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domingo, 16 de outubro de 2022
segunda-feira, 13 de maio de 2019
quinta-feira, 14 de junho de 2018
Entrevista com Eduardo Giannetti da Fonseca
Eduardo Giannetti, em sua casa. (Foto: Luís Simione).
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 13 JUN 2018
Gianetti: “O ritmo de retomada desaponta, mas não sei onde
estaríamos com Dilma”
Economista e filósofo assessora Marina Silva, a quem julga a
mais comprometida com o país.
Para Eduardo Giannetti, Temer tinha um bom plano de Governo,
mas só faz sobreviver desde 2017
Por Felipe Betim (Jornalista/Periodista - El País)
Quando lançou em 2016 o livro Trópicos Utópicos (Companhia
das Letras), Eduardo Giannetti da Fonseca (Belo Horizonte, 1957) idealizava um
Brasil que se apresentasse como alternativa aos modelos já conhecidos e uma
nação que, pautada por seus próprios valores, percorre seu próprio caminho rumo
ao desenvolvimento. O economista e filósofo retoma e se aprofunda no tema ao
lançar agora O elogio do vira-lata e outros ensaios, uma coletânea de textos
escritos entre 1989 e 2018 que reflete as mudanças pessoais pelas quais passou:
"Eu era um jovem pesquisador com a pretensão de contribuir com o debate de
ideias para a modernização do Brasil. Achava que o país precisava de uma
injeção de liberalismo clássico", diz ele. "Hoje, me preocupa mais a
construção de um Brasil que não seja uma cópia piorada dos países do norte. Me
instiga a construção de uma originalidade brasileira diante de um mundo
ocidental que não oferece mais sonhos e promessas de mudança genuína".
Assim, a primeira parte do livro, intitulada Enredos
Brasileiros, fala sobre aspectos da psicologia brasileira, grandes questões
nacionais e suas preocupações com a cultura. Ele aborda, por exemplo, o
conhecido complexo de vira-lata do brasileiro e faz uma defesa de sua
"condição de vira-lata". Também aborda o que chama de paradoxo do
brasileiro. "Cada brasileiro, quando olha para si, se sente muito
diferente e acima de tudo isso que aí está. Mas todos nós juntos somos
exatamente tudo isso que aí está. É como se o brasileiro fosse o outro, sempre,
e ninguém se reconhece no coletivo que somos nós juntos", explica.
Giannetti é também, junto com o economista André Lara
Resende, colaborador da pré-candidata Marina Silva (REDE). Ao EL PAÍS,
argumenta que a greve dos caminhoneiros mostrou que "a sociedade
brasileira não tolera mais um sistema de governo em que o Estado dá a entender
que a sociedade existe para servi-lo, e não o contrário". Ele critica uma
política de preços da Petrobras baseada em reajustes diários de acordo com a
cotação do dólar e os preços internacionais do Petróleo, algo "tecnocrática
e de desconhecimento da vida comum".
Pergunta. Um dos seus textos no livro que você acaba de
lançar é uma resenha de um livro do Roberto Mangabeira Unger sobre o que a
esquerda deveria fazer. O que acha que ela deveria fazer?
Resposta. A minha grande bandeira, aspiração, é um Brasil em
que a condição social, a condição de gênero, a condição de etnia em que a
pessoa nasce não a prejudique de nenhuma maneira. Que ela tenha absoluta
igualdade de oportunidade para a formação de suas capacidades de modo que ela tenha
uma vida a mais plena possível. Estamos muito longe disso no Brasil, mas o
caminho é a igualdade de oportunidades. Não me incomoda que as pessoas tenham
desigualdade na chegada, desde que a igualdade tenha existido na partida. As
pessoas tem valores diferentes, tem sonhos diferentes... Nem todo mundo,
felizmente, está disposto a sacrificar tanto a vida em nome de valores
financeiros e econômicos. As pessoas são diferentes e é bom que assim seja.
