Katarina Feitoza, delegada-geral da Polícia Civil de Sergipe
Foto: Anderson Barbosa/G1/Arquivo
Foto Ascom / SSP-SE
Texto publicado originalmente no site AJUNEWS, em 08 de
março de 2020
‘A mulher tem que ser
quase perfeita no cargo que ocupa para se destacar’, diz delegada-geral de
Sergipe
Por Adelia Felix *
Dona de uma respeitável carreira na Polícia Civil de
Sergipe, a delegada-geral Katarina Feitoza revelou ao AjuNews o malabarismo
feito para manter o equilíbrio em uma posição complexa: guiar suas equipes de
policiais, assumindo a responsabilidade sobre os resultados das investigações
diante da sociedade, cuidar da família, do corpo e da mente.
“A mulher tem que ser quase que perfeita no cargo que ocupa,
não só nesse, mas em qualquer cargo para poder se destacar. Não é o meu caso,
eu não sou perfeita. […] Você não pode deixar nenhum prato cair, porque se um
prato desse cai, você deixa de ser competente. As pessoas que estão do lado de
fora não conseguem ver, não conseguem perceber quantos pratos você teve que
equilibrar ao mesmo tempo, ser mulher, estar sempre bonita, você tem que deixar
sua casa em ordem, você tem que cuidar da alimentação, do seu marido, do seu
filho, da questão psicológica. Toda uma equipe que depende de você”, detalha.
Quando assumiu o comando da Polícia Civil, ela recorda que
apesar de possuir capacidade técnica, teve que enfrentar o machismo como a
maioria das mulheres que ocupam altos cargos. “Homens que querem minar o seu
trabalho e o seu profissionalismo pelo fato de você ser mulher, de ficar
criticando seu salto alto, ficar criticando o batom que você passa, coisas
pequenas, mas que querem demonstrar para os outros que você não tem capacidade,
que você está ali, mas é um favor que eles estão fazendo a você”, recorda.
Apesar da árdua tarefa, Katarina afirma que nunca cogitou em
abandonar a carreira policial. “Nunca pensei em desistir. Eu enfrentei muitos
problemas, mas nenhum deles me fez desgostar da minha profissão”, garante. Além
disso, segundo a autoridade policial, o apoio de uma boa equipe fez e faz
diferença em seu trabalho. “O capitão de um barco, a grande sabedoria dele está
em escolher a sua tripulação, porque as tempestades virão, independentemente de
qualquer cargo que você assuma. Como você vai enfrentar essas tempestades é que
vai depender da tripulação que você escolhe. E, a minha tripulação é nota 10”,
avalia.
Na entrevista, a delegada-geral ainda comentou sobre seu
possível ingresso na política e violência doméstica. Leia abaixo:
AjuNews: Há quanto tempo a senhora integra a Polícia Civil
de Sergipe?
Katarina Feitoza: Há 19 anos. Eu sou da turma de 2001,
então, há 19 anos eu sou delegada de polícia. Já passei por várias delegacias
no interior do estado, aqui na capital e por diversos cargos de gestão, como
corregedoria. Já fui corregedora da Polícia Civil, já fui coordenadora das
delegacias da capital, já fui coordenadora das delegacias do interior e por
duas vezes delegada-geral.
AjuNews: Consegue recordar as emoções daquele dia quando
recebeu a missão de comandar a Polícia Civil de Sergipe pela primeira vez?
Katarina Feitoza: Consigo sim, é como se fosse ontem. Há
quase 10 anos nós fomos convidadas pela primeira vez para assumir esse cargo,
que foi um misto de receio. Eu não posso mentir aqui, a gente sentiu um certo
medo de não conseguir atender às expectativas, porque nós mulheres sabemos toda
carga emocional e toda expectativa que são geradas quando uma mulher assume um
cargo como esse. Todos esperam demais daquela mulher, esperam que a gente
sempre faça um pouco a mais pelo fato de sermos mulheres. Capacidade técnica
nós tínhamos, nós temos e tínhamos na época para assumir. É tanto que o
secretário da Segurança Pública da época, que é o mesmo de agora, doutor João
Eloy de Menezes, confiou essa missão. Nos foi confiada essa missão e graças a
Deus nós conseguimos concluir bem quatro anos, deixando a polícia um pouco
melhor do que encontramos. Cada gestor que assume o cargo deixa um pouquinho
melhor do que aquele que o antecedeu.
