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quinta-feira, abril 10, 2025

Copa América (8)... Uruguai 1924

Os campeões olímpicos (e do Mundo) revalidaram o título 
das américas em 1924

É já ostentando a coroa de melhor equipa do Mundo, ou de campeões do Mundo, se preferirem, que o Uruguai entrava em campo no Campeonato Sul-Americano de 1924 para defender o título conquistado um ano antes. Sim, campeões do Mundo, já que à época o torneio olímpico de futebol era a competição mais alta a nível planetário, e arrecadar a medalha de ouro significava por aqueles dias ser campeão mundial. E o Uruguai tinha alcançado (nos Jogos Olímpicos de Paris) esse feito sensivelmente quatro meses antes do pontapé de saída da 8.ª edição da atual Copa América. Estávamos de facto diante da melhor seleção do planeta, e se dúvidas ainda restassem elas seriam (novamente) dissipadas num torneio que inicialmente estava destinado a ter como sede a cidade de Assunção, no Paraguai. Porém, a capital paraguaia não dispunha de unidades hoteleiras com condições mínimas para albergar as delegações visitantes, o que levou a organização a transferir a prova para Montevideu, onde havia sido realizada nas edições de 1923 e 1917. Dessa forma, o Parque Central de Montevideu voltou a ser – tal como no ano anterior – o palco de uma competição que para além do Uruguai contou com a participação da Argentina, do Chile e do Paraguai, quatro seleções que mediram forças num sistema de poule – todos contra todos – em que a equipa que somasse mais pontos seria coroada campeã. Ou seja, tal e qual às anteriores edições. 
Duelo inaugural da Copa de 24, entre argentinos e paraguaios
E no dia 12 de outubro de 1924 deu-se o pontapé de saída do 8.º Campeonato Sul Americano, em que 12.000 pessoas assistiram ao pobre nulo (0-0) entre argentinos e paraguaios. Este empate haveria de sair caro àquela que a par do Uruguai era a seleção favorita ao título, a Argentina. Sete dias depois (!!!) entraram em campo os campeões olímpicos – e por consequência do Mundo – para medir forças com o Chile. E o que se viu foi não só mais do que uma demonstração do poderio e arte do futebol uruguaio, que esmagou o seu oponente por 5-0, com destaque para o hattrick de Pedro Petrone, que desta forma se tornava no primeiro futebolista a apontar três golos ao serviço da seleção celeste no mesmo jogo e logo numa competição internacional.  

Fase do jogo entre Uruguai e Paraguai
No dia 25 de outubro teve lugar o terceiro jogo da prova, tendo a Argentina puxado, finalmente, dos galões para bater o Chile por 2-0, sendo que no dia seguinte o Uruguai derrotava o Paraguai por 3-1, com golos de Petrone, Ángel Romano e Pedro Cea. Face a estes dois resultados desde logo ficou definido que o clássico do Rio da Prata entre uruguaios e argentinos teria contornos de final, pois quem vencesse seria matematicamente campeão. Contudo, à equipa da casa bastaria um empate para revalidar o cetro. E assim foi. 

Episódio caricato que se repetiria entre os velhos rivais do Rio da Prata na final do primeiro Mundial seis anos depois

O grande clássico das américas nos anos 20: Uruguai vs Argentina
para decidir o campeão do continente em 1924

20.000 pessoas – a maior assistência do Sul-Americano de 1924 – lotaram no derradeiro dia da competição o Parque Central para assistir à “final” do torneio. Antes do pontapé de saída, o árbitro do encontro, o chileno Carlos Fanta, deparou-se com um contratempo caricato. Os uruguaios, a jogarem em casa, acharam-se no direito de jogar com a sua bola, que era confessionada de couro fraco e de dimensões maiores àquelas que os argentinos estavam habituados a jogar. O guarda-redes da Argentina, Américo Tesoriere, contou, anos mais tarde, que no seu país a bola habitualmente utilizada nos matchs era mais parecida com as que se utilizavam na Europa, de dimensões mais pequenas, e que os uruguaios diziam que aquilo era uma bola para as crianças jogarem. Após muita discussão, o árbitro Fanta decidiu-se pela “bola europeia”, para gaudio dos visitantes, sobretudo para o seu guarda-redes. Abra-se desde já aqui um parêntese para recordar que um episódio em (quase) tudo semelhante iria ocorrer seis anos depois na mesma cidade (Montevideu) e protagonizado por estas mesmas seleções, só que desta feita no primeiro Mundial da FIFA. Em 1930, uruguaios e argentinos queriam jogar a final do Campeonato do Mundo com as respetivas bolas, sendo que na altura o árbitro belga, John Langenus, repartiu o mal pelas aldeias, ou seja, decidiu que no primeiro tempo se iria jogar com a bola argentina e no segundo com a bola uruguaia. Mas voltemos aos acontecimentos da “final” da Copa América de 1924, onde os uruguaios dispuseram de inúmeras oportunidades para marcar, não fosse a boa atuação de Tesoriere, que mais habituado à “bola argentina” agarrava com facilidade o esférico sempre que este se aproximava da sua baliza. «Os uruguaios deviam ter-nos goleado, mas naquela tarde eu estava inspirado», contaria anos mais tarde Américo Tesoriere, que a propósito da avalanche ofensiva dos charruás neste encontro, recordou que a certa altura a bola pingou na área argentina onde apareceu o perigoso El Loco Romano pronto para desferir o golpe fatal. Apercebendo-se disso, Tesoriere antecipa-se ao avançado uruguaio ao adivinhar-lhe o lado para o qual aquele iria rematar. «Mergulhei para o lado esquerdo ainda antes dele rematar. Romano nem olhou e de pronto virou costas ao lance comemorando o golo. No entanto, como não ouviu gritos das bancadas virou-se para a baliza para ver o que se tinha passado, percebendo mais tarde que afinal eu tinha defendido aquele golo certo. Naquele momento ele virou-se para mim e disse um palavrão, mas depois confessou-me que não tinha entendido como eu tinha defendido aquele remate letal», contou o arquero argentino, que fruto da sua estupenda exibição seria no final carregado em ombros pelo próprio Romano e pelo companheiro de equipas deste, Alfredo Zibechi. Contas feitas, o encontro terminou empatado sem golos, o que de pronto conferiu o quinto título de campeão das américas ao Uruguai, que assim somava 5 pontos, mais um que os velhos inimigos da Argentina.