P. Mas a desigualdade na chegada tem que ser tão grande como
é hoje no Brasil?
R. A desigualdade na chegada brasileira é totalmente viciada
e deturpada por uma obscena desigualdade na partida. E isso envenena as
relações sociais no Brasil. Elas são tóxicas. A maneira de corrigir isso é
buscado uma equalização da igualdade de oportunidades. E temos que concentrar
tudo o que for possível para corrigir essa distorção que nos acompanha desde
nossa origem como nação. Mas, hoje, o estado brasileiro é um grande
concentrador de renda.
P. Você está assessorando outra vez a Marina Silva
[pré-candidata a presidência pela REDE]? Que papel terá em sua campanha?
R. Eu me dispus a ajudar na formulação de propostas. Estou
contribuindo com o que eu puder para que isso aconteça. Fiquei muito feliz de
estar trabalhando nesse projeto com uma pessoa que admiro enormemente, o André
Lara Resende. Ele também está se dispondo com a formulação de propostas e
ideias que possam ser implementadas por um Governo Marina.
"A democracia racial é uma ideologia criada para
encobrir uma realidade objetiva de descriminação e de racismo. Agora, como
ideal e como valor, acho que é por aí"
P. No que diferencia a Marina Silva de outras candidaturas
consideradas liberais, como a de Geraldo Alckmin (PSDB), Henrique Meirelles
(MDB) ou João Amoêdo (NOVO)?
R. Estou acompanhando e colaborando com a Marina Silva desde
2010. Uma liderança como a dela é rara em qualquer lugar do mundo, porque é
calcada em compromisso ético. Nenhum outro líder político brasileiro tem um
grau de comprometimento com ética como a Marina Silva. Ela é a única capaz de
trazer para o centro da agenda duas questões definidoras do nosso futuro:
educação e meio ambiente. Economia é meio, não é fim. O importante é deixar
nossa economia organizada para que nós possamos concentrar nossas atenções,
como governo e como nação, naquilo que definirá nosso futuro. Não vejo ninguém
mais apto e preparado a fazer esse projeto de estadista, de futuro, e com os
valores corretos, do que Marina Silva.
P. Acabamos de sair de uma longa greve de caminhoneiros. Que
balanço e que lições você faz dessa paralisação?
R. Me dei conta nesses últimos dias das semelhanças entre
junho de 2013 e maio de 2018. São movimentos que começam localizados em torno
de questões aparentemente muito setoriais: os 20 centavos, os 46 centavos.
Transporte. São movimentos que rapidamente ganham a sociedade. A adesão é
fortíssima e rápida, e acho que as novas tecnologias têm papel nisso. O
sentimento todo da sociedade se mobiliza. E realmente toma conta do cenário.
Não tem muita liderança centralizada, se espalha rapidamente e coloca o governo
contra a parede. E depois tem uma dinâmica em que grupos minoritários radicais
e violentos passam a tentar instrumentalizar o movimento. Os black blocs lá, e
os pedidos por intervenção militar agora. A dinâmica é parecida. Por trás dos
dois casos está um sentimento de que a sociedade brasileira não tolera mais um
sistema de governo em que o Estado dá a entender que a sociedade existe para
servi-lo, e não o contrário. Nós transferimos para os governantes, para o
Estado brasileiro, uma fatia enorme do resultado do trabalho. A carga
tributária é de 34% do PIB, o déficit nominal é 6% do PIB, o que significa que
40% de todo o valor criado pelo trabalho dos brasileiros transita pelo setor
público. E a sociedade não vê contrapartida. Metade dos domicílios não tem nem
sequer saneamento básico, a coisa mais elementar de uma vida digna. Como a
educação fundamental, a saúde pública, a segurança, o transporte coletivo
continuam tão precários? Tem alguma coisa profundamente errada nas finanças
públicas brasileiras. A tentativa que vem sendo feita de 1988 pra cá, de
acomodar a pressão para os gastos pelo aumento da carga tributaria, sistematicamente,
esgotou. Acabou o ciclo de expansão fiscal. Então vamos ter que entrar em outro
tipo de jogo. O que está por trás disso é uma demanda de mudar profundamente o
modo como o Estado brasileiro direciona os recursos. Outro elemento fundamental
desse sentimento de revolta hoje foram as revelações da Lava Jato, que mostrou
como nunca antes o modo de se fazer política.
