui? Tu mesmo dizias que me amavas quando me vias naquelas fotografias obscenas.

Sim, vou despir a blusa e deitar-me sobre o estreito muro e apanhas-me contra o rio como se este fosse fosse uma vasta colcha azul bordada a pontos de luz; e o céu vai parecer a cor dourada das cortinas de veludo de um dossel inventado, que nos ocultará do olhar do mundo.

O que achas? Olha, posso até tirar também as calças, e deito-me assim, não como se estivesse desmaiada mas, sim, bem viva, estátua incompleta que tu virás completar.

Olha, imagina, a minha nudez apenas coberta pelo meu cabelo, como se o meu cabelo fossem algas macias saídas destas águas. Mas coberta também pelo teu olhar. E tu enquadras o meu corpo arqueado, quase vénus ao espelho, e a torre será a parede que me ampara e a luz rosada do entardecer será a cor que dourará a minha pele ainda branca.

Depois, tu disparas e, se ficar bem, a seguir, vens com a tua espátula e começas a moldar o meu corpo, devagar. Eu sou gesso, e tu vens moldar as minhas coxas, as minhas ancas, os meios seios, o meu pescoço dobrado, o meu sexo que te espera.

Diz. Queres? Ou estou melhor assim, sentada de costas, vestida, joelhos abertos, uma mão elegantemente apoiada? Como é que preferes? Diz.

Faço como quiseres, já sabes que, perante uma paisagem assim, fico rendida.




[Bem. Logo abaixo da jovem escultura, poderão ver um belíssimo poema do mais recente livro de Nuno Júdice. Logo abaixo mais um momento de festejo da música com Heitor Villa-Lobos]



Junto à Torre de Belém, num fim de tarde ameno, com o Tejo muito azul, o céu muito limpo e suave 



                                 Amei-te nas fotografias obscenas de
                                 um limiar de acasos, quando a tua voz
                                 desmaiava numa eclosão de ecos. E uma
                                 colcha de silêncios tapou a tua nudez; o inútil
                                 flash da madrugada iluminou os teus olhos; e,
                                 de repente, o sol nasceu de uma enseada
                                 de cabelos, e subiu pelas cortinas do quarto;
                                 lentamente, encostaste a curva do teu joelho
                                 à sombra da parede como se ali ficasse,
                                 no vazio do gesso, a cor da tua pele.



['Escultura' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável', edição Maio 2012]

05 junho, 2012

E se no fim não souberes o caminho, ergue a taça, transforma a água em vinho


Escuta com atenção. És pequenina, tenho que te explicar tudo. Vai aqui sossegada ao meu lado. Não corras porque é perigoso, o rio está já ali e, se correres, podes cair e depois não tens pé. Aliás, és tão pequenina que não tens pé em lado nenhum.

Ouve. Não te distraias, presta atenção. Quando chegarmos lá ao fundo, vamos dar meia volta e vamos para casa. Primeiro entro eu e só passado algum tempo é que entras tu, não vá alguém pensar que estou a desviar uma menor. Percebeste? Ficas ali ao pé dos bilhetes. Não saias dali nem vás com ninguém, ouviste?

Tocas duas vezes e eu abro logo a porta. Depois, quando estiveres lá dentro, fazes tudo como eu te disser, está bem? Não vais refilar nem fazer perguntas patetas, ouviste? Vais ser uma boa menina, caladinha. Se te portares bem, depois, levo-te ali a comer caracóis. Percebeste? Prestaste bem atenção às instruções, pequenita?

&

Olha, agora escuta-me tu, ó meu grandão trinca-espinhas. Julgas que estás a falar com quem? Com alguma miúda de cinco anos? Que chatice, esta, hem. Ainda não percebeste que não sou eu que sou pequenina, palerma...? Não vês que és tu que és grande demais? Queres que eu comece a falar contigo como se falasse com o Cristo-Rei? Que maçada esta. E todos os dias isto, credo.