Lenda do futebol paraguaio nasce na Copa de 1924

Aurelio González

No terceiro lugar ficou a seleção do Paraguai, após ter vencido a sua congénere chilena por -1 na 3.ª e última jornada da prova. Uma vitória que muito se fica a dever a um então jovem de 19 anos, que fez neste Campeonato Sul-Americano a sua estreia pelo combinado guarani. Aurelio González, o seu nome. Nascido na cidade de Luque, a 25 de setembro de 1905, González é para muitos o melhor futebolista da história do Paraguai, sendo que a sua fama de goleador ao ultrapassar a fronteira dos campos de futebol, fizeram dele um verdadeiro herói deste país. Na Copa América de 1924, ele apontou dois dos três golos com que a sua seleção venceu o Chile, tornando-se a partir daquele momento na figura central da sua seleção, tendo inclusive, participado com esta no primeiro Mundial da FIFA, em 1930. Começou a despontar para o futebol no clube da sua terra, o Sportivo Luqueño, mas seria no Olimpia onde se tornou uma lenda, sendo conhecido como o Grande Capitão, tendo sido uma das figuras principais do primeiro tri-campeonato nacional (1927, 1928 e 1929) conquistado pelo emblema da capital. Na década de 30, González era já o mais popular futebolista paraguaio, quer do ponto de vista interno, quer externo, e como tal não foi de admirar que por esta altura os argentinos do San Lorenzo de Almagro lhe tivessem feito uma oferta milionária para se transferir para o clube daquele bairro de Buenos Aires. Oferta recusada por Aurelio, que pelo amor à pátria deixou de lado a bola para passar a servir o exército da sua nação na Guerra do Chaco, que opôs paraguaios a bolivianos. O conflito bélico entre os dois países paralisou o desporto local, e Aurelio González integrou o 14.º Regimento de Cerro Corá. Sobreviveu à guerra, foi elevado à categoria de herói nacional, pelo que fez dentro e fora dos campos de futebol. Faleceu a 9 de julho de 1997.

Nomes e números:

 

12 de outubro de 1924

Argentina – Paraguai: 0-0


19 de outubro de 1924

Uruguai – Chile: 5-0

(Pedro Petrone, 40, 53, 88; Pedro Zingone, 73; Ángel Romano, 78)


25 de outubro de 1924

Argentina – Chile: 2-0

(Gabino Sosa, 5; Juan Loyarte, 78)


26 de outubro de 1924

Uruguai – Paraguai: 3-1

(Pedro Petrone, 28; Ángel Romano, 37; Pedro Cea, 53)

(Urbieta Sosa, 77) 

Paraguaios saúdam a multidão em Montevideu


1 de novembro de 1924

Paraguai – Chile: 3-1

(Aurelio González, 15, 52; Ildefonso López, 33)

(David Arellano, 6) 

A guarda de honra feita aos campeões
da Copa América de 1924


2 de novembro de 1924

Uruguai – Argentina: 0-0

 

Classificação: 

1.º Uruguai: 5 pontos

2.º Argentina: 5 pontos

3.º Paraguai: 3 pontos

4.º Chile: 0 pontos

quinta-feira, fevereiro 06, 2025

Histórias do Planeta da Bola (34)... Há 100 anos a Inglaterra testemunhou o primeiro preconceito racial na sua seleção


Barrar a convocatória de um futebolista para uma qualquer equipa devido à cor da sua pele é aos olhos da atualidade um ato criminoso e acima de tudo vergonhoso. Mas há precisamente 100 anos atrás nem toda a gente pensava desta forma, ou pelo menos julga-se que assim era quando recordamos o caso de Jack Leslie, o primeiro negro a ser convocado e ao mesmo tempo desconvocado para a seleção inglesa. Nascido no bairro londrino de Canning Town, no dia 17 de agosto de 1901, Jack era filho de pai jamaicano e mãe inglesa. Ao serviço do Barking Town, modesto emblema de outro bairro da capital inglesa, Leslie cedo começou a dar nas vistas pela sua veia goleadora. Conta-se que terá marcado ao serviço deste emblema mais de 250 golos nos primeiros anos de carreira, tendo tido um contributo preponderante para a conquistas da Taça Sénior Essex, em 1920; da London League Premier Division, no ano seguinte. Os feitos de Leslie começaram a ultrapassar as fronteiras de Londres, e em 1921 é contratado pelo Plymouth Argyle, clube do sudeste de Inglaterra, onde se tornaria uma verdadeira lenda nos 14 anos seguintes. Nos 400 encontros realizados com o clube apontou um total de 137 golos, fazendo uma dupla mortífera com outro ícone do clube, Sammy Black, uma parceria que ao longo de todos estes anos rendeu mais de 300 golos aos Pilgrims, a alcunha pelo qual é conhecido este emblema. E seria precisamente no auge da sua carreira, que em 1925 Leslie recebe da boca do seu treinador, Bob Jack, a notícia de que estava convocado para jogar pela seleção inglesa num jogo contra a Irlanda. A boa nova, para Leslie, foi divulgada pela imprensa, tendo o Birmingham Gazette e o Liverpool Echo feito eco da notícia. Porém, e para espanto de todos, quando a convocatória oficial saiu o nome de Jack Leslie não estava mencionado (!), sem qualquer explicação posterior dada pela Football Association (FA). De pronto, surgiram teorias de que Leslie tinha sido riscado da convocatória final devido à cor da sua pele, já que quando os responsáveis pela seleção se aperceberam que o jogador era negro simplesmente voltaram atrás na decisão de o convocar. Anos mais tarde, a FA admitiu que os seus dirigentes não sabiam inicialmente que Leslie era negro, e quando descobriram… já se sabe o resto da história. Em 1978, Leslie deu uma entrevista ao jornal Daily Mail em que disse que quando a FA descobriu que ele era negro julgaram que seria estrangeiro e como tal foi descartado da convocatória. Em 2022, ano em que Jack Leslie havia já deixado o mundo dos vivos (faleceu em 1988), a FA admitiu o erro que cometeu em 1925 e chamou os descendentes do jogador ao Estádio de Wembley, tendo-lhes entregue um boné! Sim, um boné que simbolizava a internacionalização que deveria ter acontecido quase (e então) 100 anos antes. Uma espécie de pedido de desculpas que, quiçá, terá chegado tarde demais, e que veio fazer justiça a um jogador que após pendurar as chuteiras  passou o restos dos seus dias a limpar… chuteiras. Sim, nas décadas de 60 e 70 Leslie seria funcionário do West Ham United, onde se ocupava de tratar/limpar das botas/chuteiras dos futebolistas dos Hammers, entre outros de lendas como Bobby Moore, Geoff Hurst, e Martin Peters, três campeões do Mundo ao serviço da Inglaterra, em 1966. Seleção inglesa que apenas em 1978 veria um jogador negro vestir a sua camisola: Viv Anderson, o seu nome.

