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segunda-feira, 3 de julho de 2023

Preconceito, agressividade e desconfiança: como é ser ateu no Brasil

Legenda da foto: Richard Dawkins durante entrevista à BBC

Publicado originalmente no site BBC BRASIL, em 6 de  novembro de 2016

Richard Dawkins é um dos ateus mais conhecidos do mundo, autor de 'Deus, Um Delírio'

Preconceito, agressividade e desconfiança: como é ser ateu no Brasil

Por André Bernardo (Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil)

Passava das 22h30 do último dia 2 de outubro quando o então candidato a verador por São Paulo Edmar Luz (PPS-SP) publicou em seu perfil no Facebook uma nota de agradecimento aos 709 eleitores que votaram nele. Minutos depois, começaram a surgir as primeiras mensagens em sua timeline: algumas de apoio, outras de zombaria.

Dos mais de 480 mil candidatos a vereador, Edmar era o único declaradamente ateu do Brasil. "Enquanto uns demonstram curiosidade em saber como um ateu lida com as questões cruciais da vida, como morte e doença, outros, mais exaltados, reagem com desprezo e agressividade", relata o candidato.

Durante a campanha, Edmar perdeu a conta das vezes em que foi insultado nas ruas. A cena era sempre a mesma: ele distribuía o "santinho" com a propaganda política, o eleitor dava uma rápida lida no papel e, dali a pouco, vociferava algum palavrão, indignado.

"Demônio" e "Satanás" eram os mais recorrentes. Não bastasse, ele sofreu ataques nas redes sociais e, o mais curioso, recebeu críticas até de quem também se diz ateu.

Mas Edmar diz não se intimidar: afirma que continuará a defender, nas próximas eleições, um Estado laico de fato e o fim do preconceito contra ateus.

Uma pesquisa de 2007 encomendada ao CNT/Sensus revelou que apenas 13% dos eleitores brasileiros votariam em um candidato ateu para presidente da República. Para efeito de comparação: 84% votariam em um negro, 57% em uma mulher e 32% em um homossexual.

Até hoje, há quem diga que Fernando Henrique Cardoso só não ganhou de Jânio Quadros na disputa pela prefeitura de São Paulo, em 1985, porque titubeou diante de uma pergunta do jornalista Boris Casoy, no último debate na TV, sobre sua crença em Deus.

"É difícil ser ateu no Brasil porque negar a existência de Deus contraria o modo de viver da maioria da população", analisa Geraldo José de Paiva, coordenador do Laboratório de Psicologia Social da Religião, do Instituto de Psicologia da USP. "Mexer com Deus é como mexer com a mãe", compara.

"Religião não define caráter"

No Brasil, a rejeição aos ateus não se limita aos que pleiteiam cargos políticos. Levantamento da Fundação Perseu Abramo, de 2008, mostra que 42% dos brasileiros admitem sentir aversão aos descrentes. Desses, 17% declararam sentir ódio ou repulsa e 25%, antipatia.

"Já fui até ameaçado de morte", afirma Daniel Sottomayor, um engenheiro civil que ajudou a fundar, em 2008, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea) ─ entidade que reúne 17 mil membros e mais de 592 mil seguidores no Facebook.

Inspirada em uma campanha britânica, a Atea tentou estampar anúncios em ônibus de quatro capitais brasileiras, em 2010. Não conseguiu. A propaganda foi considerada ofensiva e rejeitada pelas empresas. Um ano depois, nova investida. Dessa vez, a associação conseguiu espalhar alguns poucos outdoors pelas ruas de Porto Alegre (RS), com slogans do tipo "Religião não define caráter" ou "Somos todos ateus com os deuses dos outros".

"Enquanto as notas de Real louvarem a Deus, as escolas públicas tiverem ensino religioso e as repartições do governo ostentarem crucifixos, os ateus continuarão ser tratados como cidadãos de segunda classe", protesta Sottomayor.

