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O inglês George Moorhouse |
O
estatuto de inventores do futebol (moderno) auto-conferiu aos ingleses durante
anos a fio um misto de superioridade e arrogância face ao resto do Mundo – no
que a futebol diz respeito. A convicção de que “não só fomos nós que inventámos
o futebol como também o ensinámos a jogar ao resto do Mundo” fez com que os súbitos de Sua Majestade tivessem vivido
fechados no seu casulo ao longo de cerca de três décadas em relação ao que se
passava no restante globo futebolístico em termos organizacionais. E quando falamos
em termos organizacionais referimo-nos à participação inglesa em grandes
competições inter-continentais, organizadas sob a égide de uma entidade
internacional que chamasse a si a missão de tutelar o futebol a nível
planetário.
Para os ingleses, isso seria uma estocada no seu orgulho e vaidade
autoritária de donos e senhores do belo
jogo.
Esta posição fez com que ignorassem por completo a ideia de Robert
Guérin, jornalista (francês) do Le Matin, de Paris, e secretário do
Departamento de Futebol da União Francesa de Desportos, que em 1902 iniciou
contactos com algumas associações (ou federações) nacionais de países como a
Espanha, a Holanda, a Suécia e a Dinamarca no sentido de criar uma organização
internacional que tutelasse o futebol a nível mundial.
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Robert Guérin |
Reza
a história que Guérin terá ido a Londres apresentar – e propor – a ideia a Lord
Kinnard, o então presidente da Football Association – Federação Inglesa de
Futebol. Os ingleses ignoraram por completo esse movimento, que a 24 de maio de
1904 ganhou contornos de realidade com a fundação da FIFA.
Reunidos
em Paris, na Rue Saint Honoré, nº 229, representantes das associações nacionais
de França, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça fundaram nesse
dia a FIFA.
De
pronto foram encetados convites a outras associações/federações nacionais para
integrar o recém-criado organismo internacional – para o qual Robert Guérin foi
nomeado presidente –, entre eles a Inglaterra, que além de (continuar a)
recusar a integração nesta nova entidade, não a reconhecia oficialmente.
Inclusive, e já depois de a FIFA ter visto a “luz do dia”, a Football
Association (FA) reuniu em Londres várias associações nacionais com o intuito
de mostrar “quem continuava a conduzir os destinos do futebol planetário”.
A
FA tinha por estes dias associadas a si federações dos Estados Unidos da
América, Chile, ou Argentina, criando assim um autêntico braço de ferro com a
FIFA. A renitência por parte dos ingleses em reconhecer esta federação como a
entidade máxima do futebol internacional durou até 1906, quando em Berna o
inglês Daniel Burley Woolfall foi nomeado presidente do organismo, sucedendo no
cargo a Guérin.
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A primeira sede da FIFA, em Paris |
Este
facto, fez com que a Inglaterra recuasse na sua resistência em aderir à FIFA,
algo que efetivamente aconteceu nesse ano de 1906.
Com Woolfall no poder os
ingleses sentiam-se novamente senhores do futebol planetário.
O então
presidente da FIFA teve um papel decisivo não só na internacionalização das
leis do jogo, como também na criação daquela que é talvez a primeira grande
competição internacional de futebol e que esteve na génese da idealização do
atual Campeonato do Mundo da FIFA: o torneio olímpico de futebol.
Competição
que foi inserida nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908, e que até à criação
do Mundial FIFA foi a prova mais importante do futebol planetário ao nível de
seleções – pese embora a FA tenha controlado as operações do primeiro torneio
olímpico de futebol oficial, denotando aqui uma autoridade arrogante sobre a
FIFA.
Com
a morte de Woolfall, em 1918, a Inglaterra voltou a afastar-se da FIFA, numa
altura em que o organismo internacional passava por uma fase conturbada da sua
curta existência, como consequência dos “estilhaços” provocados pela I Guerra
Mundial.
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Jules Rimet: o pai do Campeonato do Mundo |
O braço de ferro entre Inglaterra e FIFA
voltava a ser uma realidade, um divórcio
que desta feita iria durar um pouco mais no tempo: 28 anos! Durante este
período (desde 1921) , um visionário surgiu na liderança da FIFA. O seu nome
era Jules Rimet. Este francês revolucionou o Mundo do futebol em vários
aspetos, sendo o mais sonante, quiçá, a criação do Campeonato do Mundo. O sonho
de Rimet tornou-se realidade em 1930, quando o Uruguai acolheu a primeira
edição daquele que é hoje o maior evento desportivo planetário. Os índices de
popularidade (crescente) da competição ficaram bem patentes nas três primeiras
edições, de tal forma que em 1946, finalmente, os ingleses saíram do seu “casulo”,
percebendo – e admitindo – que perante o crescimento da FIFA e da importância e
dimensão que o seu Campeonato do Mundo já havia atingido, o melhor seria mesmo
voltar a juntar-se à entidade que tutelava o futebol planetário. Até porque,
chegaram à conclusão que para provar a sua condição de mestres do jogo teriam de enfrentar as suas congéneres mundiais na
competição idealizada e criada pela FIFA.