 

segunda-feira, junho 25, 2018

Histórias do Futebol em Portugal (21)... Memórias de uma primeira vez na alta roda do futebol internacional (3.ª parte)

Jorge Vieira e o capitão jugoslavo
antes do pontapé de saída
Com João dos Santos no lugar do castigado – pela dureza chilena – Armando Martins, Portugal voltaria a entrar em campo apenas dois dias depois do jogo de estreia. Os oponentes eram agora os jugoslavos. Equipa, cujo onze se apresentava fisicamente superior ao dos lusos, e além disso estava mais fresco, pois iria entrar em campo no torneio pela primeira vez, contrariamente aos pupilos de Cândido de Oliveira, que haviam gasto energias na pré-eliminatória ante o Chile.
No entanto, Portugal voltou a estar em grande nível, alcançando uma nova e épica vitória, tendo no plano individual o destaque ido para Augusto Silva, cuja estupenda exibição, coroada com um golo – o da vitória por 2-1 – apontado em cima dos 90 minutos lhe valeu o “título” de herói da tarde, tendo, no final, sido transportado em ombros pelos seus colegas de equipa.

Portugal ataca a baliza da Jugoslávia
Tal como ante o Chile, também Portugal esteve a perder, mas a veia goleadora de Vítor Silva esteve deste feita em evidência, com o avançado do Benfica a não se apresentar tão perdulário como no primeiro encontro e a restabelecer a igualdade ainda no decorrer da primeira parte. Pepe, Carlos Alves e Roquete foram igualmente endeusados pela imprensa portuguesa no final do embate com os jugoslavos, graças às suas brilhantes performances. Carlos Alves, o luvas pretas (avó de João Alves), esteve sempre muito seguro na defesa, afastando com classe por diversas vezes o perigo da sua área; enquanto que Pepe esteve em todo o lado, à direita, na esquerda, sempre farejando a bola na tentativa de causar pânico na baliza de Siflis (considerado então um dos melhores guarda-redes da Europa); ao passo que Roquete voltou a ser decisivo em inúmeras ocasiões a negar o golo aos possantes avançados dos balcãs. O aspeto negativo desta partida residiu na expulsão de Valdemar Mota, na sequência de uma carga sobre o guardião contrário quando este já estava no chão com a bola em seu poder. O juíz alemão Birlem não teve complacência e ordenou que o jogador do FC Porto abandonasse o terreno. Mas o mais importante de tudo é que Portugal já ia segunda vitória e os quartos-de-final eram agora uma realidade. Nada mau mesmo para uma estreia deste gabarito internacional.

Quartos-de-final onde figuravam os grandes favoritas à conquista do ouro olímpico, ou o mesmo será dizer, do título de campeão mundial. Argentina, Uruguai, Espanha, Itália e Bélgica (campeã olímpica em 1920) estavam todos na luta. Quis, no entanto, a sorte – ou o azar como mais tarde se viria a revelar – que o adversário dos portugueses no caminho para chegar às meias-finais fosse o aparentemente desconhecido Egito. O nosso país estava num estado de euforia total, e ninguém esperava que depois de eliminar os bravos e agressivos chilenos, e os técnica e fisicamente apurados jugoslavos, o Egito pudesse pôr cobro a esta aventura olímpica. De tal maneira que muita gente já pensava no confronto com a poderosa Argentina do temível avançado Tarasconi (que viria a sagrar-se o melhor marcador deste torneio olímpico), que com um poker (quatro golos) havia contribuído – e muito – para afastar a Bélgica nestes quartos-de-final.

Sfilis, o poderoso guardião dos balcãs
No dia 4 de junho, cerca de 3,500 espetadores assistem no Olímpico de Amesterdão ao último duelo desta ronda eliminar, entre portugueses e egípcios. Roquete, Carlos Alves, Jorge Vieira (capitão), Raul Tamanqueiro, Augusto Silva, César de Matos, Valdemar Mota, Pepe, Vítor Silva, Armando Martins e José Manuel Martins, constituem o “onze” que exibiu orgulhosamente a camisola vermelha da seleção nacional (o resto da indumentária era constituída por calções azuis e meias brancas com nuances de verde e vermelho).
Extremamente velozes e perigosos no ataque, os egípcios criaram dificuldades aos lusos que apesar de tudo exerceram o domínio em vários períodos do jogo. Durante o primeiro tempo, os avançados de Portugal deram que fazer ao último reduto dos africanos, com remates de todas as formas e feitios que obrigavam o guardião Handi e a sua defesa a trabalhos redobrados. Uma bola perdida por parte de Carlos Alves esteve na origem do primeiro golo do encontro, aos 15 minutos, tendo Mokhtar batido o desamparado Roquete.

Posto isto, o equilíbrio imperou até final do primeiro tempo, sem que tenham surgido grandes ocasiões de golos para qualquer das partes. Porém, logo a abrir a segunda parte, Portugal sofre um novo golpe. Augusto Silva é driblado por um egípcio (Riad, no caso) no meio campo, o qual, depois desta maldade ao médio do Belenenses, sai disparado em direção à baliza de Roquete, apanhando desprevenida a retaguarda composta por Carlos Alves e Jorge Vieira, e quando chega próximo do guarda-redes do Casa Pia mais não faz do que um brilhante chapéu que aninhou a bola nas redes lusas. 2-0.

