Publicado originalmente no site JLPolítica
Política e religião: é necessário separar uma da outra?
Por Tanuza Oliveira
Mistura nem sempre é fácil de ser administrada: “A política
tem como princípio o diálogo, o debate; e a religião atua numa outra direção”,
pondera o cientista social Marcelo Ennes
Dizem que política, religião e futebol não se discute.
Juntar dois desses três temas "tabus", então, nem pensar. Mas, diante
de tudo que vem acontecendo no cenário político-religioso do país, o JLPolítica
decidiu não seguir essa máxima e trazer, sim, esse debate à tona. Afinal,
apesar de não parecer, uma tem muito a ver com a outra.
Há milhares de anos, por exemplo, quando Pôncio Pilatos
"lavou as mãos" e deixou que Jesus Cristo fosse crucificado, a
ligação entre religião e política já existia. Quando Jesus entrou no templo e
pediu que dessem "a Cézar o que era de Cézar e a Deus o que era de Deus,
também.
De lá para cá, pode-se dizer que essa relação só se
estreitou - embora haja a “lenda urbana” do Estado Laico. Prova disso é que, em
2016, nas últimas eleições, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral - TSE
-, houve aumento no número de religiosos que pleiteavam um mandato.
Dados do TSE mostram aumento de 25% de pastores nas eleições
de 2016
MAIS CANDIDATOS
Foram 25% a mais no número de candidatos que se
identificavam como pastores, se comparado ao último pleito municipal, em 2012.
Os dados mostraram que, entre candidatos a prefeito e a vereador, 2.579 dos
concorrentes utilizaram o título “pastor” no nome da campanha.
Ainda de acordo com as informações do TSE, foram 557 as
candidatas que se identificam como “pastora” e 15 que usam variações com
diminutivo ou aumentativo - “pastorzinho” ou “pastorzão". Houve também
aqueles que usaram o título como uma referência, como por exemplo, “Raquel do
pastor João” - esses somaram 39.
Houve, ainda, 2.186 candidatos que registraram seus nomes de
campanha como “irmão” e 841 que usaram “irmã” na apresentação. Entre os
católicos, foram 150 candidatos que se apresentam como “padre” e 44 políticos
que utilizam algum padre como referência no nome da urna.
A presença religiosa é ampla e não é restrita a cristãos.
Além dos seis candidatos “freis” e 62 “bispos” – que podem ser católicos ou
evangélicos neopentecostais –, houve 63 “pais” e 37 “mães” concorrendo nas
eleições daquele ano, indicativos de ligação com religiões afro-brasileiras.
Marcelo Ennes não vê como possível essa interação (foto
arquivo pessoal)
POLÍTICA X RELIGIÃO
Para o mestre em Ciências Sociais e Sociologia Marcelo
Ennes, professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS –, de fato essa
relação não é nova. “Tivemos um longo período da história em que Estado e
Igreja eram a mesma coisa. Onde a religião do rei ou da rainha deveria ser a de
todos os súditos. Quem muda isso, simbolicamente, é a Revolução Francesa, e a
instalação da República”, explica Marcelo.
De acordo com ele, é a República, regime sob o qual o Brasil
é gerido atualmente, que separa o poder da Igreja do poder do Estado. “Esse é
um dos princípios dela, porque a religião se dá numa esfera mais privada.
Portanto, não é algo que o Estado possa impor ou estabelecer. Dentro do modelo
republicano, há a coisa pública, que é a dimensão da vida política, e a coisa
privada, dimensão na qual o Estado não interfere”, esclarece.
Até a proclamação da República – em 15 de novembro de 1889
–, portanto, não havia essa separação. O Brasil não era laico. E, embora o seja
hoje, ao menos na teoria, o sociólogo acredita que essa laicidade está em risco
em virtude desse movimento religioso-político que cresce cada vez mais.
ESTADO LAICO?
“Acredito que estão colocando o Estado Laico sob ataque,
porque esses religiosos organizados por meio de suas igrejas estão agindo de
maneira a interferir no papel do Estado no sentido de sua atuação no espaço
público. E fazem isso, por exemplo, quando tentam criar leis ou estabelecer
normas”, justifica Marcelo Ennes.
Sejam essas normas do ponto de vista geral, ou específicas,
como na educação, na cultura ou numa manifestação artística, preocupam. “Muitas
vezes, essa manifestação é vista como pecaminosa. E a Igreja tem o direito de
criticar, mas essa não pode se tornar uma ação do Estado, que tem que garantir
a pluralidade, inclusive das manifestações contrárias às religiões. Mas é isso
que vem acontecendo”, afirma.
