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segunda-feira, 26 de abril de 2021

O pequeno Henry e a maldade

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 26 de abril de 2021

O pequeno Henry e a maldade

A crueldade se esconde sob o manto de uma ‘família feliz’.O silêncio é aterrador! Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:

O assassinato do menino Henry, de apenas 4 anos, em sua casa, provavelmente em seu quarto, perpetrado com toda a probabilidade por seu padrasto com a cumplicidade e participação de sua mãe, coloca-nos diante de uma face sombria da natureza humana. Não se trata de um crime qualquer, mas de um crime que foge dos parâmetros do que tendemos a considerar normal. Não há nada de banal aqui, uma vez que entra em cena um tipo de ação voltada para a maldade, tendo-a como guia.

Não estamos diante de uma ação má contraposta a uma ação boa, na medida em que pessoas que cometem tais atos se situam para além desta distinção moral. Sentimentos morais estão aqui completamente ausentes, não orientam tal tipo de comportamento. O que se pode dizer de uma mãe que mente e encobre o assassinato de seu filho? Ou de um padrasto (ou seja lá o que essa pessoa signifique) que tortura durante semanas essa criança até a explosão hemorrágica de seus órgãos internos? Pessoas que agem dessa maneira visam única e exclusivamente à destruição do outro.

A crueldade é outro componente desse tipo de ação. A tortura sistemática, o ritual de seu acompanhamento durante semanas, o gozo do sofrimento alheio e a progressão da violência expõem um comportamento estrangeiro a qualquer denominação de normalidade. O criminoso age impunemente, com uma mãe conivente e uma babá medrosa de poder ser ela mesma objeto de tais atos. Cria-se uma teia de cúmplices, cada um conforme a sua “razão”, cuja característica central é o acobertamento e o silêncio. Depois, procurarão elas dizer que foram coagidas, ameaçadas ou coisa que o valha. A crueldade se esconde sob o manto de uma “família feliz”. O silêncio é aterrador!

O ato mau, nesta acepção, não é simplesmente uma explosão, algo súbito, como sob o efeito de drogas ou num surto psicótico, mas algo que se inscreve num “cálculo”, medindo cada passo na execução progressiva da violência. Há uma ascensão da crueldade, cujas etapas exigem meios de execução e falas que encenem uma espécie de “normalidade”. São atos frios, não guiados por emoções, mas por uma certa forma de racionalidade que tem como finalidade a maldade. Ou seja, são atos que deveriam ser mais propriamente denominados irracionais, porém de uma irracionalidade específica, a de estar voltada friamente, com cálculo, para o mal.

Hannah Arendt, ao refletir sobre o caso Eichmann, utilizou a expressão “banalidade do mal” para caracterizar o comportamento desse oficial nazista. A expressão terminou fazendo fortuna, embora a própria autora não tivesse clareza de seu significado. Serviu, na época, para descrever a natureza de um ato cujo autor expunha uma certa normalidade, como se fosse um mero executor de ordens de um Estado anormal. Um comportamento “normal” em outros aspectos, salvo nesse precisamente. Independentemente de Eichmann não ser um mero executor e de ter plena consciência e responsabilidade de seus atos, o que está em questão é a forma de acobertamento de um tipo distinto de maldade, ou seja, o de atos exclusivamente voltados para o mal, para além da sua distinção em relação ao bem. Numa carta a Scholem, Arendt se vê obrigada a melhor explicar essa sua formulação, acrescentando, então, que a maldade nazista não seria diferente em sua natureza de outras, salvo em seu aspecto quantitativo, potencializado pela técnica. Ele nunca seria “radical”, por ser somente extremo, não tendo tampouco “profundidade” nem dimensão “demoníaca”. O conceito de mal radical, utilizado em Origens do Totalitarismo, não é mais, agora, de valia, pois ao perscrutá-lo nada se encontra, uma vez que só o bem teria “profundidade”. A sua banalidade significaria o seu aspecto chocante por expressar o comportamento de homens “normais” que, sob certas circunstâncias, abandonam toda “normalidade”.

Posteriormente, em seus Diários de Pensamento, ela se defronta com o caráter insatisfatório de sua abordagem, desta vez para reconhecer a sua limitação filosófica, restrita a uma análise moral, e não existencial, voltada para a natureza própria, positiva nela mesma, da maldade. Quando qualificamos cotidianamente uma pessoa ou uma ação como má, tal afirmação dá lugar a sentimentos morais como compaixão, comiseração e mesmo perdão. A relação com o outro se assenta em parâmetros morais tanto para o bem quanto para o mal, engendrando um terreno comum de entendimento e moralidade. Quando passamos, porém, para os fenômenos individuais ou coletivos que seriam nomeados pela expressão “mal radical”, tais parâmetros e sentimentos morais são implodidos, dando lugar a expressões de horror, de não reconhecimento, de alteridade absoluta, não ensejando nem compaixão nem perdão para os seus executores.