AjuNews: A senhora é uma referência e muito respeitada como
delegada. Como foi para poder conquistar esse respeito e espaço em uma área na
qual a presença de homens é majoritária?
Katarina Feitoza: É como eu disse, a expectativa que se
gera, que a sociedade, que as pessoas, que os próprios colegas, que todos têm é
muito alta em cima da gente, em cima da mulher. A mulher tem que ser quase que
perfeita no cargo que ocupa, não só nesse, mas em qualquer cargo para poder se
destacar. Não é o meu caso, eu não sou perfeita, de forma alguma, tenho várias
falhas, mas busco sempre ouvir minha equipe, busco fazer com que as pessoas
sejam ouvidas, busco fazer com que a minha equipe se sinta acolhida, para que a
gente possa desenvolver as metas e os objetivos traçados. O primeiro passo
nosso sempre em qualquer cargo que assumir é verificar quais são as metas, qual
é o planejamento. Planejamento estratégico é tudo para que a gente possa fazer
frente a tantos problemas, não fazer frente a homens e mulheres, nós temos que trabalhar
de mãos dadas ainda mais dentro da polícia, da segurança pública, mas para que
a gente possa fazer frente a violência é preciso que a gente esteja calcado,
amparado. Amparado em quê? Nas leis, amparado no planejamento muito bem feito,
um planejamento estratégico com metas, com indicadores que possam nos dar um
rumo e é assim que a gente agiu na primeira gestão e está agindo agora,
trazendo os melhores para dentro do mesmo barco. O capitão de um barco, a
grande sabedoria dele está em escolher a sua tripulação, porque as tempestades
virão, independentemente de qualquer cargo que você assuma. Como você vai
enfrentar essas tempestades é que vai depender da tripulação que você escolhe.
E, a minha tripulação é nota 10.
AjuNews: Já teve que lidar direta ou indiretamente com o
machismo em sua carreira?
Katarina Feitoza: Já sim, mas um machismo muito indireto.
Aqui eu nunca tive que enfrentar ele diretamente. Tanto é que no início quando
eu assumi logo como delegada de polícia, eu nem entendia que aquilo, que
aquelas atitudes eram atitudes machistas. Depois é que a gente vai percebendo
com amadurecimento, de que aquilo que você sofreu foi uma atitude machista, de
homens que querem minar o seu trabalho e o seu profissionalismo pelo fato de
você ser mulher, de ficar criticando seu salto alto, ficar criticando o batom
que você passa, coisas pequenas, mas que querem demonstrar para os outros que
você não tem capacidade, que você está ali, mas é um favor que eles estão
fazendo a você, de você está ali como delegada ou como policial, como agente,
como escrivã de polícia, que você é muito bonita para estar naquele local, que
você deveria ser modelo. A gente ouve esse tipo de coisa e depois é que a gente
passa a entender que são atitudes machistas, que eles não se conformam. Muitas
vezes, esses homens machistas, logicamente, que o machismo está arraigado nas
mulheres também, na sociedade como todo, de entender que você está ali não
porque você tem os olhos verdes, não porque você é simpática, não porque você é
boazinha, não porque você é mãe, você está ali porque você é uma excelente
profissional, então você conquistou aquele local. Aquela mulher que está ali,
aquela agente de polícia, aquela escrivã, aquela policial militar, aquela
bombeira, ela está ali porque conquistou igualmente ao homem o direito de estar
ali.
AjuNews: Em algum momento a senhora pensou em desistir?
Katarina Feitoza: Não, nunca. Nunca pensei em desistir. Eu
enfrentei muitos problemas, mas nenhum deles me fez desgostar da minha
profissão. Nem em nenhum momento passou pela minha cabeça deixar de ser
delegada de polícia.
AjuNews: Qual foi o momento mais difícil que a senhora teve
na sua carreira?
