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domingo, 26 de junho de 2022

'O padroeiro dos canalhas', por Augusto Nunes

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 24 de junho de 2022

O padroeiro dos canalhas

Lula confessa ter oferecido a sequestradores companheiros o socorro que negou a presos políticos cubanos. Augusto Nunes para a revista Oeste:

O avô de um amigo constrangia a família e assombrava visitantes ao cruzar a sala em silêncio, com passadas rápidas e inteiramente nu. Uma tia do meu pai, feliz com a festa do 100º aniversário, fez a dezenas de convidados já de saída as mesmas perguntas e a mesma oferta que repetira durante a vida inteira a quem aparecia na fazenda Itagaçaba: “Comeu bem? Bebeu bem? Quer pouso?”. Ao lado da aniversariante, a filha Bibi sussurrava a advertência: “Mãe, para com isso. Se alguém aceitar dormir aqui, não tem como acomodar”. Tia Leonor ouvia com atenção o conselho da única figura cujo nome não esquecera, mas retomava o mantra assim que alguém se despedia: “Comeu bem? Bebeu bem? Quer pouso?”. Outra parente octogenária caminhara em sentido oposto: se a filha cujo nome já sumira da memória continuasse puxando conversa na hora do almoço, ela perguntaria à caçula quando é que aquela estranha iria embora para que dividissem a mesa em sossego. Ela só reconhecia a filha caçula e, sabe Deus por quê, Silvio Santos.

Como a dilatação da expectativa de vida é mais veloz que os avanços da geriatria, incontáveis famílias hoje têm de lidar com casos assim. É preciso tratá-los com a amorosa paciência. Os avós da minha geração morriam cedo. Hoje, milhões de crianças crescem com bisavós por perto — e aprendem que podem fazer o que quiserem. Mas só no Brasil existe algo equivalente num partido político: pelo que tem dito e feito, Lula é a bisa do PT. Decide se o partido vai lançar candidato a governador ou contentar-se com a indicação do vice, muda o programa do partido sem consultar ninguém, envereda por assuntos que qualquer candidato com um pingo de juízo evita. Faz o que lhe dá na telha, e agora deu de fazer revelações que um político com um cisco de juízo guardaria em segredo. A última do patriarca destrambelhado consumou-se neste 17 de junho: resolveu gabar-se de ter libertado os arquitetos e os executores do sequestro do empresário Abílio Diniz, ocorrido durante as eleições presidenciais de 1989.

Lula contou que, em 1998, botou na cabeça que deveria devolver à liberdade os autores do crime. Presos havia dez anos, tinham acabado de entrar em greve de fome. “Esses jovens, tinha argentinos, tinha gente da América Latina, iam entrar em greve seca, que é ficar sem comer e beber”, jurou num palavrório em Maceió. “A morte seria certa. Aí, então, eu fui procurar o ministro da Justiça, chamado Renan Calheiros.” Renan aconselhou-o a tratar diretamente com o presidente da República. Lula disse ter procurado FHC para dar-lhe um conselho: “Fernando, se você soltar os presos, pode entrar para a história como um democrata que evitou que dez jovens que cometeram um erro morressem na cadeia”. Nessa versão, Fernando Henrique concordou em libertar os presos se fosse interrompida a greve de fome. Lula: “Fui na cadeia no dia 31 de dezembro conversar com os meninos e falar: ‘Olha, vocês vão ter de dar a palavra para mim, vocês vão ter de garantir pra mim que vão acabar com a greve de fome agora, e vocês serão soltos’. Eles respeitaram a proposta, pararam a greve de fome e foram soltos. E eu não sei onde eles estão agora”.

Nenhum deles foi solto pelo governo brasileiro. Foram extraditados no ano seguinte, para cumprirem em seus países o que restava da pena de prisão. De todo modo, isso é o que menos importa: Lula sempre mentiu como quem respira. Muito mais chocante foi a obscena exposição do desprezo do ex-presidente pela clemência e pelos direitos humanos. Só um cafajeste de fina estampa pode exigir que companheiros terroristas fossem contemplados com o socorro que, 12 anos depois, negaria a dezenas de cubanos que discordaram publicamente da ditadura comunista. Em fevereiro de 2010, numa carta endereçada ao oportunista homiziado no Palácio do Planalto, 42 dissidentes encarcerados na ilha-presídio reiteraram o apelo ao Pai dos Pobres (e Mãe dos Ricos): “Ao sabermos de sua próxima visita a Cuba, solicitamos que, durante as conversações que manterá com representantes do primeiro escalão do governo, fale de nossa situação e advogue a favor de nossa libertação”.

Lula pousou em Havana um dia depois da morte do dissidente Orlando Zapata Tamayo, que não resistira a 85 dias em greve de fome. Nem por isso hesitou em atirar ao lixo o argumento que apresentara a FHC para devolver à liberdade os autores de um dos mais abjetos sequestros registrados no Brasil. “Greve de fome não pode ser utilizada como um pretexto de direitos humanos para libertar pessoas”, recitou o chefão da esquerda de botequim. “Imagine se todos os presos em São Paulo entrassem em greve de fome e pedissem libertação.”