Na opinião do biólogo Eli Vieira Araújo, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, campanhas ateístas não são efetivas porque se valem de slogans que, como qualquer frase de efeito, estão "cheios de furos".

É o caso de "A fé não dá respostas. Só impede perguntas". "Sabe quem refutaria essa frase? Isaac Newton. Ele fez ciência só até por volta dos 30 anos. Depois disso, dedicou-se à teologia", diz Araújo.

Um dos fundadores da Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS), Eli afirma que, quando o assunto é não ter vergonha de se assumir publicamente, ateus e agnósticos ainda têm muito a aprender com a experiência de gays e lésbicas.

"Embora ainda seja difícil para muita gente lidar com LGBTs fazendo carícias públicas, até quem tem ojeriza a eles reconhece que estão dentro de sua liberdade num país laico", analisa.

O preconceito que ateus e agnósticos sofrem ao redor do mundo encorajou o cineasta Micael Langer a abordar o tema em Godless - The Truth Beyond Belief (Sem Deus - a verdade além da crença, em tradução livre) que deve chegar aos cinemas no segundo semestre de 2017.

Em alguns países, negar a existência de uma entidade divina pode significar a perda do emprego. Em outros, uma sentença de morte. "Muitas vezes, os ateus preferem se trancar no armário a passar por situações constrangedoras", diz.

Até o momento, Langer já entrevistou dois dos incrédulos mais famosos do planeta: o biólogo evolucionista britânico Richard Dawkins, autor de Deus, Um Delírio, e o sociólogo americano Phil Zuckerman, de A Sociedade Sem Deus.

"O público-alvo do meu filme não são os ateus. Meu objetivo é trazer um pouco de luz a um debate que, apesar de ser importante e afetar a vida de milhões de pessoas, costuma ser varrido para debaixo do tapete."

"Deus prefere os ateus"

Originalmente, um dos entrevistados de Godless seria Drauzio Varella. Quando ele diz às pessoas que não segue uma religião ou acredita em Deus, quase sempre ouve a mesma resposta: "Mas, o senhor? Uma pessoa tão boa...". "

Muita gente enxerga os ateus por um viés religioso, como se fôssemos anticristos a serviço do demônio", ironiza o músico e escritor Tony Bellotto, que diz ter "saído do armário" por influência de Christopher Hitchens, jornalista e escritor britânico que morreu em 2011.

"Não compreendem que alguém pode ser ético, solidário e feliz seguindo princípios humanistas e não preceitos religiosos", completa Bellotto, que tem em seu escritório uma placa onde se lê: "Deus prefere os ateus".

Desde que assumiu publicamente sua não-crença, o guitarrista dos Titãs já passou por situações, no mínimo, inusitadas. Certa vez, uma senhora no avião tirou da bolsa um folheto evangélico do tipo "Jesus te ama" e ofereceu a ele, com a seguinte recomendação: "Leia isso, vai te fazer bem". Quando Tony avisou que não acreditava em Deus, foi obrigado a ouvir: "Mas, você tem que acreditar em alguma coisa!".

"Volta e meia, alguns me provocam dizendo que, na hora da morte, apelarei para Deus. A esses, recomendo a leitura de Últimas Palavras", rebate Bellotto, citando o livro póstumo de seu ateu favorito, Hitchens.

A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade de Vanderbilt, nos EUA, também demorou a se declarar ateia. Por recomendação da mãe, sempre relutou em dizer em cadeia nacional que não acreditava em Deus.

Em 2010, porém, ela rompeu o silêncio. Na crônica "Sou ateia e sinto-me discriminada". Na época, recebeu dezenas de e-mails, a maioria deles em tom condescendente, lamentando sua posição.

"Proselitismo é um saco: pró ou contra religião. Ser vítima de pregação é sempre desagradável. É uma pena que alguns ateus não entendam que as pessoas religiosas têm tanto direito à sua religião quanto nós ao ateísmo", afirma.