E agora presta, tu, muita atenção. Quando dermos meia volta e tu entrares em casa antes de mim, o que eu vou fazer antes de entrar é comprar uma garrafa de vinho, pão, queijo e presunto, que eu acho que isso que levas no saco não chega. Por isso, enquanto estiveres à minha espera, fazes favor e pões a mesa para, quando eu chegar, estar tudo já pronto. E mais. Escuta com atenção a ver se percebes. A casa está fechada há alguns dias. Por isso, mal entres, abre logo as janelas e limpa o pó. Como está muito calor, para não ficares todos transpirado, despe-te todo. Todo. Pronto, está bem: para ficares mais composto à mesa podes pôr um avental. E, quando eu chegar, quem vai dizer como é sou eu, ouviste? E vais fazer direitinho tudo o que eu disser. Se te portares bem talvez ganhes um presente mas como estiveste para aí com conversa de parvalhão, agora não vou dizer qual é. Percebeste bem as instruções, meu tira-linhas?



[Bem, depois destas instruções, só me resta sugerir-vos que leiam também as instruções segundo Nuno Júdice. Logo abaixo mais um fantástico momento de Mozart e mais um dueto, desta vez um inesperado dueto]



No Ginjal ao fim da tarde: as paredes gastas, o Tejo, a Ponte e, claro, a graça dos contrastes



                            Entra no quarto sem abrir a porta,
                            vira as costas a andar em frente,
                            faz força com a mão que está morta,
                            puxa pelo futuro até ao presente.

                            Dá uma volta para ires a direito.
                            Sobe sempre que estiveres a descer,
                            faz asneiras para seres perfeito,
                            mostra tudo o que tens de esconder.

                             Ouve bem o ruído mais silencioso,
                             fala mais alto que o mais calado,
                             fecha a luz do candeeiro apagado,

                             chora por ti ao sentires gozo:
                             e se no fim não souberes o caminho,
                             ergue a taça, transforma a água em vinho.


                             [Instruções de Nuno Júdice in 'Guia de Conceitos Básicos']

*


IMAGINANDO


Hoje
faria tudo ao contrário acredita
não se escolhe a vida quando se é pequena
pequena demais
quando os sonhos são em turbilhão e se tem pressa de ser mulher
e na cabeça muita confusão

mulher princesa
todas as sissis do mundo
avistando cavalos brancos
onde a beleza é tão grande como a boca dos sapos que os cavalgam
para o fundo

um pequeno erro mais outro e outro
e a teia vai crescendo e esmagando
e já só vês nevoeiro
a conversa do amor primeiro
constrói as tuas verdadeiras algemas

és tão pequeno quando não te quero
sem mim ficas sem brilho
faltam-te argumentos
e então
sobram desencantos
esqueço sentimentos
e sonhos do passado

mas como esta vida não passa de passagem
falta-me tempo... falta-me coragem...


['Imaginando' de Era uma Vez nos comentários aqui abaixo]


27 maio, 2012

Espero que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do teu corpo


Vou falar-vos da sabedoria do amor. 

... Não, afinal não consigo. Estive aqui a pensar e sobre a sabedoria do amor não sei falar-vos. A palavra 'sabedoria' intimida-me.

Vou antes dizer-vos algumas palavras simples - se for capaz, porque dizer coisas simples também não é fácil. 

O que é o amor? 

É um querer estar perto do outro, não passar sem isso, é querer que o outro goste de nós e que queira que façamos parte da sua vida. É defender o outro contra tudo e esperar que ele  faça o mesmo por nós. É querer construir a felicidade em conjunto, momento a momento.

                       Talvez seja muito mais que isto mas agora não me ocorre nada de muito fundamental.

O que não é o amor? 

É querer ser dono do outro, é aceitar que o outro seja nosso dono, é achar que é um jogo de cedências, é querer conhecer todos os segredos do outro, nem que tenha que se violentar a sua consciência ou paciência, é achar que não se podem ter segredos, é querer 'amestrar' o outro, é forçar a sua própria natureza para agradar ao outro, é dar cabo da vida do outro (e dos dois) com ciúmes, com inseguranças, com exigências.

               Claro que há muito mais aspectos que poderia incluir nesta lista mas talvez sejam menos relevantes do que os que referi.


Para concluir, direi ainda que o amor deve 'consumido' em doses inteligentes - não é coisa que se use de forma compacta, excessiva, que se desbarate. 