Para Ennes, a existência de um Estado Laico protege aqueles
que não são da religião predominante. E a quem interessa destruí-lo? “A quem
quer impor sua crença de qualquer maneira”, diz. Um dos aspectos que levam a
essa espécie de simbiose entre política e religião e colocam em xeque o Estado
Laico é que tanto religião quanto política têm em seu núcleo o mesmo composto:
o poder.
PODER E INTERESSE
É o poder o princípio de ambas. Mas, na opinião de Ennes, há
de haver um limite entre elas. “As Igrejas podem existir, os líderes podem ter
sua liberdade de expressão, mas isso não pode se tornar algo que seja
específico da esfera do Estado, como vem acontecendo com as chamadas bancadas.
Elas acabam tratando de interesses corporativos, específicos e, muitas vezes,
não republicanos”, alerta.
Segundo ele, no caso das Igrejas, os interesses são o de
aumentar seu poder de influência, seu poder econômico, e seu poder de condução
da sociedade. E aqui é importante frisar: há distinção entre Igreja e religião.
“A religião é algo importante, que deve ser respeitado,
considerado positivamente. Ninguém pode querer desmerecer qualquer tipo de
religião. Já as igrejas são instituições e, como tal, elas se organizam com
base em estruturas de poder e têm como objetivo agir para normatizar a
sociedade”, define o sociólogo.
Dom João José Costa defende orientação, mas não candidatura
CATÓLICOS
Dom João José Costa, arcebispo Metropolitano de Aracaju,
segue o ensinamento do Papa Paulo VI, que via a política como uma das melhores
formas de fazer o bem, a caridade. Por isso, defende que cada vez mais cristãos
participem do processo eleitoral, mas não de forma direta.
“Não sou a favor de que clérigos, sacerdotes, bispos ou
diáconos se envolvam na política partidária, porque já temos nossa missão”,
afirma Dom João. Segundo ele, a presença de cristão nesse meio é necessária em
virtude dos rumos que a política vem tomando. “Precisamos ter cristãos
envolvidos nela, porque a realidade nos deixa preocupados. Muitos políticos não
têm ética”, justifica.
Para o arcebispo, boa parte dos políticos, em vez de estarem
a serviço do povo, querem se aproveitar do serviço público. “Para mudar este
quadro, precisamos de pessoas que não sejam cristãs só no nome, e sim na
vivência. Pessoas que deem testemunho, porque a realidade é mesmo escandalosa,
de muita corrupção”, reforça.
SEM RESTRIÇÃO
O arcebispo Dom João José Costa garante que a Igreja
Católica não faz restrições à participação de religiosos na política que a
opinião dele é pessoal, mas admite que para se candidatar os padres precisam se
afastar das atividades ministeriais – ou seja, do Ministério Sacerdotal.
“Nós podemos fazer política sem estar em mandatos. Aliás, a
simples decisão de querer ou não se envolver com política por si só já é um ato
político. O ser humano é político em sua natureza”, opina.
Para ele, a junção entre política e religião pode permitir o
engajamento de pessoas que de fato se preocupem com políticas públicas e
sociais que amenizem o sofrimento, a dor e a exclusão de tantas pessoas no
Brasil e no mundo.
POLÍTICA INDIRETA
Por isso, o trabalho de orientação também é fundamental. “A
gente pede que as pessoas tenham responsabilidade diante das escolhas que vão
fazer, porque você pode ser uma pessoa ética, mas se escolhe um político corrupto,
está sendo conivente", ressalta.
E continua: "na política não tem como ser neutro, ou
você contribuiu ou não contribui. Para contribuir, tem que escolher pessoas
boas", sugere Dom João. Questionado sobre a diferença entre os números de
pastores e padres na política, ele diz que a denominação pouco importa.
"Não me preocupo se é evangélico ou católico, mas sim
cristão. Que ponha em prática o evangelho e não aja tirando direitos
adquiridos, ou a própria vida, por exemplo. O essencial é não legislar como se
Deus não existisse", analisa.
Moritos Matos: política é lugar de fazer o bem (foto Irlan
Paccioli)
DA IGREJA PARA A URNA
Moritos Matos, deputado estadual pelo Rede Sustentabilidade,
é cristão, católico e participa da encenação da Paixão de Cristo há muitos anos
como o próprio Cristo. Na vida real, divide seu tempo entre as ações do mandato
e as da igreja.