Mas, afinal, o que pode ser feito para combater a intolerância? Para Tony Bellotto, não se deve misturar educação com religião. "A doutrinação religiosa tem que estar fora das escolas", enfatiza o músico.

Daniel Sottomayor, da Atea, defende leis mais duras contra quem discrimina ateus e agnósticos. Já Suzana Herculano-Houzel propõe incentivar as pessoas a pensar por si mesmas, a ter espírito crítico e a exigir evidências antes de aceitar a palavra alheia. "Mas a convicção tanto de que Deus existe quanto de que ele não existe deve ser sempre respeitada", sublinha a cientista.

Texto e imagem reproduzidos do site: bbc.com/portuguese/brasil

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Legenda da foto: Osama bin Laden, homem que mudou o rumo da história do mundo

Publicado originalmente no site da BBC BRASIL, em 16 de julho de 2016

O mundo seria mais pacífico se não houvesse religião?

BBC

iWonder

Religião e guerra são dois temas que muitas vezes se cruzam.

Desde as Cruzadas em 1095 até hoje em dia, vimos inúmeros conflitos travados em nome da fé.

E enquanto muitos acreditam que as guerras explodiriam se não houvesse a religião e que a fé é, na realidade, uma grande promotora da paz, para outros a guerra e a religião não podem se separar.

Nesta reportagem, um historiador analisa o caso do grupo que se autodenomina Estado Islâmico; mostramos três conflitos que normalmente são associados à religião, mas também têm outras causas; e falamos de trechos de livros religiosos que se referem a conflitos.

Justin Marozzi, historiador e jornalista

Desde muito tempo, a guerra e a religião se encontram em uma relação complicada e, muitas vezes, tensa.

Mas será que a religião alguma vez é a causa principal de uma guerra? Ou simplesmente um veículo utilizado para incitar as tropas, dividir sociedades e saquear países?

A causa original de qualquer guerra ou conflito é complexa e cheia de nuances, e há muitos fatores em jogo, como poder, ideologia, dinheiro, território e identidade.

Ocasionalmente, esse causa original até é esquecida, se perde ou é mal interpretada.

Na Irlanda do Norte, por exemplo, um conflito de 30 anos parecia dividir a sociedade em grupos religiosos: os unionistas protestantes contra os republicanos católicos.

De fato, o problema era mais territorial, com visões distintas sobre a identidade e sentimento de pertencimento nacional em sua essência. Os unionistas queriam permanecer no Reino Unido e os republicanos queriam voltar a ser parte da República da Irlanda.

Alguns especialistas acreditam que a religião nunca é a causa das guerras. Já outros dizem que a religião tem um papel de protagonismo na instigação da violência e do conflito.

A campanha do grupo autodenominado Estado Islâmico, por exemplo, criou uma violência generalizada que sacrificou milhares de inocentes, de todas e de nenhuma fé, em muitas partes do mundo.

O EI pratica uma versão extrema do Islã, e não pensa duas vezes antes de derramar sangue para lograr seus objetivos.

Sua causa imediata é a invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos, durante a qual seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, foi preso.

Ao mesmo tempo, havia uma luta de poder em Bagdá entre duas facções do Islã: o governo dirigido por xiitas e os sunitas privados de representação.

Estes últimos se uniram a insurgentes anti-governo.

O EI aproveitou a situação e ganhou território na Síria e no Iraque.

Com esta situação política de fundo, podemos responsabilizar somente a religião por este conflito violento?

Especialistas como o ex-oficial da CIA e psiquiatra forense Mark Zeiman diriam: "Não, não se trata da fé, sim da indignação emocional e moral, o que leva às pessoas a se unir a grupos como o EI."

Mas eu tenho outro ponto de vista.