"A minha grande bandeira é um Brasil em que a condição
social, a condição de gênero, a condição de etnia em que a pessoa nasce não a
prejudique de nenhuma maneira"
P. Se você estivesse dentro do governo, como resolveria a
questão? Que política de preços a Petrobras deve adotar?
R. Não sou um pessoa boa de formulação e execução. Não me
meto no Executivo e não é meu perfil. Mas uma coisa bem especifica e técnica é
que acho uma maluquice corrigir preço do derivado do petróleo todos os dias, de
acordo com dois preços altamente voláteis como o preço do petróleo no mercado
internacional e o regime de cambio flutuante. Isso é uma ideia tecnocrática e
de total desconhecimento da vida comum. A governança das estatais melhorou
dramaticamente, acho que eles estão fazendo um trabalho muito bem vindo de
profissionalização da gestão. Mas no caso específico da metodologia de correção
dos derivados do petróleo, eles foram tecnocráticos e equivocados. Nós vamos de
um extremo ao outro, porque antes a Dilma era de um intervencionismo
desastrado. De repente, vamos para um fundamentalismo de mercado que torna o
preço do gás de cozinha, do diesel e da gasolina um ativo financeiro, que varia
fortemente para cima e para baixo todos os dias. Precisamos ter realismo
tarifário, mas também um suavizador.
P. A paralisação mostra algumas contradições e
complexidades. As pessoas querem menos impostos e mais serviços públicos universais.
Apoiam a greve dos caminhoneiros, mas não aceitam pagar a conta.
R. Já está pagando muito mais do que deveria. No caso do
preço médio dos remédios, 36% é imposto. Na gasolina e no diesel chega a ser
mais do que isso. Não dá mais para acomodar os conflitos aumentando a carga
tributária, isso chegou no limite. Precisamos repensar agora por que um Estado
pelo qual transitam 40% do valor criado pelos brasileiros não atende as
necessidades mais elementares das políticas públicas. O Bolsa Família é meio
por cento do PIB, é a migalha que cai da mesa. E olha o impacto que isso tem na
vida de milhões de brasileiros.
Uma das questões que tem que ficar claro é o sistema de
castas da previdência brasileira. O benefício médio de aposentadoria do INSS,
para o cidadão comum, é de 1.300 reais comum. Esse valor sobe, no Executivo
federal, para 7.000 reais por mês. No Legislativo, são 16.000 reais por mês. No
Judiciário, são 27.000 reais por mês. De média. Isso aqui é o antigo regime.
Não fizemos no Brasil o equivalente da revolução francesa e americana, que
começa com o lema “no taxation without a representation”. A gente não virou
esse jogo no Brasil. Os governantes ainda agem como se a sociedade existisse
para servi-los.
P. E como você acha que essa questão tributária tem que se
resolver? Qual é a reforma desejável?