Afrontados pela infame hostilidade do presidente brasileiro, os cubanos acuados endereçaram ao presidente da Costa Rica o mesmo pedido de ajuda que Lula rechaçou. Fiel à biografia admirável, Oscar Arias nem esperara pela chegada do apelo, que Lula confessara não ter lido “por falta de tempo”, para estender a mão às vítimas dos carrascos. Já publicara no jornal espanhol El País um artigo que induzia a uma pedagógica comparação entre dois chefes de governo:

ARIAS: Uma greve de fome de 85 dias não foi suficiente para convencer o governo cubano de que era necessário preservar a vida de uma pessoa, acima de qualquer diferença ideológica. Não foi suficiente para induzir à compaixão um regime que se vangloria da solidariedade que, na prática, só aplica a seus simpatizantes. Nada podemos fazer agora para salvar Orlando Zapata, mas podemos erguer a voz em nome de Guillermo Fariñas Hernández, que há 17 dias está em greve de fome em Santa Clara, reivindicando a libertação de outros presos políticos, especialmente aqueles em precário estado de saúde.

LULA: Temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubano, de prender as pessoas em função da lei de Cuba, assim como quero que respeitem o Brasil.

ARIAS: Seria perigoso se um Estado de Direito se visse obrigado a libertar todos os presos que decidirem deixar de alimentar-se. Mas esses presos cubanos não são como os outros, nem há em Cuba um Estado de Direito. São presos políticos ou de consciência, que não cometeram nenhum delito além de opor-se a um regime.

LULA: Temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubanos.

ARIAS: Não existem presos políticos nas democracias. Em nenhum país verdadeiramente livre alguém vai para a prisão por pensar de modo diferente. Cuba pode fazer todos os esforços retóricos para vender a ideia de que é uma democracia especial. Cada preso político nega essa afirmação. Cada preso político é uma prova irrefutável de autoritarismo. Todos foram julgados por um sistema de independência questionável e sofreram punições excessivas sem terem causado danos a qualquer pessoa.

LULA: Cada país tem o direito de decidir o que é melhor para ele.

ARIAS: Sempre lutei para que Cuba faça a transição para a democracia. O governo de Raúl Castro tem outra oportunidade para mostrar que pode aprender a respeitar os direitos humanos, sobretudo os direitos dos opositores. Se o governo cubano libertasse os presos políticos, teria mais autoridade para reclamar respeito a seu sistema político e à sua forma de fazer as coisas.

LULA: Não vou dar palpites nos assuntos de outros países, principalmente um país amigo.

ARIAS: Estou consciente de que, ao fazer estas afirmações, eu me exponho a todo tipo de acusação. O regime cubano me acusará de imiscuir-me em assuntos internos, de violar sua soberania e, quase com certeza, de ser um lacaio do império. Sem dúvida, sou um lacaio do império: do império da razão, da compaixão e da liberdade. Não me calo quando os direitos humanos são desrespeitados. Não posso calar-me se a simples existência de um regime como o de Cuba é uma afronta à democracia. Não me calo quando seres humanos estão com a vida em jogo só por terem contestado uma causa ideológica que prescreveu há anos. Vivi o suficiente para saber que não há nada pior que ter medo de dizer a verdade.

Oscar Arias é um chefe de Estado. Lula é chefe de uma seita com cara de bando. Arias conhece a História e tenta moldar um futuro mais luminoso. Lula nunca leu um livro, não sabe o que aconteceu e só pensa na próxima eleição. Arias é justo e generoso. Lula é mesquinho e oportunista. Arias se guia por princípios e valores. Lula menospreza irrelevâncias como direitos humanos, liberdade ou democracia. O artigo do presidente da Costa Rica, um homem digno, honrou o Nobel da Paz que recebeu. A discurseira do presidente brasileiro, um falastrão sem compromisso com valores morais, tornou-o tão candidato ao prêmio quanto Nicolás Maduro. A colisão frontal entre o que Arias escreveu e o que Lula disse escancarou a distância abissal que separa o estadista de um político de esgoto.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

+ 2 comentários na postagem 

Anônimo disse...

Gostaria que Augusto Nunes tivesse esta mesma visão crítica em relação à Bolsonaro, de quem parece ter virado amigo de infância e no qual só enxerga virtudes.

Anônimo disse...

Concordo com o anônimo.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

'A bandidagem derrota os xerifes', por Augusto Nunes

Publicação compartilhada BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 12 de fevereiro de 2022 


A bandidagem derrota os xerifes 


O mais longo faroeste à brasileira garante que punir corruptos destrói a economia. Augusto Nunes para a Oeste: 


O faroeste à brasileira, uma das mais ousadas invenções registradas nos 13 anos em que o PT permaneceu no poder, nasceu do acasalamento de duas singularidades assombrosas. Primeira: nada do que se vê é fictício. As coisas se passam no mundo real, os fatos desfilam a um palmo do nariz da plateia. Em vez de roteiristas profissionais, os caprichos do destino, as trapaças da História e os defeitos de fabricação dos seres humanos é que determinam o que está acontecendo ou vai acontecer. Segunda singularidade: ao contrário do que ocorre nos velhos faroestes exibidos na tela, nessa abjeção concebida no País do Carnaval os bandidos é que perseguem mocinhos, xerifes ou juízes — e sempre acabam vencendo. Os espectadores honestos que esperem sentados um happy end. Só os fora da lei têm direito ao final feliz. 