Deve ter-se sempre presente que o amor é coisa frágil, rara, que se desgastará se for usada de forma inadequada. Mas que viverá sempre, de forma reinventada, se for consumida com delicadeza, respeito, generosidade. Assim, percebendo que o amor requer inteligência, quem ame, entregar-se-á com transparência e inteireza ao outro, recriando o furor inicial, o sopro de alma, o bater de coração, o sorriso a dois, o desejo imaculado.



[Bem, não sei se disse coisas acertadas mas, pelo sim, pelo não, recomendo-vos que sigam até ao poema baixo no qual Nuno Júdice fala com palavras sábias do que é o amor. Logo a seguir, abrindo a semana dedicada Händel, uma grande música, uma grande voz.]



Casal passeia rente ao Tejo, junto a um cacilheiro que atraca junto ao Cais de Cacilhas,
no início do Ginjal (e Lisboa logo ali)



                                Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
                                que se despeja no copo da vida, até meio, como se
                                o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
                                como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
                                boca. Pergunto onde está a transparência do
                                vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
                                de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
                                são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
                                da alma suja de restos, palavras espalhadas
                                num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
                                hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
                                esperando que o tempo encha o copo até cima,
                                para que o possa erguer à luz do teu corpo
                                e veja, através dele, o teu rosto inteiro.


                                ['Plano' de Nuno Júdice in Poesia Reunida]

21 março, 2012

Levo-a como uma deusa ao templo do mar e vejo-a despir-se como se fosse flutuar

 
Quando chego a casa assim cansada, deito-me e deixo que as pálpebras tombem, que o corpo descanse, e toda eu esqueço o dia que passei, toda a vida passada, tudo. Descanso apenas.

Tu aproximas-te então, encostas-te a mim, tiras-me a roupa com cuidados mil, e eu deixo que trates de mim. Sinto, então, que dos teus dedos nascem flores e as macias pétalas começam a tocar o meu corpo, e é uma doçura bondosa que eu sinto. Devagar, aproximas-te ainda mais e falas uma estranha língua, uma língua sem idade, e eu deixo que a tua língua me diga segredos murmurados e suaves.

Aproximas-te ainda mais, sinto o cheiro tépido e familiar do teu corpo, a tua boca beija-me com cuidada ternura e eu sinto o carinho com que tentas que o meu corpo descanse da intensidade do dia.

Então, quando eu estou totalmente tranquila e rendida, tu pegas-me ao colo e levas-me até à beira do mar. Aí chegados, tu, com gentileza e devoção, pousas-me como num templo e eu aceito, agradecida, que me tenhas levado à rendição.

Despida na beira do rio, dizes-me, então, baixinho, que pareço estar a flutuar e pedes, baixinho, que te leve comigo. Digo-te que sim, é o que eu quero e puxo-te: anda, põe-te aqui em cima de mim, vamos os dois

E, sob um céu que brilha como que iluminado por mil velas, envoltos em segredos e estrelas proibidas, entramos os dois no mais profundo recanto do mar, lá onde o céu e o mar se tocam, lá onde os corpos se desfazem do desejo que os consome.

Se alguém nos visse diria, olha como aquelas duas estrelas brilham ou, então, lá vão dois anjos. Mas somos apenas nós, felizes, flutuando sobre o sagrado templo do mar.


No Ginjal, gaivota pousada como uma deusa num altar. Ao fundo, Lisboa a bela, o mais sagrado templo.


             É um mistério esta claridade
             que nasce de um corpo sem passado,
             onde a leio numa língua sem idade,
             adivinhando o seu futuro neste fado.

             Caem pálpebras num cair de pano,
             abrem-se dedos num florir de mão,
             no seu jardim a primavera não é engano,
             no seu rosal o amor está em botão.

             Uma boca de pérolas envolve-a de segredo,
             e dela tiro um brilho de estrela.
             Respiro o seu perfume sem ter medo,

             acendo nos seus olhos a última vela.
             Levo-a como deusa ao templo do mar,
             e vejo-a despir-se como se fosse flutuar.