"Nenhum outro líder político brasileiro tem um grau de
comprometimento com ética como a Marina Silva"
R. O sistema tributário brasileiro cobra
desproporcionalmente de quem menos pode pagar, porque ele está calcado em
impostos indiretos. E quem mais poderia e deveria estar pagando impostos
consegue driblar as tentativas do fisco de taxar. Temos que caminhar para um
sistema tributário menos calcado em impostos indiretos, que incidem no bolso de
quem ganha menos, e um sistema mais calcado em renda e, em alguma medida,
patrimônio, riqueza. O Estado brasileiro é regressivo na tributação e em grande
medida regressivo no gasto. Na Previdência, o déficit de 4,2 milhões de
aposentados do setor público é do tamanho do déficit da Previdência dos 29
milhões do INSS. É o sistema de castas. O gasto público em educação no Brasil
está em torno de 6%, isso é mais que a média dos países da OCDE e mais do que a
média de nossos pares na América Latina. Como você explica um gasto tão alto e
resultados educacionais tão ruins no Pisa? Porque uma fatia muito importante do
gasto público é capturado pelos mais ricos no ensino superior. O sujeito faz o
fundamental e médio na escola particular cara e, quando chega na parte mais cara
de sua educação, ele passa a contar com subsídio tributário que financia sua
educação.
P. É a favor então de mensalidades no ensino superior
público?
R. Quem já pagava pelo ensino fundamental e médio deve
continuar pagando. E quem não puder pagar pelo ensino superior, ganha uma bolsa
de estudos.
P. Você costuma dizer, na área fiscal, que precisamos de
menos Brasília e mais Brasil. O que isso significa?
R. Em 1988 se optou pelo modelo do Estado federativo. O
regime militar era centralizado, e optamos por descentralizar. Princípio
perfeito. Mas, na prática, transferiram para os estados e municípios as
atribuições do setor público, mas mantiveram no governo central a autoridade
para tributar. Dois terços da arrecadação está concentrada em Brasília. Então
temos um sistema de transferências muito nocivo para a boa utilização dos
recursos públicos. A regra num Estado federativo é: o dinheiro público deve ser
gasto o mais perto possível de onde ele é arrecadado, para o cidadão fiscalizar
e cobrar. Para Brasília deveria ir aquilo que somente a União deve cuidar, como
a diplomacia, o Banco Central, os órgãos reguladores... Além das distribuições
regionais. Num Brasil tão desigual e heterogêneo, é normal que as regiões mais
prósperas transfiram para regiões menos favorecidas. Mas por que o resto do
dinheiro precisa ir para Brasília para depois voltar? Brasília não pode ficar
arrecadando e repassando ou não, com os prefeitos de pires na mão pedindo
dinheiro. 80% dos municípios vivem de mesada. Vira um modo de fazer política.
Perde-se transparência, critério, prioridade, capacidade de fiscalização...
Precisamos construir no Brasil cidadania tributária, em que as pessoas saibam o
quanto pagam de imposto, para onde ele vai e como está voltando. Ninguém pode
ser contra isso.
P. Que outros tipos de ideias a candidatura Marina Silva
poderia trazer na questão da desigualdade e mundo do trabalho, que hoje passa
por uma série de transformações tecnológicas?
"Os governantes ainda agem como se a sociedade
existisse para servi-los"
R. Não posso responder por ela. Mas penso que, no mercado de
trabalho brasileiro, há dezenas de milhões de cidadãos sem uma situação regular
de emprego. Não dá para tolerar isso. Não é normal isso na vida organizada de
qualquer país. Ninguém os representa. Esses brasileiros não têm nenhuma
proteção, nenhum direito, e ninguém fala deles. Nós precisamos repensar as
instituições do mercado de trabalho brasileiro tendo como objetivo maior
permitir que todo brasileiro tenha, na sua atividade laboral, uma situação que
lhe dê a condição de cidadão pleno. Mas o que nós temos hoje com a economia
informal é subcidadãos, sem nenhum direito garantido de nada.
P. Mas com as mudanças tecnológicas, como elas vão ter um posto de trabalho formal?
Devemos começar a falar em direitos sociais desvinculados do emprego, como por
exemplo uma renda mínima universal?
R. Acho um caminho interessante, mas com muito critério. Os
recursos são limitados, o orçamento é restrito, e tem que ter muita seriedade.
Esse é um drama que teremos que necessariamente equacionar. As instituições
ficam muito defasadas em relação a mudança da vida prática e da tecnologia.