Ao pensarmos no Dr. Jairinho e em Monique, mulher e mãe, nos vemos na necessidade de recorrer a outro conceito de maldade, que transborda nossa forma habitual de pensar. E é esse transbordamento que se torna objeto de pensamento ao propiciar a reflexão sobre esta espécie de sem fundo da natureza humana.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A maldade banal e seus crimes sem pena

 

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 14 de abril e 2021

A maldade banal e seus crimes sem pena

Tortura e morte de Henry por Jairo Jr. são extremo cruel que resulta da omissão geral. José Nêumanne via Estadão, mostrando em que que berço maldito foi gerado o monstro que assassinou o menino Henry:

A simpatia e os bons modos sociais do vereador carioca Jairo Júnior antes da tortura e morte de Henry Borel, de 4 anos, filho de sua namorada, Monique Medeiros, assim como uma eventual “loucura de monstro”, em nada atenuam as suspeitas do delegado Henrique Damasceno, da 16.ª DP. Seu comportamento anterior à morte do menino ajusta-se ao do nazista julgado em Israel em 1961, como relata Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém: ele é “normal” e seu comportamento, socialmente “desejável”. Os ensaios da filósofa judia, publicados em 1963 pela revista norte-americana The New Yorker, aplicam-se a outro episódio protagonizado pelo ex-filiado ao Partido Solidariedade (terrível ironia!).

Tal fato foi narrado pelo repórter fotográfico Nilton Claudino em texto publicado pela revista Piauí, Minha dor não sai no jornal, em 2011, sob esta linha fina: “Eu era fotógrafo de O Dia, em 2008, quando fui morar numa favela para fazer uma reportagem sobre as milícias. Fui descoberto, torturado e humilhado. Perdi minha mulher, meus filhos, os amigos, a casa, o Rio, o sol, a praia, o futebol, tudo”. Ele, a repórter e o motorista foram delatados por “colegas” da redação do jornal, quando moravam na favela do Batan, em Realengo, sob domínio da milícia à qual é acusado de pertencer o pai do investigado no caso Henry, coronel PM Jairo Souza Santos. Atualmente em prisão domiciliar por causa da covid e de generosa mercê da ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia.

O jornalista registrou que “maconheiros” são justiçados em julgamentos públicos diante da dita comunidade por milicianos. E também a captura da equipe do jornal pelos verdadeiros donos da ordem e da “lei” na periferia do Rio. “Durante a tortura, estávamos lado a lado, eu, a repórter e o motorista. Num quarto escuro, só iluminado por telas de celulares, que usavam para que pudéssemos assistir uns aos outros serem subjugados. O motorista pedia para que eu afastasse escorpiões que subiam por suas costas. Não podia ajudá-lo. Ouvíamos passos de muitos PMs. Tiraram nossos capuzes e substituíram por sacos plásticos, parecidos com os de supermercados. Com eles, produziam asfixiamentos temporários. Mas dava para ver as fardas quando olhava por baixo do plástico.”

O que chamavam de coronel, ou zero-um, tipo de denominação favorita do presidente Jair Bolsonaro para os próprios filhos, deu o veredicto de misericórdia que livrou o trio de “intrusos” da morte. Mas não do opróbrio. O fotógrafo viu-se forçado a separar-se da mulher e dos filhos e viver em esconderijo incerto e não sabido até hoje, 13 anos depois do fato e a dez da publicação de seu testemunho, que não emocionou nenhuma autoridade nem organismos de defesa de direitos humanos. Segundo Claudino, a repórter, não identificada, reconheceu a voz de um vereador que participava das sessões de tortura. Desde então, este foi beneficiado pela anistia dada aos donos das milícias e da política.

Onze anos depois do rapto e a oito da publicação da Piauí, o castelo da impunidade foi reforçado pela reeleição para uma vaga na Câmara Municipal do Rio. Jairo Jr. participou de uma live no Dia da Criança com o então prefeito Marcelo Crivela, e nela declarou: “A gente tem que dar o exemplo e aí isso daí vai levando para nossas gerações, para nossos filhos”, pontificou. Esse discurso desmorona no episódio em que é investigado por tortura e assassinato do indefeso enteado. É que agora encarou uma inesperada muralha de decência contra sua ocultação. O suspeito não desistiu de usar seu poder político. Mas os médicos que constataram o óbito no Hospital Barrador se recusaram a liberar o corpo sem a necessária necropsia do Instituto Médico Legal (IML). E a autoridade responsável por esse órgão público negou-se a liberar o cadáver sem o laudo exigido por lei. O vereador telefonou na madrugada do crime para o governador em exercício, Cláudio Castro, mas este não interferiu. O Partido Solidariedade expulsou-o sumariamente. A Câmara Municipal dá sinais de que poderá cassar-lhe o mandato. A ver.

Certo é que o aviso dado por Hannah Arendt continua valendo para o episódio em si e para todas as manifestações do presidente Jair Bolsonaro e de seu vice Hamilton Mourão a favor de torturas em geral e do torturador Brilhante Ustra em particular. A tortura de qualquer ser humano indefeso, em especial, mas não somente, se for uma criança, e leve ou não a vítima à morte, é crime e covardia indefensáveis para cidadãos “de bem”, ou não, e que professem quaisquer credos religioso ou ideológico. Elogiá-los é a eles se acumpliciarem.

O livro de Hannah Arendt deve nos guiar no bom combate a que se referiu o apóstolo Paulo. Ele ensina que a banalidade do mal é o fenômeno da recusa do caráter humano do homem, alicerçado na negativa da reflexão e na tendência a não assumir a iniciativa própria de seus atos. O ser humano está limitado pela alienação e banalização do mal. No caso não há omissos inocentes. Apenas cúmplices. E ninguém deverá ser poupado, tendo participado por ação, inércia ou omissão.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com