Os lusos esmoreceram um pouco após este novo golpe, mas até final chamaram a si o domínio dos acontecimentos, rematando vezes sem conta à baliza africana na tentativa de minorar os estragos e reentrar na luta pelo resultado. Até que numa dessas incursões, Valdemar Mota – que apesar de expulso na partida anterior pôde estar em campo nesta nova batalha – cruza a bola para Vítor Silva, que a atira para a baliza. Sobre a linha de golo o guardião Handi tenta a defesa, sacudindo a bola já para lá da linha fatal, mas... o árbitro italiano Mauro faz vista grossa e não valida o tento a Portugal, de nada valendo os assobios do público holandês que se mostrava afeto à nossa seleção. Curioso, é que o fiscal de linha – também ele holandês – afirmou ter sido golo, mas Mouro mostrou quem mandava, e categoricamente respondeu aos vivos protestos portugueses com um: não! Não foi golo!

Lance da final Olímpica de 1928
Abalados por esta decisão, os portugueses continuaram, no entanto, a carregar e quando faltavam 14 minutos para o fim Vítor Silva reduziu a desvantagem. Até ao fim, Roquete foi um mero espetador a ver jogar os seus companheiros da frente, os quais lutaram até à exaustão pelo golo que valesse o empate e quiçá levar o tira-teimas para um novo jogo (na época não havia prolongamento, muito menos o desempate por grandes penalidades). A cinco minutos dos 90, Valdemar Mota inicia mais um ataque à baliza africana, fez um centro perfeito para a área, mas não havia ninguém para dar o melhor seguimento ao esférico. E assim se gastava o último cartucho luso no jogo. O sonho chegava ao fim. Portugal estava ingloriamente fora do torneio que haveria de ser (re)conquistado pelos magos do Uruguai numa frenética finalíssima diante dos vizinhos e velhos inimigos do outro lado do Rio da Prata – a Argentina. A Federação Portuguesa de Futebol ainda protestou o jogo, pelo erro do italiano Mauro, que anulou um golo limpo aos nossos rapazes, mas em vão, o Egito seguia em frente.

Apesar de tudo, a imprensa mundial rendeu-se aos portugueses no cair do pano do torneio olímpico de 1928. O jornal parisiense L' Auto escrevia que «Os chilenos chegaram a Amesterdão com a esperança de fazer tanto quanto tinham feito os uruguaios há quatro anos em Paris. Infelizmente para eles, a sorte opôs-lhes, logo no primeiro dia, uma das melhores equipas da Europa». O mesmo jornal escrevia após o desaire da seleção nacional perante o Egito o seguinte: «O onze português é sem dúvida o melhor dos todos os grupos apresentados pelos latinos da Europa».
Augusto Silva, Valdemar Mota e Raul “Tamanqueiro” Figueiredo foram escolhidos pelos jornalistas presentes como dos melhores jogadores revelação do torneio, a par de Monti (Argentina), Rivolta (Itália), Gestido (Uruguai), ou Evaristo (Argentina).
O jornal Echo des Sports, também de Paris, escrevia que «a equipa portuguesa foi uma das mais completas do torneio. Pela sua partida contra o Egito, Portugal merecia não só figurar na meia-final como também na final».

No futebol não existem vitórias morais, é certo, mas não é menos certo que estas são palavras que encheram de orgulho a nação lusa nesta sua primeira aventura (oficial) internacional, como ficou comprovado na receção apoteótica que a comitiva portuguesa teve no Rossio, quando do regresso a casa.
Estava dado o primeiro passo da caminhada que conduziu Portugal à glória e fama internacional dos dias de hoje.

terça-feira, junho 19, 2018

Histórias do Futebol em Portugal (20)... Memórias de uma primeira vez na alta roda do futebol internacional (2.ª parte)


Cândido de Oliveira,
o Timoneiro
Esperança, vontade de aprender e orgulho em servir a pátria no palco mais importante do futebol mundial “invadia” o grupo português que partiu para Amesterdão no dia 22 de maio de 1928. Holanda, França, Luxemburgo, Argentina, Estónia, Egito, Bélgica, Turquia, Estados Unidos da América, Espanha, Uruguai, Alemanha, Chile, Suíça, México, Jugoslávia e Portugal, eis os integrantes do cartaz do torneio olímpico de 1928. Uns mais favoritos do que outros, naturalmente. Jornalistas de todo o Mundo rumaram a Amesterdão para acompanhar os JO, sendo que grande parte deles o fez pelo futebol, a modalidade que movia uma crescente massa adepta no globo terrestre. Alemanha apresentava o maior número de jornalistas presentes nos Jogos, com 54, ao passo que Portugal enviava somente oito, entre outros António Ferro (Diário de Notícias), Adelino Mendes (O Século), Salazar Correia (Ilustração), Ribeiro dos Reis (Os Sports) e Cândido de Oliveira (Diário de Lisboa). Esta última figura viajava para a Holanda com uma dupla função, não só com a responsabilidade de transformar – brilhantemente, como era seu apanágio – em notícia os acontecimentos de Amesterdão, mas sobretudo o de liderar sob o ponto de vista técnico o combinado nacional. Cândido Fernandes Plácido de Oliveira (nasceu a 24 de Setembro de 1896), é uma das figuras mais marcantes da história do futebol em Portugal. Mestre Cândido – como era conhecido – foi o primeiro grande estudioso do futebol em Portugal, responsável maior pelo aparecimento da seleção nacional, trabalhador incansável no sentido de que o futebol português se colocasse ao nível do que acontecia nos outros países da Europa, sobretudo nas suas vertentes organizativas. 