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O cromo de Moorhouse nos tempos do Tranmere Rovers |
Esta
(longa) introdução leva-nos à nossa paragem histórica de hoje, no sentido de
recordar o inglês que “furou” o boicote da Inglaterra aos três primeiros
Mundiais da história. George Moorhouse, o seu nome. Quando em 1950 a seleção
inglesa aterrou no Brasil para ali disputar o seu primeiro Mundial, já
Moorhouse o havia feito 20 anos antes no Uruguai, ao serviço da seleção
norte-americana. Este cidadão nascido em Liverpool a 4 de abril de 1901 tem
assim pois um lugar reservado na História por ter sido o primeiro inglês a
competir num Campeonato do Mundo muito antes de a sua pátria natal o ter feito!
Combatente
na I Guerra Mundial, Moorhouse começou por defender – enquanto profissional – a
camisola do Tranmere Rovers, pese embora o tenha feito sobretudo ao serviço das
reservas do clube de Merseyside, entre 1921 e 1923. Com poucas oportunidades
para mostrar o seu valor, George Moorhouse – que no terreno de jogo atuava como
lateral-esquerdo – atravessou o Atlântico, rumo ao Canadá, com o intuito de
encontrar uma vida melhor num continente (americano) que aos olhos dos europeus
se afigurava como a “terra prometida”, bem diferente de uma Europa que por
estes dias tentava curar as feridas provocadas pelo primeiro grande confronto
bélico da História.
Moorhouse
chegou ao Canadá em 1923, tendo ali representado – ainda que de forma amadora –
os Pacific Railway, uma equipa constituída por elementos ligados aos caminhos
de ferro da região do Quebec. E se em Inglaterra o talento do nativo de
Liverpool havia passado praticamente despercebido, na América do Norte tal não
viria a acontecer. Após um par de jogos ao serviço dos Pacific Railway, o
jogador inglês impressionou um dos grandes impulsionadores do soccer norte-americano dos anos 20, Nat
Agar, também ele um inglês de berço que enquanto futebolista viveu os primeiros
passos da modalidade em Terras do Tio Sam,
sendo que enquanto dirigente esteve na génese da fundação da United States Football Association, em
1913.
Além
de figura influente do soccer, Agar
era igualmente o proprietário dos Brooklyn Wanderers, tendo de pronto convidado
Moorhouse para se juntar à sua equipa. Assim foi. A aventura do cidadão de
Liverpool no clube de Agar duraria somente um par de meses, pois ao fim de quatro
soberbas exibições, George Moorhouse tinha Nova Iorque a seus pés. Foi então
que aquele que era para muitos o maior emblema da Big Apple – e um dos maiores de toda a América – de então seduziu o
habilidoso full-back para os seus
quadros. Corria o (final de) ano de 1923 quando os New York Giants contrataram
Moorhouse. Nos Giants, o inglês tocou a fama, tornando-se num dos mais
reputados futebolistas da América nos anos 20, precisamente na chamada Golden Era (Era Dourada) do soccer estado-unidense. Defendeu o clube
ao longo de sete temporadas ao mais alto nível, o mesmo é dizer na American Soccer League, a principal
competição nacional dos States de
então, tendo disputado por este emblema um total de 241 jogos e apontado 46
golos, registo impressionante para um lateral-esquerdo.
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A "cortina de aço" yankee: Wood, Douglas e Moorhouse |
Em
1930, Moorhouse deixou os Giants, tendo atuado nos sete anos seguintes noutros
emblemas nova-iorquinos, como os Yankees – equipa sem qualquer ligação aos New
York Yankees do basebol – ou nos New York Soccer Club. Mas foi precisamente em
1930 que a história de Moorhouse conheceu o seu capítulo mais sonante.
Ele foi
um dos 16 selecionados de Bob Millar (treinador) para efetuar a viagem pelas
águas do Atlântico rumo à América do Sul, no sentido de defender as cores da
bandeira da América na primeira edição do Campeonato do Mundo da FIFA.
A
estreia de Moorhouse pelo combinado nacional havia-se dado quatro anos antes,
tendo o Canadá sido atropelado por concludentes 6-1 num encontro particular.
Julho de 1930 entra na história do desporto planetário como o mês em que em
Montevideu foi dado o pontapé de saída
do sonho de Jules Rimet: o Campeonato do Mundo. Moorhouse estava lá, e
juntamente com outros extraordinários futebolistas como Bart McGhee, Bert
Patenaude, Jimmy Douglas, Tom Florie ou o luso-americano Billy Gonsalves
conduziu a seleção yankee à melhor
performance de sempre num Mundial FIFA: o 3.º lugar. Goerge Moorhouse, o
guarda-redes Douglas e o defesa Alexander Wood foram apelidados pela imprensa
sul-americana (presente no evento) como a “cortina de aço”, pela solidez com
que fechavam os caminhos da sua baliza, enquanto que lá na frente Florie,
Patenaude, McGhee e Gonsalves tratavam de atormentar os defesas adversários.
