Passas como uma sombra, uma nuvem. Percorro a rua e tu do lado de lá do vidro. Não me vês. Segues o teu caminho. Para ti não existo, pois não?
És um rosto recortado contra a mais bela cidade do mundo e, ao ver-te, é como se a cidade existisse apenas para emoldurar o teu rosto. Pelo meio corre um rio mas é como se te envolvesse como um manto azul. Segues, pois, como uma rainha, corpo inteiro, olhar frontal, orgulhosa, uma mulher em toda a sua majestade.
Deslizas como um enigma. Olho-te. Não vejo de que cor são os teus olhos, os teus lábios, o teu cabelo. Não sei como é a tua voz. Quando falas é como se as pétalas das palavras voassem em tua volta como pássaros brancos, como uma coroa alada? Gostava de saber.
Estou agora a escrever tentando descrever-te enquanto segues o teu caminho. Mas não consigo, sobram-me adjectivos, falta-me pele, perfume, o teu olhar.
Retiro algumas vogais, tento chegar à tua carne que é com certeza macia, tento chegar à tua alma, se necessário for retirarei também algumas consoantes. Tudo farei para te ter aqui, límpida, na superfície branca do écran que me olha.
Mas não te consigo adivinhar. Apenas adivinho o teu rasto.
Não faz mal. Talvez seja mesmo melhor que continues assim, misteriosa, uma mulher que a seguir se vai evaporar e entrar na paisagem azul, rodeada de pétalas silenciosas, de palavras luminosas, de pássaros brancos.
[Hoje é um dia grande para Nuno Júdice, um Poeta que transporta a luz, a música e o amor para dentro da sua poesia. Para o assinalar trago-o para o Ginjal, é a sua 14ª visita, e é sempre dia de festa quando isso acontece. Para o acompanhar com a dignidade que o momento requer, uma música também muito especial - e, uma vez mais e sempre, os meus agradecimentos ao Leitor que tão generosamente me dá a conhecer momentos musicais tão belos -, a música coral de Arvo Pärt]
No Cais de Cacilhas, de frente para Lisboa, o Tejo de permeio |
Seguindo o sulco negro das consoantes
dos teus cabelos, desenho lentamente os traços do
teu rosto. O meu objectivo é recortá-lo do papel
e ver-te à transparência da página, limpando
de vogais as tuas faces. Ponho-te neste retrato
de olhos fechados, e colho dos teus lábios
as pétalas que caíram com as sílabas
do amor, para as voltar a pousar nas mãos
que me estendes. Depois, vou buscar a luz
que me falta ao fundo da tarde, e derramo-a
pelo teu corpo, vendo soltarem-se da tua pele
as gotas primaveris de um céu límpido
como a imagem que aqui vejo florescer.
['Modelo ao ar livre' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']