Depois de passar a maior parte da última década vivendo em meio a conflitos e escrevendo sobre muitos dos países mais assolados pela guerra, meu parecer é que não se trata de anti-imperialismo.

Trata-se se pintar o mundo de negro.

Com sua interpretação extremista do Islã, para este núcleo duro de crentes, o motivo é puramento religioso.

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Histórias de guerras

Esses três conflitos são muitas vezes interpretados como tendo causas religiosas.

Mas será que é isso mesmo?

Os historiadores Marozzi e Aaron Edwards resumem fatores que, para eles, precisam ser levados em conta quando se pensa nessas guerras.

Guerra da Bósnia

No início da década de 1990, a Iugoslávia se desintegrou diante de uma série de guerras civis.

Depois da Eslovênia e da Croácia se separarem, a Bósnia teve seu referendo de independência, o que levou a um conflito entre muçulmanos, sérvios (predominantemente cristãos ortodoxos) e croatas (predominantemente católicos).

Com um forte apoio do governo sérvio e grupos extremistas de Belgrado, os bósnios sérvios estavam determinados a ficar no que restava da Iugoslávia e ajudar a estabelecer uma grande Sérvia.

A guerra foi, então, principalmente um conflito territorial, alimentado por nacionalismo e divisões étnicas.

Os enfrentamentos foram amargos, os bombardeios indiscriminados, houve violações massivas sistemáticas e limpeza étnica.

Esta limpeza étnica obrigou comunidades inteiras a deixarem seus lares em operações cuidadosamente planejadas.

O incidente mais notório resultou no assassinato de quase 8 mil homens e meninos bósnios muçulmanos em Srebrenica em 1995, meses antes do fim da guerra.

Afeganistão

Quando os Estados Unidos foram atacados em 11 de setembro de 2011, foram considerados culpados a Al Qaeda e seu líder Osama Bin Lader, que previamente havia dito que os EUA haviam declarado "a guerra contra Deus, seu mensageiro e muçulmanos" e havia pedido a todos os muçulmanos que "cumprissem a ordem de Deus de matar os americanos".

Depois do 11 de setembro, os dirigentes do Talebã do Afeganistão foram acusados de proteger a Al Qaeda e Bin Laden.

Os EUA, apoiados por aliados, invadiram o país.

O objetivo alegado era desmantelar a Al Qaeda e impedir que tivessem uma base segura para suas operações, tirando os talebãs do poder no Afeganistão, onde eles aplicavam uma rígida interpretação da lei islâmica.

Depois do Afeganistão, a "guerra contra o terror" se expandiu com a invasão ao Iraque, justificada com argumentos que em sua maioria foram desacreditados.

Alguns começaram a considerar a "guerra contra o terror" com uma guerra do Ocidente contra o Islã.

Estado Islâmico

Detalhe de carta do EI

Carta enviada a um reverendo batista por membros do EI avisando que um missionário cristão havia sido decapitado.

O chamado Estado Islâmico emergiu dos escombros da invasão do Iraque e da guerra civil síria, e pratica uma forma extrema de islamismo no qual sangue é derramados com objetivos políticos e religiosos.

O grupo conquistou território na Síria e no Iraque e assumiu a responsabilidade por ataques em várias partes do mundo, como Tunísia, Líbano, França e Bélgica.

Ele rechaça a democracia, considerando-a como uma ideologia ocidental desencaminhada, e tenta desafiá-la não apenas atacando o que chama de governos apóstatas (não crentes) do Oriente Médio e África do Norte, mas também as democracias liberais centrais do Ocidente.

O grupo advertiu outros grupos jihadistas do mundo que eles têm de aceitar sua autoridade suprema para erradicar os obstáculos para restaurar o reino de Alá Terra e defender a comunidade muçulmana contra infieis e apóstatas.

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Aaron Edwards, historiador e escritor

O historiador e escritor Aaron Edwards reuniu uma mostra de citações relacionadas à guerra e o conflito em escrituras sagradas. Clique para vê-las.