Katarina Feitoza: Por incrível que pareça, os momentos mais
difíceis que a gente passa e que eu passei, foi quando a gente teve que aliar
problemas pessoais, com a família, com o filho. E, profissionalmente falando,
foi um fato que parece bobo, mas foi bem complicado na época. Porque eu estava
trabalhando no interior e vim para a capital e meu filho tinha três anos de
idade, ele estava começando a ir para escola e como eu estava na capital, eu
estava mais presente na vida dele e surgiu uma convocação para que eu voltasse
para o interior do estado, para ser regional na delegacia de Itabaiana. Eu
tinha que ficar a semana lá no interior porque tinha compromissos, eu não
poderia estar indo e vindo e deixando a cidade descoberta, ainda mais em um
período eleitoral. E meu filho ficou aqui só e isso causou alguns problemas
escolares. Ele não queria mais voltar para a escola porque sentia que a escola
fazia com que a mãe dele sumisse. Isso gerou alguns problemas e o momento mais
difícil para mim na minha carreira foi esse de conciliar minha maternidade e
todas aquelas neuras que toda mulher acredito que tenha. Será que estou sendo
uma boa mãe? Será que eu penso mais no meu trabalho do que no meu filho? Será
que eu não poderia voltar no final do expediente todos os dias? Essa questão
mesmo da maternidade que fala muito alto e que às vezes a gente tem que saber
conciliar, esse foi o problema mais difícil que eu passei.
AjuNews: Como é esse malabarismo para administrar a casa e
chefiar a Polícia Civil de Sergipe?
Katarina Feitoza: A gente se sente aqueles malabaristas dos
pratos do circo, que um prato está para cair você corre e pega um outro prato e
você não pode deixar nenhum prato cair, porque se um prato desse cai, você
deixa de ser competente. As pessoas que estão do lado de fora não conseguem
ver, não conseguem perceber quantos pratos você teve que equilibrar ao mesmo tempo,
ser mulher, estar sempre bonita, arrumada, porque a gente tem que se achar
bonita, estar com uma boa aparência, além disso, você tem que deixar sua casa
em ordem, você tem que cuidar da alimentação, do seu marido, do seu filho, você
tem que cuidar da educação do seu filho, da questão psicológica e tem o seu
trabalho, ainda mais quando você assume um cargo de chefia. Toda uma equipe que
depende de você, dos seus comandos, você tem que estar com uma cabeça
equilibrada, você tem que estar bem para poder dar os comandos certos. São
muitos pratinhos para equilibrar.
AjuNews: O que é que é feminismo para a senhora? A senhora
se considera uma mulher feminista?
Katarina Feitoza: As pessoas ainda têm a ideia de que o
feminismo seria o contrário do machismo, e não é. O feminismo é uma coisa que
vai muito além disso, é o empoderamento da mulher, é a mulher saber que ela não
precisa fazer a mais que um homem quando ela assume um cargo como esse meu,
para mostrar que é melhor que o homem. Eu vejo o feminismo como isso, como um
empoderamento feminino, como a gente saber qual é o nosso lugar no mundo, se
fazer respeitar, criar os nossos filhos homens. Meu filho é homem, sabendo que
lavar prato, que varrer casa, que nada disso ele está ajudando a mulher dele,
ele está dividindo o trabalho que também é dele. Feminismo para mim é a mulher
começar a perceber que ela não precisa ser perfeita, nem precisa vestir a capa
da mulher maravilha porque ela vai pifar. Então, é ela saber que tem seus
limites e que ela é uma mulher empoderada, que ela é bela, que ela é bonita da
maneira como ela se apresenta e que ela não precisa de ninguém, nenhum homem,
nem ninguém de fora que diga que ela é bonita para ela se achar bonita, nem se
achar poderosa, mas isso não quer dizer que o feminismo para mim seja o
contrário do machismo, nem seja a competição entre homem e mulher, de forma
alguma.
AjuNews: Para a mulher que está sendo vítima de violência,
um boletim de ocorrência não basta. Como a mulher pode se proteger? Qual seu
conselho, de mulher para mulher, a partir da sua experiência e de ferramentas
oferecidas pelo Estado?