Atualizar as instituições e as demandas dessa nova economia será um processo de
tentativa e erro.
Há um artigo da minha coletânea chamado 'O outro Hayek', um
neoliberal austríaco que defende renda mínima garantida universal, independente
da pessoa trabalhar ou não. Eu adoraria estar numa sociedade que propiciasse ao
cidadão uma renda independente do fato de ele estar ou não trabalhando. É um
sonho de liberdade. Mas precisamos construir o caminho para isso.
P. Que balanço você faz do Governo Temer?
R. É uma pergunta que eu me faço e não consigo responder.
Onde nós estaríamos agora se o Governo Dilma tivesse continuado? O Brasil
estava na UTI, com sinais vitais em queda livre, sem nenhum horizonte. Era uma
situação sem a menor perspectiva. Então, do ponto de vista econômico, foi um
alívio ter uma boa equipe econômica, uma mudança para melhor na governança das
estatais e ter um programa de reformas, que no geral é bem correto, a Ponte
para o Futuro, que coloca uma agenda de mudanças para que o país volte a
recuperar o crescimento e a sustentabilidade das contas públicas.
Lamentavelmente, o componente político do governo Temer é... Ele não tem a
menor credibilidade e acabou sendo pilhado em 14 de maio de 2017 por aquela
conversa de comparsas no subsolo do Palácio. A partir de então o governo entrou
no modo de sobrevivência. A agenda de reformas que estava sendo encaminhada foi
praticamente abortada, interrompida, e o governo consumiu o que lhe restava de
capital político simplesmente para se manter vivo diante das denúncias e de sua
enorme e precária fragilidade.
"Precisamos construir no Brasil cidadania tributaria,
em que as pessoas saibam o que quanto pagam de imposto, para onde ele vai e
como está voltando"
P. O brasileiro ainda não sente os efeitos da recuperação. O
desemprego é alto e a greve dos caminhoneiros evidenciou o como é difícil
viver. Por quê?
R. Primeiro porque o governo Temer perdeu totalmente a
capacidade de iniciativa ao não fazer a mais importante das reformas, que era a
da Previdência. As expectativas gerais da economia foram prejudicadas por essa
falência do projeto reformista. Acho que o governo Temer errou no
sequenciamento das reformas, porque ele deveria ter usado o capital político do
início de seu governo para fazer primeiro o mais difícil, e depois fazer o
menos conflituoso. E tem um fato também, normal em todo processo de recuperação,
que o emprego é uma variável de resposta lenta. Assim como o desemprego demora
para aumentar quando começa a recessão, porque as empresas querem se sentir
seguras de que esse quadro é permanente antes de demitir, e porque é caro
demitir, o desemprego demora a cair quando acaba a recessão. Porque tem muita
ociosidade, o quadro não está totalmente definido... As empresas relutam em
contratar. Agora, o Brasil saiu da pior recessão da sua história. É muito
desapontador o ritmo, é muito incerta a continuidade desse movimento,
principalmente depois da greve, mas não sei onde estaríamos com o Governo
Dilma.
P. Em 'O elogio do vira-lata', título do seu livro, você
aborda a questão do complexo de vira-lata do brasileiro. Qual é a origem desta
personalidade?
R. O complexo de vira-lata foi cunhado como expressão pelo
Nelson Rodrigues, num contexto inclusive futebolístico. Mas depois isso
transcendeu muito e entrou no imaginário brasileiro a ideia do complexo de
vira-lata. Na verdade, esse sentimento de inferioridade, esse narcisismo as
avessas da psicologia brasileira, não surge no momento em que é nomeado. Ele
nos acompanha desde nossa origem como colônia. O mazombo era como primeiro se
chamou o brasileiro, que é o filho do português imigrante com negros e indígenas.