Hinduísmo

Do Bhagavad-gītā

Governando sentido, mente e intelecto, com a intenção de libertação, livre de desejo, medo e raiva, o sábio é sempre livre. [5:28]

Pense em seu dever e não duvide. Não há honra maior para um guerreiro que participar de uma guerra justa. [2:31]

*tradução livre

Judaísmo

Da Torá

Não matarás. [Exodus 20:30]

Jeová, nosso Deus, fará com que vocês entrem na terra que vão possuir e ele mesmo expulsará os povos que vocês enfrentarem.

E Jeová, nosso Deus, entregará esses povos nas suas mãos, e vocês os atacarão e destruirão completamente. Não façam nenhum acordo de paz com eles, nem tenham pena deles. [Deutoronomio 7:1-2]

*tradução livre

Islã

Do Corão

Combata por Alá contra quem combater contra vocês, mas não os exceda. Alá não ama os que se excedem. [Capítulo 2 verso 190]

Continue lutando contra eles até que todo o dano cesse e o caminho prescrito por Alá prevaleça. Mas se eles desistirem saiba que a hostilidade é só contra os malfeitores. [Capítulo 2 verso 193]

*tradução livre

Sikhismo

Do Guru Granth Sahib

Quando todos os esforços para restaurar a paz são inúteis e as palavras em vão, o raio do aço é legal. É correto desembainhar a espada. [Guru Goblnd Singh - 10º guru]

Ninguém é meu inimigo. Ninguém é estrangeiro, com todos estou em paz. O Deus que abrigamos nos torna incapaz de ódio e preconceito. [Fundador Guru Nanak]

*tradução livre

Cristianismo

Da Bíblia cristã

Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. (Mateus 5:9)

Não penses que vim para trazer paz à Terra; não vim para trazer paz, sim espada. (Mateus 10:34)

*tradução livre

Texto e imagens reproduzidos do site: bbc com/portuguese/internacional

quarta-feira, 1 de março de 2023

Uma carta sobre a tolerância

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 1 de março de 2023

Uma carta sobre a tolerância

O Novo Ateísmo baseia o seu proselitismo na superioridade moral do método científico sobre a fé. A questão não é a utilidade da ciência e da tecnologia, mas afirmar que esta é moralmente superior. Ricardo Dias de Sousa para o Observador:

Uma das poucas coisas em que todos aqueles que se consideram liberais estão de acordo é na questão da tolerância. Esta questão começou por ser tratada a respeito da tolerância religiosa. Para os liberais, a primeira obra doutrinária sobre o assunto é a famosa Carta de John Locke. Mas a tolerância de Locke tinha limites e esses limites eram os da Reforma. Os católicos e os ateus estavam excluídos desta concórdia entre protestantes. Para Locke ambos – católicos e ateus – eram criaturas imorais pelas quais não tinha qualquer respeito e, sem respeito, não há tolerância.

A tolerância religiosa parece algo totalmente assumido pelas sociedades ocidentais. Só que, num mundo cada vez mais pós-cristão, são essencialmente os cristãos as vítimas actuais. Podemos culpar o anticlericalismo do século XIX, ou o ateísmo militante dos comunistas a partir da Revolução Russa pelas suas políticas abertamente intolerantes e até persecutórias. Mas essa será sempre uma explicação insuficiente. O número de crentes que frequentavam as igrejas já se vinha a reduzir há algumas décadas na Rússia pré-revolucionária. Na Europa Ocidental a situação não era muito diferente. Curiosamente começou pelos países protestantes, e só mais tarde chegou aos países católicos, que sofreram muito mais as agruras do anticlericalismo.