O novo gênero foi parido pelo julgamento no Supremo Tribunal Federal que decidiu o desfecho de “O Estupro do Caseiro”. O primeiro faroeste à brasileira foi protagonizado por Antonio Palocci, ministro da Fazenda do governo Lula, e Francenildo Santos Costa, contratado em 2005 para vigiar um imóvel às margens do Lago Sul batizado de “República de Ribeirão Preto”. O elenco de coadjuvantes incluiu o ministro Gilmar Mendes, no papel de protetor de vilões em perigo, Jorge Mattoso, o presidente da Caixa Econômica Federal obrigado a interpretar um obediente bode expiatório, e o bando de assessores que se tornaram amigos de Palocci nos tempos em que foi prefeito de Ribeirão Preto. Um deles achou que seria uma boa ideia transformar a mansão alugada em hospedaria, esconderijo, sala de reuniões para negócios escusos e salão de festas animadas por garotas de programa. 


Em março de 2006, fisgado por uma CPI do Congresso instaurada para investigar bandalheiras envolvendo casas de bingo, o gerente da mansão confessou que Palocci era um assíduo frequentador do lugar. O ministro jurou que nunca dera as caras por lá. Francenildo confirmou que o figurão do governo Lula tanto era figurinha fácil que o resto da turma o chamava de “Chefe”. Decidido a garantir o triunfo da mentira, Palocci resolveu perseguir quem contara a verdade. Achou que viraria o jogo quando alguém lhe soprou que o caseiro estava enredado em “movimentações financeiras atípicas”. Imediatamente, convocou Jorge Mattoso e ordenou-lhe que estuprasse o sigilo da conta de Francenildo na Caixa Econômica Federal. Buscava o quilômetro zero do caminho da salvação. Encontrou a trilha que levava ao penhasco.

 

Nada havia de errado com Francenildo. O dinheiro cuja origem parecia suspeita fora depositado pelo pai biológico na conta do filho que nunca reconheceu. A vítima do estupro perdeu o posto de caseiro, demorou anos para conseguir trabalho e ainda espera a indenização estabelecida pela Justiça. No faroeste à brasileira, contar a verdade é pecado grave. Inserido no currículo, pode resultar no desemprego eterno. Mas o amadorismo do elenco em ação nesse tiroteio impediu que todos os culpados escapassem incólumes. Depois de estacionar no Supremo Tribunal Federal durante três anos, o processo foi julgado em agosto de 2009. O relator Gilmar Mendes culpou Mattoso pela execução do estupro encomendado por Palocci e, numa acrobacia espantosa, absolveu o réu que o encomendara. Apadrinhado pela maioria dos ministros, nasceu no Pretório Excelso o crime encomendado sem mandante. Graças a essa brasileirice cafajeste, um culpado recuperou o status de inocente. Mas continuou longe do Planalto: condenado pelo Brasil decente, o homem promovido por Lula a “maior ministro da Fazenda da história” regressara à planície em abril de 2006. 


Para desconsolo do país que presta, os participantes do faroeste inaugural melhoraram perigosamente o desempenho nos anos seguintes — e a eles se juntaram produtores, diretores e atores que não deixam soltos fios desencapados, capricham no script, corrigem pequenas imperfeições e foram dispensados ainda no berçário do sentimento da vergonha. O elenco ficou melhor por recrutar o que há de pior na Praça dos Três Poderes. O atrevimento insolente removeu os limites da imaginação. Como atestam os mais recentes episódios da série “Só os perversos condenam”, que revê a Operação Lava Jato pelo olhar da bandidagem, a realidade brasileira pode ser infinitamente mais assombrosa que a ficção produzida por mentes sem freios. Perseguir defensores da lei, por exemplo, hoje é muito pouco, quase o mesmo que nada. Castigar juízes, procuradores e policiais envolvidos na Lava Jato tornou-se tão rotineiro quanto duelos motorizados em filmes de ação. O ano eleitoral requer piruetas muito mais atrevidas. É hora de canonizar canalhas, louvar larápios, eleger abjeções, venerar vigaristas, estreitar relações com oportunistas convertidos. É hora de infernizar a vida de quem se atreveu a provar que a lei pode valer igualmente para todos, que há lugar na cadeia também para delinquentes estrelados, até para presidentes da República que asseguraram um capítulo de bom tamanho na História Nacional da Infâmia. 