A comitiva nacional antes
partida para Amesterdão
Como já referimos, a comitiva nacional embarcou no Sud Express (comboio) rumo a Amesterdão no dia 22 de maio de 1928. Largas centenas de pessoas foram à gare do Rossio saudar e endereçar votos de “boa sorte” aos “embaixadores” do futebol nacional. A partida foi entusiástica, calorosa e vibrante. Os aplausos da multidão só pararam de se ouvir quando o comboio desapareceu de vista na escuridão do túnel do Rossio. O país – ainda que representado por algumas largas dezenas de entusiastas que marcaram presença no momento do embarque – depositava uma entusiasmante esperança em António Roquete (Casa Pia), Carlos Alves (Carcavelinhos), Jorge Vieira (Sporting), Raul “Tamanqueiro” Figueiredo (Benfica), Augusto Silva (Belenenses), César de Matos (Belenenses), José Manuel Soares “Pepe” (Belenenses), Vítor Silva (Benfica), José Manuel Martins (Sporting), Cipriano dos Santos (Sporting), Jorge Tavares (Benfica), Liberto dos Santos (União de Lisboa), Alfredo Ramos (Belenenses), Armando Martins (Vitória de Setúbal), João dos Santos (Vitória de Setúbal), Aníbal José (Vitória de Setúbal), Óscar de Carvalho (Boavista) e Valdemar Mota (FC Porto). Estes eram os heróis nacionais do povo português, os jogadores que iriam defender a pátria no então palco principal do futebol mundial. Com estes seguiam Salazar Correia, Ribeiros dos Reis e Cândido de Oliveira, que além de jornalistas integravam igualmente os quadros da Federação Portuguesa de Futebol, aos quais se haveria de juntar, em Paris, o tenente-coronel Manuel Latino, membro do Comité Olímpico de Portugal. 

A viagem até Amesterdão durou 40 horas (!), tendo pelo meio a comitiva lusa feito uma escala em Paris, onde pernoitou antes de assentar arraiais na Holanda. Chegados ao país da Tulipas – cerca das 22H00 do dia 24 de maio – ecos de descontentamento desde logo se fizeram ouvir pelos jogadores lusos em consequência da verdadeira espelunca em que foram despejados. As dormidas eram no Holland Hotel, ao passo que as refeições eram servidas no Hotel Suisse. Quartos pequenos e comida má, eram queixas recorrentes dos guerreiros lusos. O primeiro treino da seleção em solo holandês ocorreu – no dia seguinte – no campo do Ajax, clube este cujo massagista foi contratado pela nossa federação para tratar da saúde física dos nossos rapazes. Ainda no dia 24 a FIFA realiza em Amesterdão um congresso, tendo o seu mítico presidente, Jules Rimet, recebido das mãos da rainha Guilhermina (da Holanda) uma condecoração na sequência dos serviços prestados em prol da dinamização do futebol planetário. Rimet agradeceu, cumprimentou todas as delegações presentes e falou na união de todas as nações através do desporto e do futebol em particular. Estavam lançadas as sementes do que viria a ser uma realidade dois anos depois: o nascimento do Campeonato do Mundo da FIFA. O sonho de Jules Rimet estava a caminho. 

Fase do duro
duelo com o Chile
O sorteio do torneio olímpico ditou que o estreante Portugal teria de enfrentar outra seleção nova nestas andanças internacionais: o Chile, numa pré-eliminatória. Feita à adaptação ao “excelente relvado” - segundo nota dos responsáveis técnicos lusos – do Olímpico de Amesterdão, a seleção entrou em ação no dia 27. Sob arbitragem do egípcio Mohamed, Portugal alinhou com: Roquete, Carlos Alves, Jorge Vieira (capitão de equipa), Raul Tamanqueiro, Augusto Silva, César de Matos, Valdemar Mota, Pepe, Vítor Silva, Armando Martins, e José Manuel Martins.
No caminho para o estádio o entusiasmo reinava entre os portugueses. Ainda no hotel, antes da entrada no autocarro que os iria conduzir ao Olímpico de Amesterdão, a comitiva entuou a “Portuguesa”, um ato sentimental e de profunda emoção conforme foi descrito pelos presentes  como um sinal de união e determinação em defender de forma briosa a pátria. O pontapé de saída do encontro ante os chilenos foi dado às 15H00, e desde cedo os sul-americanos atacaram energicamente a baliza de Roquete, sendo que logo ao minuto três abriram o marcador. 

O genial Pepe
Os portugueses pareciam nervosos, cometendo vários erros, e apercebendo-se desse facto aliado à vantagem que tinham no marcador, os chilenos continuariam a carregar no acelerador e aos 14 minutos ampliam a vantagem. Depois disto, abrandaram o ritmo e Portugal acordou! O génio de Pepe começou a aparecer pela ala esquerda. Os lusos começaram a atacar com mais perigo, tendo construído e perdido algumas ocasiões flagrantes de golo. Vítor Silva é um dos perdulários. Os centro campistas chilenos usaram e abusaram da dureza, tendo Armando Martins por duas ocasiões sido vítima da extrema agressividade dos sul-americanos, tendo numa delas tido sido transportado em braços para fora do terreno de jogo. Reduzidos momentaneamente a dez elementos os portugueses não tremem, mas numa perigosa investida chilena valeu a atenção e mestria – na tarefa de bem defender a baliza – de Roquete com um espetacular mergulho a evitar o terceiro. E eis que já com Armando Martins em campo, o até então desinspirado avançado Vítor Silva começa a redimir-se e na sequência de um magistral cruzamento de Pepe reduz, aos 38 minutos, a desvantagem lusitana.
O golo animou as hostes portuguesas e dois minutos volvidos Pepe dá o melhor seguimento a um cruzamento de César de Matos e restabelece a igualdade com que se atingiu o intervalo. 