Um motivo muito mais credível para o abandono da fé foi o aumento da prosperidade. Uma das consequências desse aumento foi a correspondente redução da incerteza percebida pelos indivíduos, que passaram a dispor de mais meios para a enfrentar. No Ocidente, o futuro tornou-se, em grande medida, muito mais previsível para a população e esta julga-se menos necessitada de deuses sobrenaturais a quem pedir protecção ou favor. Ao abandonar o Cristianismo, a sociedade vai, naturalmente, abandonando as coisas que este considera sagradas, para as substituir por aquelas que o novo credo considere como tal. Se esse novo credo se fundar a partir de mitos anticristãos, é natural que a indiferença se vá transformando em hostilidade à medida que a população vá assimilando e incorporando esses mitos no seu sistema de crenças.

Não se pode dissociar o aumento da prosperidade do desenvolvimento da tecnologia propiciado pelos avanços científicos, principalmente em disciplinas como a Física, a Química e a Biologia (incluída nesta a Medicina). Outra coisa da qual não se pode dissociar esse aumento de prosperidade é do ambiente mais propenso à livre-iniciativa e ao desenvolvimento dos processos de mercado que orientam essas aplicações tecnológicas para a satisfação de um número crescente de fins específicos, para um maior número de indivíduos. Mas, estranhamente, há quem o faça.

Estas duas revoluções – a comercial e a científica – começaram muito antes de os milagres da tecnologia as tornaram evidentes. Começaram, entre mosteiros e feiras, na neblina dos tempos medievais. A partir do Iluminismo e, com maior ímpeto, do Progressismo de meados do século XIX, um novo mito fundacional da nossa civilização começou a surgir. Um onde a Idade Moderna começa quando a Ciência se origina em oposição à Igreja e o Comércio passa a brotar da bondade dos governantes. O comércio terá que ficar para outra altura, mas a chamada Revolução Científica de inícios do século XVII, cuja fundação é mitologicamente atribuída a Galileu, tem especial relevância. Sobre isto escrevi também noutra ocasião. No mito, Galileu representa o triunfo da explicação matemática dos fenómenos científicos. Esta ideia não começou com ele, mas Galileu representa, talvez, o ponto de não-retorno.

No século XVI, a Matemática ainda era uma ciência inferior no panteão do conhecimento. “Ciência” era sinónimo de “verdade” e, por isso, a Teologia culminava o panteão. Porque era a mais verdadeira das ciências, aquela a que todas as outras disciplinas serviam. As conclusões teológicas eram o cume do conhecimento científico, porque incorporavam conhecimento de todas as áreas do saber. Mas o estatuto da Matemática já vinha em crescendo, principalmente da mão dos jesuítas. Ainda assim, a descoberta de novos corpos celestes por Galileu, um simples matemático, foi vista com preocupação e inveja por muitos cientistas da época, especialmente a partir do momento em que os louvores se transformaram em favores de príncipes e prelados.

As explicações de Galileu (e dos cientistas que se lhe seguiram – Kepler, Newton, Huygens, etc.) eram de uma verdade inferior àquela que a escolástica oferecia até então. Por inferior entenda-se uma explicação meramente descritiva que não inclui o porquê dos fenómenos, quanto mais o seu quê. Por isso a Matemática estava abaixo, não só da Teologia, mas também da Filosofia (leia-se Filosofia Natural ou Física) na hierarquia das ciências. A Igreja não teve nenhum problema em utilizar as Tabelas Prussianas para reformar o Calendário, quase três décadas antes do Sidereus Nuncius, apesar de esses cálculos se basearem no modelo de Copérnico. O modelo era útil, mas praticamente ninguém acreditava que fosse a realidade. Até 1616, não houve mais de uma dezena de astrólogos que acreditassem que o heliocentrismo era real. Esta opinião é reforçada por uma análise das primeiras duas cópias do Revolutionibus: o primeiro, onde está descrita a cosmologia heliocêntrica, está praticamente livre de marginália, ao contrário dos subsequentes, que estão profusamente anotados.