Lula é o Marlon Brando do faroeste pelo avesso. Para escapar de perguntas sem resposta, não conversa com jornalistas independentes desde dezembro de 2005. Para escapar de confrontos verbais desmoralizantes, quer distância de debates eleitorais na TV. “Falta tempo para mostrar programas de governo”, mente. Fugitivo de plateias não domesticadas desde a abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007, quando foi chicoteado pela mítica vaia do Maracanã, quer fazer campanha sem sair de casa. “Quero evitar o risco de atentados”, mente de novo. Mentem em louvor do farsante sem remédio os devotos da seita que aboliu o pecado, juristas para os quais não existem crimes nem criminosos do lado de baixo do Equador, ministros do Supremo que prendem inocentes e soltam ladrões da classe executiva e chefões do PCC, candidatos a vice que aposentam a honradez por sonharem com a antecipação da visita da Indesejada das Gentes ao gabinete que cobiçam. E, entre tantos outros viventes com defeito de fabricação, mente por Lula a turma que faz bonito no faroeste à brasileira. 


Neste começo de 2022, em livros, páginas de jornais agonizantes ou na internet, sabujos patológicos tentam debitar na conta da Lava Jato o acidente ocorrido numa linha em construção do metrô de São Paulo, a taxa de desemprego, o preço da gasolina e todos os problemas da economia brasileira. A Lava Jato destruiu as grandes empreiteiras, recitam os discípulos do mestre Mariz. Se o dinheiro já foi roubado, de que adianta prender os gatunos? Se a propina já foi paga, por que engaiolar corruptores e corrompidos? Caso o Código Penal prescrevesse uma hora de cadeia para cada erupção de cinismo sórdido, nenhum integrante do bando que prospera com o faroeste à brasileira escaparia da prisão perpétua. 


Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com 

domingo, 26 de dezembro de 2021

A esperança venceu a vergonha


Publicado originalmente no BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 25 de dezembro de 2021 


A esperança venceu a vergonha 

 
O jantar que lembrou um saidão de Natal da Lava Jato avisa: Alckmin esqueceu o que Lula fez nos últimos 15 anos. Augusto Nunes para a revista Oeste: 

O jantar estrelado por Lula, com Geraldo Alckmin caprichando no papel de principal coadjuvante, foi uma espécie de encontro dos beneficiários do saídão de Natal da turma da Lava Jato, engrossado por representantes do Clube dos Bandidos de Estimação do Supremo Tribunal Federal e da Associação dos Culpados Condenados à Eterna Impunidade, além de veteranos do Mensalão e do Petrolão. E confirmou aos berros a teoria formulada pelo jornalista Ivan Lessa: a cada 15 anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos 15 anos anteriores. A troca de afagos retóricos entre os dois velhos desafetos, por exemplo, atestou que nenhum deles se recorda da pancadaria verbal que agitou a campanha presidencial de 2006. Num debate na Band, por exemplo, o tucano que deixara o governo de São Paulo para entrar na corrida rumo ao Planalto valeu-se do escândalo do Mensalão, devassado entre junho e outubro do ano anterior, para colar na testa de Lula o selo de corrupto. Candidato a um segundo mandato, o chefão do PT acusou o adversário de abortar CPIs em gestação para impedir o esclarecimento de bandalheiras regionais.
 

Os sorrisos e abraços registrados no restaurante em São Paulo avisam que os dois também esqueceram o que andaram fazendo e dizendo nos verões seguintes (e também nas primaveras, nos outonos e nos invernos). Alckmin colecionou temporadas no Palácio dos Bandeirantes alertando para o perigo: em São Paulo, o PT não lançava candidatos; lançava ameaças. Nenhum exagero. O mais importante Estado brasileiro correu o risco de ter no governo casos de polícia como José Dirceu, José Genoino e o próprio Lula, fora o resto. Os petistas replicavam com o mantra que comparava o inimigo a um picolé de chuchu, com as sucessivas exumações do “mensalão mineiro”, protagonizado por oficiais graduados do PSDB, e com tentativas de equiparar os feitos de um Paulo Preto aos assombros produzidos pelo alto comando do partido que virou bando. 


Na campanha de 2018, novamente em busca da Presidência, Alckmin demonstrou que suas memórias do PT continuavam frescas. “Os brasileiros não são tolos”, avisou num discurso. “Vejam a audácia dessa turma. Depois de ter quebrado o Brasil, Lula diz que quer voltar ao poder. Ou seja: quer voltar à cena do crime. Será que os petistas merecem uma nova oportunidade?”. Claro que não, enfatizou. “Lula será condenado nas urnas por ter sucateado a nossa saúde, pelo desgoverno, pela destruição da Petrobras, por jogar brasileiros contra brasileiros.” Essa catilinária, como todas as outras, perdeu o prazo de validade quando alguém teve a ideia surpreendente: que tal uma chapa encabeçada por Lula com Alckmin como candidato a vice? Foi essa parceria tão improvável quanto indecorosa que juntou quase 500 pessoas num jantar organizado por advogados que lutam pelo estancamento da sangria que inquietava Romero Jucá, sonham com a prisão de todos os brasileiros que aplaudiram o desempenho da Lava Jato e consideram a corrupção essencial para o crescimento da economia nacional. 