A segunda parte foi inteiramente dominada pelos portugueses. Na sequência de um canto, a bola é aliviada para longe da zona de perigo, mas José Manuel Martins recupera o esférico a favor dos lusitanos, cruzando em seguida para a cabeça de Pepe endereçar o esférico para o interior da baliza à guarda de Ibacache. 3-2 e pela primeira vez Portugal estava na frente do marcador. O Chile corre então atrás do prejuízo, mas sem sucesso dada muralha que se ergueu no meio campo português. Aos 63 minutos um magnífico passe do belenense Pepe para o portista Valdemar Mota resultou no quarto golo da nossa seleção. Após driblar três chilenos Mota fuzila a baliza contrária. Já sem forças, os sul-americanos ainda esboçam uma ténue intenção de voltar a violar a baliza de Roquete, mas tal intenção não chegou a constituir perigo para o nosso onze, que defendeu com “unhas e dentes” o seu goal . E assim chegava o final, com 4-2 a favor dos nossos rapazes, que desta forma avançavam no torneio, enviando os chilenos para o torneio de consolação (uma espécie de competição destinada às seleções derrotadas na pré-eliminatória e na 1ª eliminatória.  

Mais um lance de perigo no jogo de estreia dos lusos
A imprensa destaca o magnífico António Roquete, que salvou a baliza lusa em várias ocasiões; o formidável Raul Tamanqueiro, cujos dribles diabólicos fizeram as delícias dos cerca de 2,300 espetadores presentes; e o brilhante Pepe, o melhor entre os homens mais avançados da seleção. Na bancada estava presente um dos mais brilhantes pensadores (táticos) do futebol mundial daqueles anos, o austríaco Hugo Meisl, o criador do Wunderteam (equipa maravilha) da Áustria dos anos 20, e que impressionado com a qualidade dos portugueses neste jogo tratou de oficializar um convite para que Portugal visitasse a sua nação logo após o torneio olímpico para um match amigável. Nessa mesma noite o cônsul de Portugal em Amesterdão, Barjona de Freitas, organizava uma pequena festa em honra da equipa nacional, que tão orgulhosa deixara a nação após este épico triunfo. Cá pelo burgo, eram muitos os portugueses que se juntavam junto às redações dos principais jornais (em Lisboa os principais locais de afluência eram o Rossio e a Praça do Comércio) para saber novidades de Amesterdão. Numa época em que as transmissões/relatos de jogos de futebol tanto na televisão como na rádio eram ainda uma miragem, os jornais iam dando as informações – que lhes chegavam por telégrafo – do que ia acontecendo no Estádio Olímpico de Amesterdão através de placards gigantes. E assim que foi dada a informação do resultado final, a multidão explodiu de alegria. Melhor estreia na alta-roda internacional, Portugal não poderia ter tido.
(continua)

quinta-feira, junho 14, 2018

Histórias do Futebol em Portugal (19)... Memórias de uma primeira vez na alta roda do futebol internacional (1.ª parte)

Seleção portuguesa que marcou presença
nos Jogos Olímpicos de Amesterdão 1928
Se hoje em dia Portugal se apresenta perante a aldeia global futebolística como uma potência temida e respeitada, há quase um século atrás – 90 anos, para sermos mais precisos – a nação lusa não passava de uma mera e desconhecida aprendiz nos principais palcos do belo jogo planetário. Esta introdução faz-nos viajar precisamente 90 anos na cápsula do tempo, até ao ano de 1928, altura em que Amesterdão centrava em si os olhos do Mundo na sequência do acolhimento das Olimpíadas desse ano. Largas centenas de atletas vindos de vários pontos do globo assentaram arraiais naquela cidade holandesa em busca do endeusamento olímpico nas mais variadas modalidades. Entre elas, estava o futebol, que levou a Amesterdão (alguma da) a nata (de então) da modalidade, valorosos futebolistas atletas que iriam lutar entre si pelo trono da então maior competição futebolística do Mundo.

Cartaz oficial dos Jogos de 1928
Será importante sublinhar que na altura o torneio olímpico de futebol era a maior competição do planeta no que ao Desporto Rei concerne, a qual de quatro em quatro anos juntava as melhores seleções do globo. Isto porque nem o Campeonato do Mundo nem o Campeonato da Europa haviam visto a luz do dia. Vencer os Jogos Olímpicos era o equivalente a vencer um Mundial nos dias de hoje. O mediático sucesso dos torneios anteriores – Antuérpia 1920 e Paris 1924, sobretudo este último – elevou a fasquia de interesse em torno da competição que decorreu na Holanda entre 27 de maio e 10 de junho de 1928. Em campo iriam estar alguns dos pesos pesados do futebol planetário de então, casos de uma Itália que viria a dominar o Mundo na década seguinte – com a conquista de dois Mundiais consecutivos (1934 e 1938) –; da vice-campeã olímpica de 1920, a Espanha; ou das potências sul-americanas Argentina e Uruguai, sendo que estes últimos chegavam a Amesterdão como detentores (em título) do ouro olímpico – conquistado de forma época quatro anos antes em Paris. Os uruguaios eram por aqueles dias olhados como a maior potência do futebol global. Nos Jogos Olímpicos de 1924, esta pequena nação sul-americana (com apenas 3 milhões de habitantes) havia apresentado do Mundo os seus magistrais intérpretes do belo jogo, apresentando ao público parisiense um jogo alegre, solto, e tecnicamente atrativo, mais parecendo que o "onze charrúa” bailava ao som de um tango de Carlos Gardel.

A mítica seleção do Uruguai que iria vencer
o torneio olímpico pela segunda vez consecutiva
Na retina daqueles que presenciaram o torneio olímpico de 24, ficaram os bailados futebolísticos de nomes como Pedro Cea, Hector Scarone, José Nasazzi, Pedro Petrone, e de um tal José Leandro Andrade, um negro que haveria de sair destes Jogos Olímpicos endeusado pelo povo da capital francesa. O torneio de futebol das Olimpíadas de Amesterdão não foi mais do que a confirmação daquilo que se visionara em Paris 1924, por outras palavras, o Uruguai enquanto a seleção mais poderosa do Mundo. Amesterdão 1928 foi pois como a segunda parte de uma das mais belas e poéticas histórias futebolísticas, a história de uma talentosa equipa que mostrou ao globo que o futebol poderia ser jogado de uma maneira artística e atraente, bem diferente do famoso kick and rush inglês interpretado pela esmagadora das seleções e/ou clubes do então planeta da bola.

