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quinta-feira, 25 de outubro de 2018

ARTIGO - O discurso e a exacerbação, por Clóvis Saint-Clair

A estratégia de Bolsonaro, de privilegiar a polêmica em lugar da argumentação 
Foto: Reprodução

Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 25/10/2018 

O discurso e a exacerbação

O biógrafo e a semiótica do Cavalão

Por Clóvis Saint-Clair *

Claude Zilberberg era um sujeito franzino, de fala mansa e gestos tão contidos que pareciam executados em câmera lenta. Morreu na sexta-feira passada, aos 80 anos, sem fazer alarde. Responsável por livrar a semiótica francesa das amarras do estruturalismo e incorporar a dimensão do sensível a suas análises, foi o semioticista mais importante de sua geração. No entanto, se você der uma busca no Google, não encontrará registro de sua morte. Excetuando-se a comoção no círculo dos semioticistas que o estudam, pode-se dizer que faleceu no anonimato. Felizmente, sua obra está aí — inclusive, traduzida para o português — e é lembrada aqui para nos ajudar a compreender o discurso de um sujeito apelidado Cavalão, pelo vigor físico, de fala grossa, frequentemente grosseira, e de gestos tão incontidos que, às vezes, parecem flagrados por câmeras de segurança: Jair Messias Bolsonaro, deputado federal e candidato do Partido Social Liberal (PSL) à Presidência da República.

Zilberberg é o pai da semiótica tensiva. Em linhas gerais, diz que apreendemos o mundo pela linguagem, sim, mas é o sensível que comanda o inteligível nesse processo — ou seja, no fundo, o que importa e determina nosso modo de interpretar e interagir com o mundo é nossa vivência sensível, nossas emoções, e não a razão. Para explicar como a coisa funciona, Zilberberg elaborou um gráfico do esquema tensivo que rege esse processo, em que as coordenadas verticais correspondem ao eixo da intensidade e do sensível e as coordenadas horizontais correspondem ao eixo da extensidade e do inteligível. Essas dimensões são inversamente proporcionais: quanto maior a intensidade, menor a extensidade — e vice-versa.

Para facilitar o entendimento, recorremos aqui a um exemplo trivial do que Zilberberg está querendo dizer. Quando tomamos um susto, não sabemos, no momento do susto, que estamos tomando um susto: nós simplesmente vivenciamos essa experiência sensível. À medida, porém, que vamos nos dando conta de que apenas tomamos um susto, ou seja, que entendemos que tomamos um susto, racionalizando aquela emoção, nós a tornamos inteligível, até que o susto passa. No gráfico do esquema tensivo, o susto nos leva, num primeiro momento, ao alto do eixo da intensidade — ou do assomo, nas palavras do francês. A partir do instante em que entendemos o que está se passando — ou se passou —, fazemos um movimento descendente na curva da tensividade, em direção ao ponto máximo do eixo da extensidade — ou da resolução, também nas palavras do semioticista.

Assim é, também, no debate político. São as emoções que ditam as regras e tornam o discurso dos candidatos mais persuasivo. Não interessa tanto dizer a verdade, criar um efeito de sentido de realidade, mas, sim, o dizer verdadeiro, que toca o coração dos eleitores, desperta suas emoções e os leva a se identificar com o candidato, que passa a ser mais confiável do que os próprios fatos. Não é à toa que especialistas em comunicação e marketing, cientistas sociais e políticos, todos são unânimes em afirmar que os eleitores decidem o voto muito mais pela emoção do que pela razão. Isso explica o fenômeno recente a que assistimos no Brasil: gente das classes que mais necessitam de saúde, educação, emprego e segurança votando em candidato cujo programa ameaça, justamente, a garantia e a universalização desses direitos.