(Pausa para a visita de lembranças longínquas. Como no resto do mundo, na Taquaritinga em que vivi até o fim da adolescência ocorriam combinações estranhas, alianças bizarras, malabarismos eleitoreiros de alta periculosidade. Mas também para essas acrobacias havia limites, demarcados pelo sentimento da honra. Era a vergonha na cara que riscava a difusa fronteira que separa a crítica feroz da infâmia intragável. “Vejamos o exemplo elementar: um homem íntegro não pode admitir que o qualifiquem de ladrão”, ensinava o advogado Carlos Pastore, que inibia com uma advertência soberba quem cruzasse a linha inviolável: “Considere-se proibido de me saudar”. Se não reagissem com altivez à ultrapassagem dessa barreira, políticos gravemente insultados perdiam o respeito da própria família, começando pela mulher, dos amigos e dos eleitores.) 


Era o que aconteceria a Lula e Alckmin se tivessem promovido na velha Taquaritinga o jantar de domingo passado. Lula garantiu que sempre respeitou Alckmin. O ex-governador jurou que vê em Lula um democrata exemplar. Janja, a namorada do candidato a um terceiro mandato, confraternizou com Lu, candidata a vice-primeira-dama. E a ocupação das mesas evocava a definição do crime de formação de quadrilha ou bando resumida no artigo 288 do Código Penal: “Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Em que mais poderia estar pensando uma trinca formada por Omar Aziz, Renan Calheiros e Randolfe Rodrigues, sempre unidos na missão de transformar cadáveres em cabos eleitorais involuntários? Estaria preocupada com os destinos da nação a roda que reunia Gleisi Hoffmann, Aloizio Mercadante, Paulinho da Força e Andrés Sanchez, ex-presidente do Corinthians? 


Às vésperas de outro ano eleitoral, todos acordam e dormem buscando a melhor maneira de extrair das urnas de 2022 um cargo vistoso, um gabinete de bom tamanho e gordas verbas federais. Esses atrativos justificam a presença no restaurante de deputados, prefeitos e governadores de diferentes partidos. Estava lá até Arthur Virgílio Neto, que acabou de fracassar nas prévias promovidas pelo PSDB para a escolha do candidato ao Planalto. A exemplo de Alckmin, o ex-senador e ex-prefeito de Manaus está caindo fora do ninho cada vez mais inóspito. O que se desconhecia é a disposição amnésica de Virgílio. 


Organizadores do "jantar da democracia" 

 
Há 15 anos, ele prometia no Senado punir com “uma surra” o conjunto da obra de Lula. Repetiu a ameaça com tamanha insistência que o presidente baixou no Amazonas para dedicar-se pessoalmente a impedir a reeleição do inimigo. Afastado do Senado, Virgílio parecia um pote até aqui de mágoa antes de aparecer no jantar. O sorriso fácil avisou que a fila puxada por Alckmin vai crescendo. Nela só existem vagas para quem faz de conta que, de 2006 para cá, não houve o julgamento do Mensalão, a Lava Jato, o Petrolão, a prisão de Lula. É tanta coisa que é melhor esquecer. 

O prêmio a dividir é o posto de vice de um titular que, se eleito, assumirá a chefia do governo com 77 anos de idade. A questão biológica favorece Alckmin, um quase setentão. Em 2002, o PT recitava que a “esperança vencera o medo”. Passados 20 anos, o medo cresceu. A súbita conversão de um fundador do PSDB mostra que desta vez a esperança venceu a vergonha. 


Texto e imagens reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com 

sábado, 26 de junho de 2021

'A suprema sem-vergonhice', por Augusto Nunes

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, 25 de junho de 2021

A suprema sem-vergonhice

Dirceu, O Cadeieiro, revela os encantos da vida na gaiola. Augusto Nunes para a Oeste:

Em outubro de 2015, ainda no início da terceira temporada na cadeia, José Dirceu de Oliveira — ex-presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo, ex-presidente do PT, ex-deputado estadual, ex-deputado federal, ex-chefe da Casa Civil do governo Lula — parecia tão à vontade na cela quanto numa das passeatas de 1968. “Vou ficar aqui uns sete ou oito meses”, calculou na entrevista à Veja. “Se for condenado, passo mais cinco anos preso e depois vou para casa. Tá tudo bem.” Tudo bem? Como assim?, franziu a testa o entrevistador. Foi então que o ex-capitão do time de Lula, o ministro que fazia e desfazia nos campos e catacumbas do PT, o herdeiro natural do espólio do chefe supremo informou que se rendera à vocação inescapável: “Eu sou cadeieiro mesmo”. Surto de sinceridade é isso aí.

O líder estudantil decerto não sabia disso em agosto de 1968, quando inaugurou a sequência de cinco temporadas na gaiola com o estágio de um ano na penitenciária em São Paulo. Condenado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mensalão, o já ex-ministro reencontrou-se com a rotina no cárcere em novembro de 2013. Um ano mais tarde, ao recuperar o direito de ir e vir, a quarentena involuntária já lhe parecia facilmente suportável. Aprendera a importância da disciplina, dos cuidados com a higiene, das demonstrações de solidariedade — e havia virado xerife de cela. Em agosto de 2015, devolvido pela Operação Lava Jato ao presídio da Papuda, onde ficaria até maio de 2017, demorou menos de 100 dias para festejar a aceleração da metamorfose que se consumaria na terceira hospedagem no xilindró: era mesmo um cadeieiro.