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Seleção norte-americana que participou no Mundial de 1930 |
Mas,
a aventura yankee começou com vincadas
desconfianças e aguerridos protestos por parte dos adversários. Cerca de uma semana
após a chegada a Montevideu, ocorrida no dia 1 de julho, os norte-americanos
foram obrigados a dar uma conferência de imprensa na sequência de uma denúncia
da delegação belga – precisamente o primeiro opositor da seleção de Bom Millar
no torneio –, a qual apontava ilegalidades sobre a nacionalidade de alguns
jogadores yankees. Os belgas acusavam
os norte-americanos de incluírem no seu grupo atletas de vários países
europeus, acusação refutada pelos responsáveis yankees, que explicaram – na dita conferência de imprensa – que
apesar de seis dos seus 16 jogadores terem nascido na Europa haviam já
adquirido nacionalidade norte-americana. Como senão bastasse o ataque belga
também a imprensa brasileira lançou alguma lenha
para fogueira, ao dizer que o principal craque dos States era… português! Tratava-se de Billy Gonsalves, filho de
portugueses – nascidos na Madeira – mas que na verdade havia nascido em
Portsmouth (Rhode Island) dois anos após a chegada dos seus progenitores a Terras do Tio Sam. Tal como Gonsalves, outros
jogadores tinham descendência europeia, embora tenham nascido nos Estados
Unidos da América, casos de Tom Florie (filho de italianos) e Bert Patenaude
(filho de emigrantes franceses). Estrangeiros naturalizados a seleção
norte-americano tinha seis atletas, todos eles nascidos na Grã-Bretanha,
nomeadamente os escoceses Alexander Wood, Bart MacGhee, Jimmy Gallagher, Andy
Auld, James Brown e o inglês George Moorhouse.
Alguns
historiadores apontam que esta desconfiança e suspeita sobre a seleção yankee remonta ao facto de que o poderio
(monetário) do soccer daquele país
nos anos 20 fez atrair grandes estrelas do futebol europeu, que não só
procuravam na América um nível de vida melhor, mas sobretudo tentavam fugir da
Guerra que assolava o Velho Continente.
Atletas provenientes da Inglaterra, Escócia, Áustria, Hungria, Itália, ou
Alemanha emergiram em vários clubes norte-americanos durante a referida década
de 20 – a Golden Era do soccer estado-unidense –, fazendo
inúmeras digressões não só pelo continente americano como também pela Europa.
Ora,
terá sido esta multiculturalidade que vigorou durante anos no futebol dos States que levou outros países a
desconfiarem da “originalidade” da seleção estado-unidense no primeiro grande
torneio da FIFA. Certo é que no dia 13 de julho os Estados Unidos da América
tinham a honra de dar o pontapé de saída
do primeiro Campeonato do Mundo da história, quando no Parque Central de
Montevideu enfrentaram a Bélgica – no mesmo dia e na mesma hora, também jogaram
as seleções de França e México no Estádio de Pocitos.
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Fase do jogo entre EUA e Paraguai |
Moorhouse
estava lá, na line-up inicial dos States, que iriam vergar os belgas a uma
derrota por 3-0. Quatro dias mais tarde voltou a ser titular em mais um momento
de glória da nação que o acolheu em 1923, ao ajudar a derrotar o Paraguai
também por concludentes 3-0 – com a particularidade dos três golos serem da
autoria de Patenaude, que assim se tornava no primeiro jogador da história a
fazer um hattrick em Mundiais. Com
isto, os Estados Unidos da América seguiam para as meias-finais, onde viriam a
cair com estrondo aos pés da poderosa Argentina, por 6-1, diante de 112,000
espectadores no majestoso e recém-construído Estádio Centenário.
O
facto de a Jugoslávia – derrotada na outra semi-final ante os futuros campeões
mundiais, do Uruguai – se ter recusado a disputar o encontro de atribuição dos
3.º e 4.º lugares conferiu aos norte-americanos a medalha de bronze, o que
ainda hoje constitui o melhor resultado numa fase final de um Mundial de uma
nação que sonha um dia vir a ser a número 1, como em tantas outras modalidades.
Porém,
a aventura de Moorhouse com a seleção prolongar-se-ia até ao Mundial seguinte,
realizado em Itália, em 1934, tendo o inglês (naturalizado) sido novamente
selecionado e nomeado – desta feita – como capitão de equipa. Apesar de o
combinado agora às ordens do escocês David Gould incluir algumas lendas do
Mundial anterior, como Gonsalves, Florie, Jimmy Gallagher e o próprio
Moorhouse, o que é certo é que os States
cedo saíram da competição, após serem esmagados por 7-1 pela equipa da casa, na
primeira ronda de eliminatórias.
Após
a saída do futebol, George Moorhouse continuou a viver no país que lhe abriu as
portas do belo jogo ao mais alto
nível, a nação que o tirou do anonimato das reservas do Tranmere Rovers e que
lhe concedeu a honra de figurar no National
Soccer Hall of Fame, privilégio só concedido aos grandes ícones do soccer.
Faleceu
a 13 de julho de 1982, curiosamente o mesmo em que meio século antes havia
entrado na história ao “antecipar-se” à sua pátria natal na participação num
Mundial FIFA.