Gravura do Espanha - Portugal de 1921
(o primeiro jogo da seleção portuguesa)
Mas entre a elite do futebol global que viajou para a Holanda estava uma nação que dava os primeiros passos a nível internacional e cujo futebol – em termos de popularidade – crescia significativamente no plano interno. Portugal! Seleção que contrariamente a potências como Espanha, Itália, Argentina ou Uruguai apenas havia feito o seu batismo na alta roda internacional menos de sete anos antes (dezembro de 1921) num particular com nuestros hermanos, em Madrid, saldado por uma honrosa derrota – atendendo ao poderio do adversário – por 3-1.
Desde então, a seleção nacional fazia um percurso que podemos chamar de aprendizagem e ao mesmo tempo de afirmação na senda internacional, colecionando alguns resultados dignos de sublinhar que o futebol português tinha valor e que com um pouco mais de organização (interna) e prática (internacional) talvez fosse possível ombrear com os melhores. Isso, foi possível ver-se, a título de exemplo, em junho de 1925, quando no Campo do Lumiar (Lisboa) a nossa seleção derrotou (1-0) a poderosa Itália onde despontavam futuros campeões mundiais como Giampiero Combi, Gino Rosetti, ou Umberto Caligaris; ou os valorosos empates com potências como a Checoslováquia – em 1926 –; Hungria – também em 26 –; ou a Espanha liderada pelo lendário guarda-redes Ricardo Zamora – que em janeiro de 1928 não conseguiu levar de Lisboa melhor do que uma igualdade a uma bola.

Até aqui, Portugal disputara somente encontros amigáveis, 15 para sermos precisos, pelo que em Amesterdão iria ser o primeiro grande teste oficial no plano internacional para um futebol português que no plano interno apresentava algumas carências, apesar do crescimento em termos de popularidade em torno da modalidade.
No aspeto competitivo, o centro do nosso futebol estava em Lisboa, Porto, Algarve e Setúbal, onde se disputavam os campeonatos (regionais) mais importantes e acima de tudo competitivos. Nas outras regiões do país, a competição tinha ainda pouca expressão, ou quase nenhuma. Apesar de ainda ser algo limitado, em termos estruturais, o que é certo é que o futebol não havia envergonhado o país no plano “além fronteiras”, e mesmo nas derrotas havia mostrado valentia e valor que deixavam antever um futuro promissor. 

(continua) 

domingo, junho 10, 2018

Histórias do Planeta da Bola (21)... O inglês que “furou” o boicote da Inglaterra aos três primeiros Mundiais da história


O inglês George Moorhouse
O estatuto de inventores do futebol (moderno) auto-conferiu aos ingleses durante anos a fio um misto de superioridade e arrogância face ao resto do Mundo – no que a futebol diz respeito. A convicção de que “não só fomos nós que inventámos o futebol como também o ensinámos a jogar ao resto do Mundo” fez com que os súbitos de Sua Majestade tivessem vivido fechados no seu casulo ao longo de cerca de três décadas em relação ao que se passava no restante globo futebolístico em termos organizacionais. E quando falamos em termos organizacionais referimo-nos à participação inglesa em grandes competições inter-continentais, organizadas sob a égide de uma entidade internacional que chamasse a si a missão de tutelar o futebol a nível planetário. 
Para os ingleses, isso seria uma estocada no seu orgulho e vaidade autoritária de donos e senhores do belo jogo
Esta posição fez com que ignorassem por completo a ideia de Robert Guérin, jornalista (francês) do Le Matin, de Paris, e secretário do Departamento de Futebol da União Francesa de Desportos, que em 1902 iniciou contactos com algumas associações (ou federações) nacionais de países como a Espanha, a Holanda, a Suécia e a Dinamarca no sentido de criar uma organização internacional que tutelasse o futebol a nível mundial.

Robert Guérin
Reza a história que Guérin terá ido a Londres apresentar – e propor – a ideia a Lord Kinnard, o então presidente da Football Association – Federação Inglesa de Futebol. Os ingleses ignoraram por completo esse movimento, que a 24 de maio de 1904 ganhou contornos de realidade com a fundação da FIFA.
Reunidos em Paris, na Rue Saint Honoré, nº 229, representantes das associações nacionais de França, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça fundaram nesse dia a FIFA.
De pronto foram encetados convites a outras associações/federações nacionais para integrar o recém-criado organismo internacional – para o qual Robert Guérin foi nomeado presidente –, entre eles a Inglaterra, que além de (continuar a) recusar a integração nesta nova entidade, não a reconhecia oficialmente. Inclusive, e já depois de a FIFA ter visto a “luz do dia”, a Football Association (FA) reuniu em Londres várias associações nacionais com o intuito de mostrar “quem continuava a conduzir os destinos do futebol planetário”.
A FA tinha por estes dias associadas a si federações dos Estados Unidos da América, Chile, ou Argentina, criando assim um autêntico braço de ferro com a FIFA. A renitência por parte dos ingleses em reconhecer esta federação como a entidade máxima do futebol internacional durou até 1906, quando em Berna o inglês Daniel Burley Woolfall foi nomeado presidente do organismo, sucedendo no cargo a Guérin.

A primeira sede da FIFA, em Paris
Este facto, fez com que a Inglaterra recuasse na sua resistência em aderir à FIFA, algo que efetivamente aconteceu nesse ano de 1906. 
Com Woolfall no poder os ingleses sentiam-se novamente senhores do futebol planetário. 
O então presidente da FIFA teve um papel decisivo não só na internacionalização das leis do jogo, como também na criação daquela que é talvez a primeira grande competição internacional de futebol e que esteve na génese da idealização do atual Campeonato do Mundo da FIFA: o torneio olímpico de futebol. 
Competição que foi inserida nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908, e que até à criação do Mundial FIFA foi a prova mais importante do futebol planetário ao nível de seleções – pese embora a FA tenha controlado as operações do primeiro torneio olímpico de futebol oficial, denotando aqui uma autoridade arrogante sobre a FIFA.
Com a morte de Woolfall, em 1918, a Inglaterra voltou a afastar-se da FIFA, numa altura em que o organismo internacional passava por uma fase conturbada da sua curta existência, como consequência dos “estilhaços” provocados pela I Guerra Mundial.