Eram chamados de brasileiros aqueles que exploravam o pau-brasil, faziam
fortuna e voltavam pra Portugal. E o mazombo era uma figura... O termo é de uma
língua angolana que denota bruto, iletrado, rústico, uma pessoa sem classe e
distinção. O mazombo tinha vergonha de ser quem era e seu sonho era voltar pra
Portugal, estudar em Coimbra e virar um cidadão de primeira. Então, o complexo
de vira-lata é um traço quase de nascença da vida brasileira. E continua muito
forte. A preferência por produtos importados, a inveja dos “civilizados” que
têm tudo, conforto, segurança, renda, coisas de primeiro mundo.
P. Ao mesmo tempo, você ressalta e elogia uma condição nossa
de vira-lata...
"Eu adoraria estar numa sociedade que propiciasse ao
cidadão uma renda independente do fato de ele estar ou não trabalhando. É um
sonho de liberdade"
R. Me incomodava muito o uso do termo “vira-lata” para
denotar a nossa condição inferior. O Nelson Rodrigues está coberto de razão
quando ele fala que nós temos cronicamente um sentimento de inferioridade. Mas
por que eleger o vira-lata do símbolo mor do que há de errado conosco? Por que
vira-lata? Eu acho bela e acho digna de reconhecimento de orgulho a condição
vira-lata. A síntese dessa força do ensaio é a seguinte: o verdadeiro complexo
de vira-lata é a ideia de que há algo errado em ser vira-lata. E tem um
subtexto aí que é o seguinte: o que é ser vira-lata? É a mistura. É não ter
raça definida. E o Brasil é mestiço, tanto genética como principalmente
culturalmente. Nós somos uma mestiçagens de elementos ameríndios, africanos e
europeus de diversas procedências. E isso é o que nos dá força e esperança de
ter uma contribuição original diante de um ocidente que está num beco sem
saída.
P. Ao longo do século XX, sempre se falou que a mestiçagem
tinha levado o Brasil a uma democracia racial. Mas hoje os movimentos negros
estão apontando para o fato de que isso nunca existiu. De que o racismo sempre
foi realidade e nunca se quis falar sobre isso. Esses mesmos movimentos negros
denunciam que esse processo de mestiçagem do Brasil, sobretudo na época da
escravidão, foi fruto de processos violentos, estupros... E também como um
objetivo maior de embranquecer a população, como você bem aponta em seu texto.
Como você se posiciona nesse debate?
R. A democracia racial foi usada como véu a encobrir uma
realidade objetiva de discriminação e de racismo. É uma ideologia que encobre
uma realidade que não pode ser negada. Agora, como ideal e como valor, acho que
é por aí. Devemos perseguir uma igualdade de oportunidade de maneira muito mais
agressiva e corajosa do que fizemos até hoje. Temos que reconhecer a existência
da descriminação e combatê-la por todos os meios. Agora, nós não podemos negar,
em nome disso, o que nos diferencia e o que nós temos de melhor, que é a
mistura. A história é um processo muitas vezes tortuoso. A vinda dos africanos
para a América é a coisa mais inominável em termos de violência e crueldade.
Mas é um fato. Nós estamos aqui e estamos juntos. A minha tataravó era uma
negra ex-escrava. Nós somos misturados, as pesquisas genéticas comprovam isso
do ponto de vista biológico, mas o mais importante não é o biológico. É a
integração cultural na música, na dança, na culinária, na literatura, no
cinema... Os três gênios universais brasileiros são vira-latas: Aleijadinho,
Machado de Assis e Pelé. São frutos dessa mistura, e é o que temos de melhor. E
acho que temos que enaltecer e cultivar nossa condição vira-lata, que foi muito
bem resumida num samba cantado pela Carmem Miranda, de um ator chamado Alberto
Ribeiro, que chama-se “Cachorro Vira-Lata”. Ele enaltece a condição da
liberdade do vira-lata sem coleira e sem patrão. Um belo sonho.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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