Mas com Galileu funda-se uma nova ciência. Uma que julga que, porque a Criação é racional, se pode reduzir a leis matemáticas. Uma ciência que retirava as suas conclusões directamente das observações, sem se preocupar com a causa, mas que produzia resultados tão apodicticamente certos como os da Teologia. Só a partir do século XIX é que a crença no Progresso e os encantos do Positivismo levaram a que cada vez mais intelectuais começassem a ponderar a possibilidade – metafísica – de que o método científico pudesse um dia resolver todas as questões que limitam a humanidade. Esta opinião foi bastante comum entre os círculos liberais protestantes britânicos e, em especial, norte americanos, onde se desenvolveu uma espécie de pragmatismo social baseado em métodos científicos aplicados às ciências sociais. Aquilo a que Hayek mais tarde chamou “Cientismo”.

De acreditar que a verdade científica era suficiente para a humanidade, a acreditar que a verdade científica é toda a Verdade há um pequeno passo, e foi esse pequeno passo que criou o Ateísmo militante. Os ateus militantes reformularam a propaganda anticatólica dos protestantes (entre a qual, o mito do enfrentamento da Igreja Católica contra a Ciência) e criaram uma propaganda anticristã e, mais genericamente, antiteísta com essas as teses protestantes. Esta propaganda ignora o motivo que levou Galileu, Newton e tantos notáveis cientistas a dedicar-se à ciência antes do século XIX. Galileu era um bom cristão, ou isso diziam até os seus inimigos. Para Newton, os seus Principia eram prova da existência de Deus. A ciência fazia-se ad maiorem Dei gloriam.

Paradoxalmente, o momento em que a Ciência começa a substituir o Cristianismo como Verdade é também aquele em que novos conhecimentos científicos começam a pôr em causa os anteriores. As novas descobertas na Genética, na Geologia, na Física, na Química, etc. punham em causa, não os dogmas supostamente imemoriais da religião, mas anteriores teorias perfeitamente estabelecidas e consensualmente aceites pela comunidade científica. Os epistemólogos começaram a chamar a atenção para esse facto: que qualquer explicação científica é contingente e, quando muito, uma melhor aproximação à verdade, mas não a verdade em si. Mas na sociedade, a ideia de que a Ciência é sinónimo de Verdade já se tinha expandido ao ponto de ser senão explícita, pelo menos tacitamente aceite.

É neste contexto que aparece o Novo Ateísmo, que baseia o seu proselitismo na superioridade moral do método científico sobre a fé. Quer dizer, a questão não é a utilidade da ciência e da tecnologia. A questão é afirmar que esta é moralmente superior. Para poder fazer tal afirmação os novos ateístas precisam de estabelecer, pelo menos três coisas: a) que as religiões em geral (e o Cristianismo em particular) são inerentemente más, b) que Deus não existe, só a ciência é verdadeira, e c) que as pessoas que vivem plenamente o ateísmo são melhores pessoas. Tudo coisas mais fáceis de dizer que de demonstrar.

Nunca está demais relembrar que a maior tragédia humanitária do século XX, as matanças perpetradas por regimes comunistas, foram-no por pessoas que a) implementaram oficialmente o ateísmo b) acreditaram que o seu modelo de sociedade era científico, e c) foram, em muitos casos, o objecto de um culto, como se de santos ou semi-divindades se tratassem. Mas o Novo Ateísmo passa uma esponja por cima disto com a desculpa de que “desta vez vai ser diferente”.

Porque, e isto é uma justificação comum, o método científico tem mecanismos de autocorrecção de que a religião não dispõe. Só um grande desconhecimento sobre a evolução da doutrina cristã pode fazer alguém assumir que esta representou um monólito de ideias eternas e sem qualquer desvio doutrinário desde que uma dúzia de pescadores desataram a proclamar que um tal Jesus tinha ressuscitado dos mortos. A mesma falta de critério necessária para julgar que a Ciência se produz através da acumulação do conhecimento e que não existem ideias científicas, outrora respeitáveis, entretanto atiradas para o caixote do lixo das pseudociências. Os mecanismos de correcção da Ciência não são diferentes dos de qualquer outra actividade humana, incluída a religião, e prendem-se em grande parte com a existência (ou não) de incentivos para tal e a inexistência de obstáculos que transpor. E a cristalização da Ciência como religião levou a que, ultimamente, em muitos casos esses obstáculos sejam formidáveis.