Tornou-se Ph.D. na especialidade com as duas temporadas seguintes, que o mantiveram recluso entre maio e junho de 2018 e entre maio e novembro de 2019. Libertado pela fábrica de habeas corpus gerenciada por Gilmar Mendes, tranquilizou-se de vez com a chicana que sepultou a possibilidade do início do cumprimento da pena depois da condenação em segunda instância. Se não saísse pela porteira que o Supremo Tribunal Federal abriu para que Lula voltasse ao palanque, Dirceu estaria animando o sistema penitenciário com palestras sobre o tema Como Ser Feliz Encarcerado. Foi o que fez nas passagens pela Papuda e pelo presídio de Pinhais, no Paraná, com plateias restritas a larápios de fina linhagem que a Polícia Federal despertou para o pesadelo com batidas na porta às 6 da manhã.

“Preso primeiro chora, depois chama a mãe e seus santos”, ensina o doutor em vida reclusa na carta enviada em abril de 2017 a um grupo de amigos. “O trabalho, a leitura, o estudo e a escrita transformam a prisão em vida produtiva e criativa, além de passar o tempo de maneira útil e agradável.” Depois de informar que espelhos são proibidos no xilindró, revela o truque a que recorrem os ansiosos pela contemplação do próprio rosto: “É preciso usar um prato grande e limpo”. Mais: cadeia faz bem à saúde: “Bebida, cigarro, gordura, ou é proibido ou não existe simplesmente. O preso deve fazer exercícios todos os dias. No meu caso, 71 anos, é light. O importante é manter os músculos lombares fortes”. Só nas linhas finais Dirceu arrola algumas queixas que, eliminadas, aperfeiçoariam o sistema penitenciário. Por exemplo: “a corrupção ou mesmo o controle dos presídios pelo crime organizado”.

Gaiola também estimula o convívio dos contrários, acrescentaria Dirceu na entrevista em que recomendou a Lula, preso em Curitiba, que solicitasse transferência para a sexta galeria de Pinhais, onde atuara como gerente e conselheiro. “Ele precisa conviver com outras pessoas”, argumentou. “Se vier, o Lula verá que é uma convivência normal. Você conversa, aprende muita coisa, as pessoas têm muito o que ensinar.” O entrevistado, por exemplo, formou uma dupla bastante harmoniosa com Eduardo Cunha. Antonio Palocci lembrou que se formara em medicina e tratou de atender pacientes de todos os partidos, tendências e facções. Poucos optaram pelo isolamento. “O Marcelo Odebrecht fazia ginástica oito horas por dia e não convivia com os outros presos”, exemplificou. E nenhum dos alvos da Lava Jato escapou do período de depressão que espreitava os recém-chegados. A maior operação anticorrupção da história comunicara ao país que, aos olhos de juízes honestos e corajosos procuradores federais, a lei vale para todos. Mas ainda não sabiam disso políticos e empreiteiros que se julgavam desde o berçário condenados à perpétua impunidade.

Intimados pela Justiça, os maiores empreiteiros do Brasil pousaram em Curitiba a bordo de jatinhos particulares e fizeram reservas por uma noite em hotéis cinco-estrelas. Acabaram dormindo em celas ou salas e ficariam por lá meses ou anos. Marcelo Odebrecht, por exemplo, voltaria para casa mil dias depois. Mesmo os deprimidos, contudo, logo encerravam a cantilena da inocência. E começavam a examinar a ideia de recuperar a liberdade pelo atalho da colaboração premiada, rebatizada de “delação” por quem temia a expansão do oceano de provas que escancararam o escândalo do Petrolão. Todos já estavam conformados com a confissão ou o castigo quando as investigações se aproximaram perigosamente da cúpula do Judiciário e da bandidagem com direito a foro privilegiado. Divulgadas por um casal de vigaristas, as mensagens roubadas forneceram o pretexto para que a aliança entre togas e ternos ouvisse o apelo de Romero Jucá: era hora de estancar a sangria.

Qual dos três times grandes triunfaria no Campeonato dos Bilhões restrito à população carcerária? Sérgio Cabral, o supercraque de Bangu, tornou-se o artilheiro mais temível ao declarar-se “viciado em dinheiro” para justificar a roubalheira que até agora já lhe garantiu penas que ultrapassam 300 anos de prisão. Mas os destaques restantes do time — Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Eike Batista e Adriana Ancelmo — estavam abaixo do nível alcançado pelos dois rivais. A equipe da Papuda tinha Geddel Vieira Lima, Luiz Estevão, Henrique Alves, Joesley e Wesley Batista — e, por algum tempo, contou com o onipresente Zé Dirceu. O mesmo Dirceu que também brilhara no elenco de galácticos de Pinhais, formado por lendas da alta delinquência como Eduardo Cunha, Antonio Palocci, Marcelo Odebrecht, Léo Pinheiro, Aldemir Bendine, Gim Argello, João Vaccari Neto ou Delúbio Soares. Se as coisas ficassem complicadas, bastaria convocar Lula, o camisa 10 concentrado em Curitiba. Quem venceria?