              ['Vénus aérea' de Nuno Júdice in 'Guia de conceitos básicos']

09 dezembro, 2011

O seu corpo pertence à terra, entrega-se ao ritmo subterrâneo das raízes e conta o tempo que falta para a noite

 
Esta mulher está no centro da paisagem mas não vê o que a cerca, não vê a suave neblina, não vê o dia que desponta. Esta mulher vive de noite, e então, quando os gatos sobem às janelas, quando os navios deslizam silenciosos, quando as restantes pessoas se retiram, quando a fria bruma desce sobre a cidade, enchendo-a de sombras, a mulher deixa que as suas raízes escorram até o rio, até à terra. Com as entranhas quentes, fumegantes, com o coração latejante, com as mãos em brasa, escrevendo como uma louca, esta mulher entrega-se ao silêncio e deixa que se evolem os seus mais secretos sentimentos.



[Esta mulher precisa de música, é parecida comigo esta mulher. Sigamo-la até ali mais abaixo, partilhemos com ela a Sonata Arpeggione de Schubert.]
 

À beira Tejo, a Ponte ao fundo, o Ginjal do outro lado
- mulher ocupando o centro da paisagem -
                

                     Na luz indecisa que deixa adivinhar
                     a manhã, a névoa que impregna o ar
                     desfaz-se quando os dedos de fogo do sol
                     a limpam, restituindo ao dia
                     a sua transparência. Mas a mulher que
                     ocupa o centro da paisagem não
                     se apercebe da mudança. O seu corpo
                     pertence à terra, e entrega-se
                     ao ritmo subterrâneo das raízes, ouvindo
                     o canto que regula a passagem
                     das estações. Um desejo de sombra apodera-se
                     da sua alma; e conta o tempo que falta
                     para a noite, para se entregar ao silêncio
                     do mundo, no lento eclipse
                     dos sentimentos.


                     ('Paradoxo natural' de Nuno Júdice in A a Z )

 

19 julho, 2011

Quero-te, como se fosses a presa indiferente, a mais obscura das amantes

Gosto que me queiras assim, amante indiferente, presa obscura, falsa presa, incansável caçadora.

Gosto que recordes as minhas palavras - também o meu rosto, também o calor do meu corpo, também o meu perfume, também o meu olhar, também o meu sorriso, também o vento que às vezes dá na minha saia rodada, também as minhas mãos num terno afago - mas sobretudo as minhas palavras.

Gosto de pensar que, às vezes, fechas os olhos e, decidido a esquecer-me, recordas, uma por uma, todas as minhas palavras, palavras às vezes decididas, outras vezes incertas como a rosa soprada pela aragem que vem do rio, palavras que te despem, palavras que me despem, palavras que me expõem, nua perante ti.

Palavras de amor para usares sobre a tua pele. Ou sob a tua pele, como queiras.

Dias felizes: casal namora junto ao Tejo, no Farol de Cacilhas, o Terreiro do Paço logo ali, o Castelo de S. Jorge no alto da colina

Quero-te, como se fosses
a presa indiferente, a mais obscura
das amantes. Quero o teu rosto
de brancos cansaços, as tuas mãos
que hesitam, cada uma das palavras
que sem querer me deste. Quero
que me lembres e esqueças como eu
te lembro e esqueço: num fundo
a preto e branco, despida como
a neve matinal se despe da noite,
fria, luminosa,
voz incerta de rosa.

('Poema de amor para uso tópico' de Nuno Júdice in Poesia Reunida)

30 junho, 2011

Se eu definisse o tempo como um rio, a comparação levar-me-ia a tirar-te de dentro da sua casa


Sento-me à beira do rio e o tempo suspende-se.

Leio um livro e, quando chego ao fim, o relógio da beira do cais, marca as mesmas horas que quando comecei.

Subo as escadas que vêm do rio e me levam até um sítio suspenso no tempo.

Tu sentas-te comigo, pedes-me que leia para ti, e ficamos os dois, aqui, neste local perfeito em que o rio nos envolve e em que tempo pára para nós.

No Ginjal, sobre o Tejo, e com Lisboa logo ali, mulher pescadora

Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos.

('Tempo fluvial' de Nuno Júdice, in A a Z)

20 dezembro, 2010

Mas assim é o poema, construído devagar, palavra a palavra

Há um véu no meu olhar.