Para Moritos, assim como na vida dele, política e religião
sempre andaram juntas. E, na visão do parlamentar, isso é bom. “Não tem como
defender certos valores, como dignidade e caridade, propagados pelo evangelho,
se você mão se envolver com a política. Porque quem formula as leis é o poder
público”, justifica o deputado
Por isso, segundo ele, é importante que a igreja oriente os
leigos em como participar da vida pública. Foi o que aconteceu com ele. “Tenho
envolvimento na comunidade 18 do Forte, onde comecei a participar de movimentos
da igreja, em especial da Legião de Maria”, revela Matos.
ATUAÇÃO
Mas também participou das Pastorais da Criança e do Menor e
foi representante da Arquidiocese no Conselho do Direito da Criança e do
Adolescente. “Tudo isso foi me mostrando o sofrimento das pessoas, das
necessidades delas, e num determinado momento, o padre resolveu reunir algumas
lideranças e, para a minha surpresa, meu nome foi escolhido para ser
candidato”, lembra.
A sugestão não foi aceita. “Levei mais de dois anos para
decidir e perceber que essa era uma nova missão para minha vida”, diz Matos.
Ele foi eleito vereador e, depois, ficou como suplente de deputado, assumindo o
mandato dois anos depois. “Hoje, estou nessa nova missão”, ressalta.
“Diante disso, eu acredito que a participação de religiosos
na política seja positiva, porque é a defesa dos preceitos de forma ativa.
Temos que ser cristãos dentro e fora da igreja, e a política é a melhor forma
de fazer caridade”, acredita. Apesar disso, Matos não esconde sua decepção.
“São muitas denúncias, envolvimento com corrupção, coisas
erradas, e isso gera descrédito. O
momento é ruim, mas temos que ter esperança, pois há pessoas que buscam
melhorar a política. E que pensam no povo. Há políticos que servem à população
em vez de se servir da política”, opina.
ORIENTAÇÃO AOS FIEIS
O Pastor Marcos Andrade, da Igreja Presbiteriana Renovada de
Aracaju, garante que política e religião são duas coisas totalmente distintas e
que não devem se misturar. “Na democracia, o Estado deve ser laico”, justifica
Marcos Andrade.
No entanto, admite que podem andar lado a lado quando ambas
as partes trabalham em busca dos mesmos valores. “Essa é a única forma positiva
de relação. Porque quando a política busca seus próprios interesses na
religião, ou vice e versa, isso se torna um grande perigo para toda a
sociedade”, analisa.
Ele também reconhece que a ligação entre elas sempre
existiu. “Desde quando o povo de Deus teve homens nomeados para liderar o povo
e pensar em suas necessidades humanas, sociais e outras”, diz. Com relação ao
número cada vez maior de evangélicos na política, ele acredita ser reflexo do
próprio movimento vivido pelas igrejas.
Pastor Marcos Andrade prefere política e religião bem
separadas (foto arquivo pessoal)
EVANGÉLICOS NO PODER
“Alguns resultados de outras pesquisas podem explicar esse
fato como o crescimento do número de evangélicos, a participação das igrejas
evangélicas em trabalhos sociais nas comunidades, e por fim, a liberdade que o
protestantismo oferece às igrejas em relação à sua administração”, avalia.
“Em muitas igrejas, a decisão de um pastor candidatar-se
pode ser exclusivamente dele, enquanto que para um padre deve ser submetido à
todo sistema de organização eclesiástica”, completa, deixando claro que não é
filiado a nenhum partido e que não pretende ser candidato.
O trabalho que o pastor defende é o da orientação os fiéis,
que, na opinião dele, deve sim passar pelas igrejas. “Isso não inclui indicação
de candidatos ou partidos, mas como portadores da verdade, não podemos
negligenciar debates e reflexões sobre corrupção e justiça, por exemplo”,
argumenta.
Segundo o pastor Marcos Andrade, a igreja não se tornou um
grupo de ativistas políticos, pois seria um crime intervir no direito privado
do cidadão escolher seus representantes, mas precisa acompanhar todo o processo
político. “E, como organismo social, sempre questionar sobre as decisões e
influências no contexto no qual a igreja está inserida”, ressalta.
UM PASTOR NA ALESE
O pastor Antônio dos Santos está em seu terceiro mandato de
deputado estadual, já teve um de vereador por Aracaju e está na igreja há 48
dos 62 anos de vida. Ou seja: é difícil separar o pastor do político e
vice-versa.
Sua atuação é reconhecida em todo o Estado e seu discurso é
pautado nos valores cristãos, de modo a dificultar ainda mais essa distinção
entre um e outro. “A religião veio primeiro e por vontade minha, a política
veio depois e aconteceu meio sem querer”, lembra Pastor Antônio.