Katarina Feitoza: Você falou certo. Quando uma mulher é
vítima de violência e ela faz um boletim de ocorrência é porque muitas coisas
já aconteceram antes. Eu nunca vi uma mulher ir no primeiro abuso fazer o
boletim de ocorrência. Quando ela chega nesse ponto de procurar uma delegacia é
porque ela já não aguenta mais, todos os tipos de maus tratos físicos,
psicológicos. Porque a gente sabe que um mau trato psicológico ele é muito
forte. Às vezes você não recebe um tapa, mas o tapa psicológico é pior que o
físico. É aí que vem o feminismo. É entender que ninguém tem o poder de decisão
sobre sua vida, a roupa que você veste, como você trata os amigos, o seu ciclo
de amizade é só seu, não é dele, então, ficar atenta aos mínimos detalhes, um
grito, um xingamento, o respeito tem que ser mútuo, a mulher também tem que
respeitar seu parceiro, logicamente, mas ela tem que estar atenta aos primeiros
sinais.
Porque esses sinais estão evoluindo, esses eventos vão
evoluindo até chegar a um feminicídio, e a partir do momento que ela faz o
boletim de ocorrência que ela é atendida na delegacia da mulher tem todo um
protocolo. A partir disso você não tem mais como voltar atrás, você tem que
seguir adiante, e muitas vezes essa mulher está fragilizada psicologicamente.
Ela não sabe bem que caminho seguir, o empoderamento feminino que a gente fala
não chegou até essa mulher. Então, ela está dividida entre o pai dos filhos
dela, o homem que sustenta a casa, aquele homem que ao mesmo tempo bate é
aquele que conforta emocionalmente. Então, ela quer desistir daquela denúncia e
voltar para casa na esperança que tudo vai melhorar, daí a um ano, seis meses,
quatro meses ela aparece morta dentro de casa.
Quando chega na delegacia nós temos vários mecanismos que a
lei Maria da Penha nos oferece, como a questão da medida cautelar que é o
afastamento. Hoje nós temos a patrulha Maria da Penha, desenvolvida pela
Polícia Militar e pela Guarda Municipal de Aracaju. É tudo muito pouco ainda.
Na realidade, é um crime de aproximação. É alguém que lhe conhece, que sabe de
todos os seus movimentos. É muito difícil que a polícia evite esse tipo de
crime, a prevenção tem que ser muito anterior a isso.
A gente tem que conversar isso com nossas filhas, que ela
não se deixe subjugar por homem nenhum, e as mães de meninos tem que começar a
conversar com seus filhos desde pequenos para que eles entendam que a mulher
não pertence a eles, que a mulher não é um objeto, que a mulher não é o sexo
frágil, que eles têm que proteger, tem que respeitar. A mulher quer ser
respeitada, a mulher não quer um príncipe em um cavalo branco que chegue para
salvar ela, a gente se salva, a gente tem mecanismos para se salvar, a gente
quer ser respeitada.
AjuNews: As últimas eleições foram marcadas pelo ingresso de
policiais na política. A senhora também avalia essa possibilidade?
Katarina Feitoza: Olhe, eu sei que a vida e o mundo, a vida
da gente é uma roda gigante. Dá muitas voltas, então, colegas meus que nunca
imaginaram entrar na política estão entrando agora. Hoje, não me imagino de
forma alguma seguindo uma carreira política, eu tenho planos para a segurança
pública, para a Polícia Civil especificamente. Porque a gente aqui trabalha de
forma integrada, então, tudo aquilo que a gente puder contribuir para que a
segurança pública, que a segurança de Sergipe melhore, seja lá onde eu estiver,
seja sentada nesta cadeira, seja em uma delegacia, a gente sempre vai batalhar
e lutar por coisas que modernizem, que melhorem nossa investigação policial,
nossa segurança pública. Hoje, Katarina Feitosa não tem nenhuma pretensão
política. Amanhã é outro dia, eu não sei, eu serei outra Katarina, cada dia
somos pessoas diferentes, então, hoje eu não tenho nenhuma pretensão.
*Colaborou Roberta Cesar
Texto reproduzido do site: ajunews.com.br