Palavra a palavra fomos construindo um poema proibido, um poema prometido, o que pensávamos que seria amor.

Até que já não sabíamos como acabar o poema, nem sabíamos se o poema se queria acabar.

E dou por mim, como se fosse uma princesa prometida a chamar por ti para saber se queres acabar o poema.

Ou o amor.

Há um véu no meu olhar.


(Pensando na vida, numa tarde no Ginjal, o Tejo aos pés, Lisboa do outro lado)


Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

(Até ao Fim in de Pedro, Lembrando Inês, Nuno Júdice)

14 novembro, 2010

O poema lírico nasceu de uma roseira numa manhã no Ginjal

Era outono e eu estendi o teu corpo na areia das margens, tapando a tua nudez com os ramos de arbustos fluviais.  Pedi-te que me falasses, como se tu ainda soubesses as últimas palavras do amor.

Mas agora nem o tempo vai chegar para te dizer como te sinto longe de mim. É uma espécie de dor, nem sei explicar, nem sei o que esperar. Mas sei que te amo.




Uma rosa é uma rosa é uma rosa

Roseira num quintal do Ginjal, numa manhã de Outono, o Tejo e Lisboa em fundo


O poema lírico nasceu de uma roseira. Não
digo que fosse a rosa de cima, aquela que todos
olham, primeiro que tudo, pensando
em cortá-la para a levarem consigo. É
a rosa nem branca nem vermelha, a rosa pálida,
vestida com a substância da terra
a que toma a cor dos olhos de quem a fixa, por
acaso, e ela agarra, como se tivesse
mãos abstractas por dentro das suas folhas

Colhi esse poema. Meti-o dentro de água,
como a rosa, para que flutuasse ao longo de um rio
de versos. O seu corpo, nu como o dessa mulher
que amei num sonho obscuro, bebeu a seiva
dos lagos, os veios subterrâneos das humidades
ancestrais, e abriu-se como o ventre da
própria flor. Levou atrás de si os meus olhos,
num  barco tão fundo como a sua própria
morte.
Abracei esse poema. Estendi-o na areia
das margens, tapando a sua nudez com os ramos
de arbustos fluviais. Arranquei os botões
que nasciam dos seus seios, bebendo a sua cor
verde como os charcos coalhados do outono. Pedi-lhe
que me falasse, como se ele só ainda soubesse
as últimas palavras do amor.
(Metáfora contínua de um único sentimento).

(Arte poética com citação de Holderlin, Nuno Júdice)

08 novembro, 2010

Estaremos sempre tu e eu sozinhos na terra para começar a vida

Nem quero pensar se é certo querer o que vou lhe dizer: se a chuva cai e o sol não sai, penso em você e tenho vontade de viver em paz com o mundo e consigo - porque estaremos sempre sozinhos, estaremos sempre você e eu sozinhos na terra para começar a vida.

(Homem à proa do Ginjal, desafiando o Tejo, enfrentando Lisboa)


Sempre


Ao contrário de ti
não tenho ciúmes.

Vem com um homem
às costas,
vem com cem homens nos teus cabelos,
vem com mil homens entre os seios e os pés,
vem como um rio
cheio de afogados
que encontra o mar furioso,
a espuma eterna, o tempo.

Trá-los todos
até onde te espero:
estaremos sempre sozinhos,
estaremos sempre tu e eu
sozinhos na terra
para começar a vida.

(in Poemas de Amor de Pablo Neruda, excelente tradução do poeta Nuno Júdice)

24 outubro, 2010

A vida feita dos seus corpos obscuros e das sua palavras próximas, na Pensão Célia

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua mais que perfeita imprecisão, a vida que traz consigo as emoções e os acasos, a luz inexorável das profecias que um dia se vão realizar e dos encontros que sempre se soube que se iriam dar, mesmo que ainda não se saiba quando, onde.  

(Pensão Célia e Restaurante Marisqueira Vale do Rio, em Cacilhas, no Largo que dá entrada para o Ginjal)


A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.

("A vida" in "Teoria Geral do Sentimento", Nuno Júdice)
 
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