Ele sempre teve uma atuação muito voltada para o lado
social: cuidou de jovens, de idosos, de pobres. E, aí, começou a perceber uma
certa distância entre a política verdadeira, que, na opinião dele, deve existir
para atender principalmente às demandas dos mais pobres.
MUDANDO REALIDADES
“Fiz algumas viagens para fora do país e constatei que a
realidade brasileira, para alcançar um estágio considerado bom, precisava
passar por mudanças. Fui convidado a ser candidato e, num primeiro momento,
resisti, mas depois me dispus, justamente por entender que a política
possibilita essa ação”, afirma Pastor Antônio.
Desde então, vê na junção das duas atividades a forma para
mudar diversas realidades. “Está dando certo porque, ao contrário de muitas
pessoas, não permiti que a política se sobrepusesse à religião. Eu disse a mim
mesmo que a política não poderia me afastar de Deus”, relembra.
E não afastou. “Fui eleito, continuei como pastor, como
pregador, fazendo o trabalho que sempre fiz.
A política é importante, mas não é maior nem melhor que
Deus, então eu compatibilizo, faço dela um instrumento de conquistas do bem
para a comunidade”, comenta.
Pastor Antônio tem política como ferramenta para conquistas
sociais (foto arquivo pessoal)
APRENDENDO COM AMBAS
O religioso diz que entre a política e a religião também há
um certo intercâmbio. Da religião para a política, ele afirma que leva os
valores da família, da ética, da moral. “Na defesa desses valores, me posiciono
contra tudo que vier a agredi-los, como a liberação do aborto, por exemplo”,
admite. E continua: “há uma série de bandeiras ou valores que trouxe para o meu
mandato político, e isso tem sido muito valorizado”, comemora.
Tanto que o Pastor Antônio se tornou presidente da
Associação dos Parlamentares Evangélicos do Brasil. Por conta disso, foi
convidado para um café da manhã com o então presidente Barack Obama. “Dois
meses depois, fui convidado para a Cúpula Mundial de Valores, em Washington.
Tudo isso agregou à minha vida política”, considera.
Já da política para a religião, ele diz que levou uma coisa
fundamental: a importância da legislação. “Vivemos sob a égide de todas as
leis. E se no ambiente da legislação, não houver alguém que tenha conhecimento
desses valores e habilidade para colocá-los diante das pessoas, elas podem ser
formuladas de modo prejudicial”, avalia.
Ele garante que há uma relação harmoniosa com os demais
deputados da Assembleia Legislativa – seja os da situação ou os da oposição.
“Independentemente de que lado estejam, acabam votando minhas matérias”,
assegura.
RELAÇÃO PERIGOSA
Ao falar na legalização do aborto, o Pastor Antônio toca num
dos pontos mais polêmicos e mais criticados pelo sociólogo Marcelo Ennes, já
que infere exatamente no que ele chama de espaço privado. “O papel do Estado é
garantir a liberdade religiosa e não interferir na vida das pessoas a esse
ponto. A religião, através da política, não pode definir o que é certo ou
errado, legal ou ilegal”, critica Marcelo.
O delegado e pré-candidato a deputado federal pelo PSOL,
Mário Leony, concorda. “A bancada evangélica levanta pautas extremamente
conservadoras, que precisam ser questionadas. Porque o religiosismo alienante é
um risco. Mas é importante ressaltar que não são todos os evangélicos que são
lgbtfóbicos, por exemplo”, ressalta Mário.
CRISTÃO E DIÁLOGO
O próprio delegado é cristão do Centro Espiritualista,
frequenta o Instituto Salto Quântico, onde o evangelho é o de um cristo
libertário, que sempre esteve ao lado das mulheres, das prostitutas, dos
pobres.
“É lamentável quando usam o nome de Jesus para demonizar
determinados segmentos da sociedade. A gente não quer se contrapor a Jesus. A
gente quer combater a hipocrisia, o religiosismo que oprime mulheres e lbts”,
argumenta.
E é justamente isso que, para Marcelo Ennes, inviabiliza a
relação entre política e religião. “Se você discordar dos dogmas, já não é
plausível que haja entendimento. A política tem como princípio o diálogo, o
debate, e a religião, mesmo não sendo necessariamente contrária a ele, atua
numa outra direção”, rebate.
Mário Leony: “bancada evangélica levanta pautas
extremamente
conservadoras"(foto arquivo pessoal)
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