É a mesma ingenuidade com que imaginam ser mais racionais ou imunes à superstição que afectava os antigos. Quando as pessoas acreditavam em bruxarias, conjuros ou milagres, acreditavam que estas coisas eram parte do mundo natural. A palavra “sobrenatural” foi uma forma meio atabalhoada de distinguir as maravilhas de Deus da magia dos homens. A única palavra para descrever algo fora da natureza era contra natura, e isso, a obra de Deus não podia ser. De aí surge a palavra supra natura, acima da natureza, utilizada pelos escolásticos para descrever os milagres divinos. Mas tanto a magia dos homens como os milagres divinos eram não só naturais como racionais. Só a ignorância faz os modernos julgar que antes as pessoas acreditavam no irracional. A crença em milagres era a prova empírica da existência de Deus. Num tempo em que as pessoas acreditavam na existência de magia como algo óbvio, evidente, natural e racional é natural que, como hoje, necessitassem de provas para tal.

Muitos insistirão que a crendice necessária para reconhecer os milagres é maior que a que hoje se necessita para os rejeitar. Isso porque se julgam mais sábios que um monge escolástico do século XII, quando simplesmente puderam ver coisas que ele não pôde sequer imaginar. A Igreja sempre desconfiou dos milagres. Quando se reportava um, a Igreja mandava uma comissão investigadora para ter a certeza de que tal podia ser afirmado. Não punha em causa a existência de milagres, mas desacreditou muitos. Houve quem, na Igreja, tenha sido mais céptico com os milagres que muitos cientistas em relação à solidez do seu método. Não existe nenhum critério de demarcação que separe a produção científica da produção de outro tipo de conhecimento (incluído o pseudocientífico), mas os novos crentes querem acreditar que sim.

No passado, muitos oportunistas utilizaram milagres para proveito próprio ou como forma demagógica de agir sobre as multidões. Mas, é assim tão diferente na nova religião da Ciência? Viu-se nesta Pandemia quando se atiraram pela janela décadas de boas práticas e se decidiu administrar um fármaco experimental a milhões de pessoas saudáveis, obrigar as pessoas a levar panos na cara cuja eficácia nunca pode ser comprovada, fechar em casa milhões de indivíduos, impedir crianças de se socializarem, cancelar ou atrasar tratamentos indispensáveis e diagnósticos precoces que salvariam vidas. Tudo no altar de uma Ciência que se converteu em Deus para a maioria das pessoas. Só assim se explica que tenham acatado tamanhos atropelos à sua liberdade e, o que é mais importante, à dos outros. E para aqueles hereges que diziam que essas medidas eram incorrectas do ponto de vista científico ou ético, logo apareceram aqueles demagogos que os tildaram de negacionistas ou chalupas. À medida que a ciência (com minúscula) reforça as conclusões dos chalupas, os sumos-sacerdotes calam. Pedirão perdão dentro de 400 anos?

Quem julga que é a existência de religiões a causa de tantas tragédias no mundo, deveria olhar para o que vivemos nos últimos dois anos. Perceber que, como diria Chesterton, quando as pessoas deixam de acreditar em Deus passam a poder acreditar em qualquer coisa. O Ateísmo militante não vai alterar isso, por muita fé que nele se deposite. Os ateus deveriam recordar que a sua crença é outra religião e que a primeira tolerância é a tolerância religiosa. Sem respeito, nunca poderão ser verdadeiramente tolerantes.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com