Jamais saberemos. Neste Brasil do avesso, todas essas sumidades da sem-vergonhice estão livres para o planejamento do próximo escândalo. Na CPI, o cangaceiro engravatado Renan Calheiros promete prender e arrebentar quem discordar da ciência e do relator. O ex-juiz Sergio Moro foi estigmatizado como faccioso por um STF que é coiteiro de governadores gatunos afundados no Covidão. E Lula cobra do governo atual os hospitais que o palanque ambulante deixou de construir para erguer os elefantes brancos que o enriqueceram antes, durante e depois da Copa da Ladroagem. Até quando suportaremos a Ópera dos Cínicos? Até que o povo brasileiro perca a paciência de vez.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

sexta-feira, 18 de junho de 2021

O exemplo de Ruth Cardoso, por Augusto Nunes

Publicado originalmente no BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 18 de junho de 2021

O exemplo de Ruth Cardoso

Sempre que estende a mão a Lula, FHC leva um carrinho por trás. Augusto Nunes via Oeste:

Ruth Cardoso foi a prova definitiva de que milagres civilizatórios podem ocorrer em qualquer canto do mundo. A brilhante paulista de Araraquara, que se casou muito jovem com o sociólogo carioca Fernando Henrique Cardoso, seria a primeira mulher de presidente da República a desembarcar no coração do poder com profissão definida, formação refinada, ideias próprias e altivez para afirmar o que pensava — com luminosa independência intelectual e, quando necessário, elegante contundência. Durante oito anos, uma só pessoa fundiria a mulher que sabia o que dizia e a antropóloga admirada em muitos idiomas. Mas nem desconfiavam disso aqueles jornalistas que, no fim de 1994, vigiavam as andanças do presidente eleito. Tanto assim que lhes pareceu apenas uma blague a justificativa de Fernando Henrique para a viagem à Rússia na semana seguinte: “Vou como acompanhante da Ruth”. Ela participaria como palestrante de um congresso de antropologia promovido em Moscou, ele aproveitaria para descansar alguns dias. Concentrados no marido em férias, os repórteres dispensaram-se de conferir o desempenho da cientista. Caso fossem menos obtusos, descobririam mais cedo que Ruth Cardoso era muito mais que a mulher do n° 1.

A mais admirável das primeiras-damas abdicou do título já no dia da posse. “Isso é uma caricatura do original americano, esse cargo não existe”, resumiu. Nesse caso, Ruth reinventou o inexistente: sem pompas nem fitas, sem fanfarras nem rojões, montou e liderou o impressionante conjunto de ações enfeixadas no programa Comunidade Solidária. Em dezembro de 2002, o programa mobilizava 135 mil alfabetizadores, 17 mil universitários e professores, 2.500 associações comunitárias, 300 universidades e 45 centros de voluntariado. Também por isso, acabou simbolicamente promovida a primeira-dama da República no dia da morte que pareceria prematura ainda que Ruth tivesse vivido mais de 100 anos. A cerimônia do adeus comprovou que o Brasil se despedia, comovido, de alguém que o fizera parecer mais respirável, menos primitivo, mais clemente, menos boçal. E que merecia ter partido sem conhecer a fábrica de dossiês cafajestes produzidos nas catacumbas da Casa Civil chefiada por Dilma Rousseff e pela mãe de quadrilha Erenice Guerra.

Lula encomendou à dupla algum truque diversionista que reduzisse o imenso buquê de holofotes que clareavam o escândalo da gastança com cartões corporativos do governo federal. (O ministro Orlando Silva, por exemplo, usara o dele até para comprar tapiocas vendidas por menos de dez reais.) Submissas, as duas amigas produziram um papelório abjeto que tentava transformar Fernando Henrique e Ruth Cardoso em perdulários incuráveis, decididos a torrar o dinheiro da nação em vinhos caros e futilidades gastronômicas inacessíveis a 99% dos brasileiros. Pouco antes da morte de Ruth, Dilma tentou gaguejar por telefone um pedido de desculpas. O alvo da infâmia negou-se a atender ao saber quem estava do outro lado da linha. Fez muito bem, confirmaria durante a campanha de 2010 a discurseira do poste fabricado pelo deus da seita. “Peço a vocês que comparem o Lula e o Fernando Henrique”, berrava a candidata que se tornaria a pior governante de todos os tempos. “O Lula ganha de 400 a 0.” Alguém no PSDB poderia ter sugerido que se comparasse Dilma Rousseff a Ruth Cardoso. A cabeça habitada por um neurônio solitário decerto descobriria como se sentiram os jogadores da seleção brasileira naquele 7 a 1 contra a Alemanha na Copa de 2014. E aprenderia que ainda assim saíra no lucro: para quem enxerga por trás de uma criança um cachorro oculto, perder para Ruth Cardoso por 400 a 0 é pouco.