Com 30 anos de política, exercendo o sétimo mandato consecutivo, campeão de votos, Jair Bolsonaro sabe disso como poucos políticos brasileiros. Sua estratégia de comunicação é justamente a da exacerbação do discurso, do apelo emocional, levando o debate para o paroxismo da emoção, do impacto. Não discute pontos, apenas posições. Troca argumentos pela polêmica. Foi assim que ganhou notoriedade, espaço na mídia e o apelido de Mito entre seus seguidores. É o campo em que sabe e se sente mais à vontade para duelar. Opera no campo do sensível, não do inteligível. Fizesse o contrário, revelaria a fragilidade de sua argumentação e ficaria mais exposto diante de um eleitor estimulado a racionalizar suas escolhas. Ao polemizar sobre questões como democracia, porte de armas, maioridade penal, direitos de mulheres, negros e da população LGBTI, não apenas esvazia o debate sobre esses temas, como desvia a atenção dos oponentes, escondendo a defesa e mesmo o voto em medidas que prejudicam economicamente e socialmente boa parte de seu eleitorado.

O entrevero com a deputada Maria do Rosário (PT-RS), em 11 de novembro de 2003, exemplifica bem quanto a estratégia de Jair Bolsonaro nos embates políticos pode ser eficiente, nestes tempos em que a imagem bem trabalhada e imediata substitui mil palavras reflexivas na arena política. Os dois parlamentares eram entrevistados, separadamente, por uma equipe da Rede TV! sobre a redução da maioridade penal, no Salão Verde do Congresso Nacional. A reportagem tinha como gancho o assassinato brutal do casal de namorados Felipe Caffé, de 19 anos, e Liana Friedenbach, de 16, em São Paulo, cometido por Roberto Alves Cardoso, o Champinha, de 16 anos. Bolsonaro defendia a redução da idade penal quando foi interrompido por Maria do Rosário, então relatora da CPI da Exploração Sexual Infantil:

— O senhor é que promove essas violências...

— Eu que promovo estupros?

— É, o senhor promove, sim...

— Grava aí, grava aí que eu promovo estupro. Grava aí...

— É, o senhor, eu estou vendo isso, sim...

— Grava aí, grava aí, eu sou estuprador...

— Quem defende a violência é o senhor...

— Eu sou estuprador agora...

— É, sim...

— Olha, jamais eu ia estuprar você porque você não merece!

Maria do Rosário se referia a um dos ingredientes usados pelo ex-capitão em sua receita para a segurança pública, a de que violência se combate também com violência. Atingido pela acusação de que promovia aquelas violências com seu discurso de ódio, rapidamente Bolsonaro transferiu o debate desse ponto específico, localizado na mediana da curva tensiva de Zilberberg, para o da posição — “Eu sou estuprador agora…” —, exacerbando o discurso, levando a discussão lá para o alto do eixo da intensidade. E Rosário, que não havia chamado o colega de estuprador, mas condenara seu ponto de vista acusando-o de estimular a violência, pisou na casca de banana: “É, sim…”, relegando o debate a um segundo plano.

A estratégia de privilegiar a polêmica em lugar da argumentação é antiga e já foi evidenciada diante das câmeras pelo próprio Bolsonaro, quando entrevistado por Jô Soares em 2005. Ao minimizar e justificar a declaração em que defendeu o fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o parlamentar disse ao apresentador, em tom jocoso:

— Se eu não peço o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, jamais você estaria me entrevistando aqui agora.

A frase que revela a tática de Bolsonaro explica o cenário destas eleições presidenciais de 2018: se não radicalizasse suas posições e elevasse o debate político ao paroxismo da intensidade, muitas vezes adotando um discurso de ódio e intolerância, conquistando corações e mentes de um eleitorado descontente e revoltado “com tudo isso que está aí” — especialmente com a classe dos políticos, à qual o candidato finge não pertencer —, talvez não estivesse no segundo turno.

*Clóvis Saint-Clair é jornalista, autor do livro Bolsonaro, o homem que peitou o Exército e desafia a democracia e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFF.

Este artigo é parte do especial  Por dentro da mente de Bolsonaro . Acompanhe ao longo da semana  novos textos aqui.

Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com