Ginjal e Lisboa

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19 abril, 2012

Tu e eu temos de permeio a rebeldia que desassossega


Num dia de névoa branca, através da qual rompia um único raio de luz, passeio lentamente junto ao rio. 

Pouquíssimas pessoas, uma quietude muito mansa, um quase silêncio que as ondas contra as rochas da pequena praia não perturbam. Os telhados, onde existem, já vergaram, as paredes estão gastas, escritas, esventradas, as portas estão tapadas ou são vestígios da perfeição de outrora, as janelas não existem, são buracos abertos ao vento, dos incertos beirais nascem inesperadas flores, nos ares passam lentas e silenciosas gaivotas. No rio, desliza, no meio da neblina, um enorme navio e, quase ao lado, um pequeno veleiro, inocente e branco. 

Uma solitária e húmida brancura.

Procuro-te. Onde estás? Olho em volta, discretamente. Procuro-te em silêncio. Quantas saudades. Talvez ali mais à frente, talvez atrás daquela verdíssima árvore, quem sabe ali naquele banco de frente para a cidade hoje imaginária, nada, não estás, e eu procuro por ti.

Abeiro-me da margem, procuro-te nos rochedos onde apenas um pescador, envolto em névoa, espera tranquilo. Tu não. Tu não estás aqui.

Espero, talvez ainda chegues, talvez. 

Mas depois tenho que me ir embora. E, então, quando já não esperava que aparecesses, quando desço para o caminho ao longo do cais, sinto que um olhar agudo me observa. Vou caminhando e olho em volta tentando descobrir a quem pertence o olhar.

E, então, vejo-te. Estás junto à praia, saltaste para os rochedos, e detiveste-te, suspenso a olhar para mim, iluminado pelo raio de luz.

E é este olhar atento, astuto, paciente, este olhar que me invade, mas com lenta suavidade, este olhar que me compreende e me acompanha que eu procuro quando por aqui passo.

Desassossegas-me, quase me tiras o fôlego tal a intensidade transparente do teu olhar. És humano como eu ou, então, sou eu que sou uma gata como tu. Saltamos por cima dos escombros, atravessamos as névoas, e ninguém nos doma. Guiamos-nos pelos nossos sentidos, não conhecemos a desistência, amamos a largueza de horizontes, a liberdade de movimentos, o silêncio rente ao mar, a harmonia suave desta paz tão tranquila. 



[Logo abaixo do meu amigo, poderá ver-se a Ode ao Gato e, descendo um pouco mais, duas gatas miam ao desafio, um inesperado momento e, claro, é ainda Rossini]


Nos rochedos da margem do Tejo, na pequena praia junto ao Jardim do Ginjal, um gato
- um belo ser inteligente que por ali anda, num extraordinário exercício de liberdade 





                         Tu e eu temos de permeio 
                         a rebeldia que desassossega, 
                         a matéria compulsiva dos sentidos. 
                         Que ninguém nos dome, 
                         que ninguém tente 
                         reduzir-nos ao silêncio branco da cinza, 
                         pois nós temos fôlegos largos 
                         de vento e de névoa 
                         para de novo nos erguermos 
                         e, sobre o desconsolo dos escombros, 
                         formarmos o salto 
                         que leva à glória ou à morte, 
                         conforme a harmonia dos astros 
                         e a regra elementar do destino. 




                         ['Ode ao Gato' de José Jorge Letria in 'Animália - Ode aos Bichos']