O problema é que os militantes tucanos são especialistas em rendição sem combate, e o presidente de honra do partido prefere acreditar que é possível dançar minueto com quem nunca foi além do axé, ou conversar em francês com quem trata o português a socos e pontapés. Faz quase 20 anos que Fernando Henrique trata como um viveiro de delinquentes juvenis perfeitamente recuperáveis o bando que nele enxerga seu Grande Satã. Vive levando um carrinho por trás quando ainda está com a mão estendida. No primeiro dia de 2003, por exemplo, completou-se um processo sucessório exemplarmente democrático. Durante a campanha, o presidente em fim de mandato consultou Lula e José Serra antes de tomar qualquer decisão cujos efeitos poderiam estender-se pelos anos seguintes. Consumada a vitória do adversário, FHC pilotou o período de transição e ajudou a conter a fuga de investidores inquietos com o prontuário do PT. “Aqui você deixa um amigo”, disse o sucessor com a faixa verde e amarela já pendurada no peito. Foi o abre-alas do desfile de mentiras, vigarices, trapaças e traições endereçadas à figura que está para o SuperLula como a kriptonita verde para o Super-Homem. A alegoria principal apresentava como “herança maldita” o Brasil modernizado pelo Plano Real, pelo sumiço da inflação pornográfica, pela lei de responsabilidade fiscal, pelas privatizações que começaram a exorcizar o fantasma do primitivismo.

Criminosamente solidário com José Sarney (que qualificou de “maior ladrão do Brasil” em 1988), vergonhosamente amável com Fernando Collor (que rebaixara a corrupto na campanha de 1989), incapaz de absorver as duas derrotas impostas por FHC ainda no primeiro turno e conformar-se com a imensa inferioridade intelectual, despejou sobre o antecessor o estoque inteiro de grosserias acumulado nos porões da alma ressentida. FHC pareceu abrir os olhos, para logo fechá-los, em quatro ou cinco momentos. Num artigo publicado em outubro de 2008, advertiu que a democracia brasileira estava ameaçada pelo “autoritarismo popular” do lulopetismo, que poderia descambar numa espécie de subperonismo amparado nas centrais sindicais, em movimentos ditos sociais e nas massas robotizadas. “Para onde vamos?”, perguntava o título. A Argentina de Juan Domingo Perón foi para os braços de Isabelita e acabou no colo de militares hidrófobos para depois recair na ratoeira do neoperonismo que, com ligeiríssimos intervalos, vem destruindo o país. O Brasil de Lula foi para o colo de Dilma Rousseff. Em fevereiro de 2009, outro artigo enterrou a “herança maldita” no jazigo das safadezas eleitoreiras. “Para ganhar sua guerra imaginária, o presidente distorce o ocorrido no governo do antecessor, autoglorifica-se na comparação, nega o que de bom foi feito e apossa-se de tudo que dele herdou como se dele sempre tivesse sido”, resumiu FHC, que enfim se dispôs a apanhar a luva atirada pelo sucessor: “Se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”. Não houve briga nenhuma. Salvaram-nos a Operação Lava Jato, o impeachment, o governo-tampão de Michel Temer e a derrota de outro poste de Lula em 2018. Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Brasil pode conviver mais alguns anos com tempestades perfeitas. E transformou um corrupto e lavador de dinheiro condenado em três instâncias no candidato que pode deter o avanço do genocídio. Haja imbecilidade. Ou canalhice.

De volta, o palanque ambulante colocou Bolsonaro na mira. Mas, sem esquecer o velho objeto do rancor, reiterou o mais recente manifesto produzido pelo jornalista que, fantasiado de Ombudsman da Humanidade, passou a maior parte da vida arquitetando alguma frente ampla que dará um jeito no gigante adormecido. A mais criativa juntou um punhado de órfãos da União Soviética a Paulo Maluf, então candidato a prefeito de São Paulo. Há pouco, o articulador trapalhão aglomerou num abaixo-assinado os “70 por cento de brasileiros democratas”. Só não há lugar para Sergio Moro, avisou o JK de botequim. Nem para Fernando Henrique, emendou Lula ao explicar por que não embarcara na arca inverossímil: já não estava na idade de andar em companhia de qualquer um. Qualquer um, na cabeça do dono do sítio de Atibaia que pertence a um amigo, é Fernando Henrique. Nem por isso o alvo da agressão arquivou a declaração inverossímil: se tiver de optar entre Lula e Bolsonaro, declarou em maio, votará no ex-comandante do maior esquema corrupto de todos os tempos. Segundo o declarante, o ex-presidiário pelo menos não representa uma ameaça às instituições. É bandido, mas preza o Estado Democrático de Direito.

FHC tem todo o direito de negar-se a votar em Bolsonaro. É assim nas democracias. Mas tem também o dever de não votar em Lula. É assim no universo habitado por gente honrada, como Ruth Cardoso, que jamais ajudaria a patrocinar a segunda temporada do pesadelo com locações na Venezuela. A brava paulista jamais votaria num gatuno sem remédio. Por tudo o que fez pelo país, Fernando Henrique será lembrado como um dos maiores presidentes da República. Pelo que diz que fará, pode também ser lembrado como o pior dos ex-presidentes.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com