Jules Rimet: o pai do Campeonato do Mundo
O braço de ferro entre Inglaterra e FIFA voltava a ser uma realidade, um divórcio que desta feita iria durar um pouco mais no tempo: 28 anos! Durante este período (desde 1921) , um visionário surgiu na liderança da FIFA. O seu nome era Jules Rimet. Este francês revolucionou o Mundo do futebol em vários aspetos, sendo o mais sonante, quiçá, a criação do Campeonato do Mundo. O sonho de Rimet tornou-se realidade em 1930, quando o Uruguai acolheu a primeira edição daquele que é hoje o maior evento desportivo planetário. Os índices de popularidade (crescente) da competição ficaram bem patentes nas três primeiras edições, de tal forma que em 1946, finalmente, os ingleses saíram do seu “casulo”, percebendo – e admitindo – que perante o crescimento da FIFA e da importância e dimensão que o seu Campeonato do Mundo já havia atingido, o melhor seria mesmo voltar a juntar-se à entidade que tutelava o futebol planetário. Até porque, chegaram à conclusão que para provar a sua condição de mestres do jogo teriam de enfrentar as suas congéneres mundiais na competição idealizada e criada pela FIFA.

O cromo de Moorhouse nos
tempos do Tranmere Rovers
Esta (longa) introdução leva-nos à nossa paragem histórica de hoje, no sentido de recordar o inglês que “furou” o boicote da Inglaterra aos três primeiros Mundiais da história. George Moorhouse, o seu nome. Quando em 1950 a seleção inglesa aterrou no Brasil para ali disputar o seu primeiro Mundial, já Moorhouse o havia feito 20 anos antes no Uruguai, ao serviço da seleção norte-americana. Este cidadão nascido em Liverpool a 4 de abril de 1901 tem assim pois um lugar reservado na História por ter sido o primeiro inglês a competir num Campeonato do Mundo muito antes de a sua pátria natal o ter feito!
Combatente na I Guerra Mundial, Moorhouse começou por defender – enquanto profissional – a camisola do Tranmere Rovers, pese embora o tenha feito sobretudo ao serviço das reservas do clube de Merseyside, entre 1921 e 1923. Com poucas oportunidades para mostrar o seu valor, George Moorhouse – que no terreno de jogo atuava como lateral-esquerdo – atravessou o Atlântico, rumo ao Canadá, com o intuito de encontrar uma vida melhor num continente (americano) que aos olhos dos europeus se afigurava como a “terra prometida”, bem diferente de uma Europa que por estes dias tentava curar as feridas provocadas pelo primeiro grande confronto bélico da História.

Moorhouse chegou ao Canadá em 1923, tendo ali representado – ainda que de forma amadora – os Pacific Railway, uma equipa constituída por elementos ligados aos caminhos de ferro da região do Quebec. E se em Inglaterra o talento do nativo de Liverpool havia passado praticamente despercebido, na América do Norte tal não viria a acontecer. Após um par de jogos ao serviço dos Pacific Railway, o jogador inglês impressionou um dos grandes impulsionadores do soccer norte-americano dos anos 20, Nat Agar, também ele um inglês de berço que enquanto futebolista viveu os primeiros passos da modalidade em Terras do Tio Sam, sendo que enquanto dirigente esteve na génese da fundação da United States Football Association, em 1913.
Além de figura influente do soccer, Agar era igualmente o proprietário dos Brooklyn Wanderers, tendo de pronto convidado Moorhouse para se juntar à sua equipa. Assim foi. A aventura do cidadão de Liverpool no clube de Agar duraria somente um par de meses, pois ao fim de quatro soberbas exibições, George Moorhouse tinha Nova Iorque a seus pés. Foi então que aquele que era para muitos o maior emblema da Big Apple – e um dos maiores de toda a América – de então seduziu o habilidoso full-back para os seus quadros. Corria o (final de) ano de 1923 quando os New York Giants contrataram Moorhouse. Nos Giants, o inglês tocou a fama, tornando-se num dos mais reputados futebolistas da América nos anos 20, precisamente na chamada Golden Era (Era Dourada) do soccer estado-unidense. Defendeu o clube ao longo de sete temporadas ao mais alto nível, o mesmo é dizer na American Soccer League, a principal competição nacional dos States de então, tendo disputado por este emblema um total de 241 jogos e apontado 46 golos, registo impressionante para um lateral-esquerdo.

A "cortina de aço" yankee:
Wood, Douglas e Moorhouse
Em 1930, Moorhouse deixou os Giants, tendo atuado nos sete anos seguintes noutros emblemas nova-iorquinos, como os Yankees – equipa sem qualquer ligação aos New York Yankees do basebol – ou nos New York Soccer Club. Mas foi precisamente em 1930 que a história de Moorhouse conheceu o seu capítulo mais sonante. 
Ele foi um dos 16 selecionados de Bob Millar (treinador) para efetuar a viagem pelas águas do Atlântico rumo à América do Sul, no sentido de defender as cores da bandeira da América na primeira edição do Campeonato do Mundo da FIFA.
A estreia de Moorhouse pelo combinado nacional havia-se dado quatro anos antes, tendo o Canadá sido atropelado por concludentes 6-1 num encontro particular. Julho de 1930 entra na história do desporto planetário como o mês em que em Montevideu foi dado o pontapé de saída do sonho de Jules Rimet: o Campeonato do Mundo. Moorhouse estava lá, e juntamente com outros extraordinários futebolistas como Bart McGhee, Bert Patenaude, Jimmy Douglas, Tom Florie ou o luso-americano Billy Gonsalves conduziu a seleção yankee à melhor performance de sempre num Mundial FIFA: o 3.º lugar. Goerge Moorhouse, o guarda-redes Douglas e o defesa Alexander Wood foram apelidados pela imprensa sul-americana (presente no evento) como a “cortina de aço”, pela solidez com que fechavam os caminhos da sua baliza, enquanto que lá na frente Florie, Patenaude, McGhee e Gonsalves tratavam de atormentar os defesas adversários.
Seleção norte-americana que participou no Mundial de 1930
Mas, a aventura yankee começou com vincadas desconfianças e aguerridos protestos por parte dos adversários. Cerca de uma semana após a chegada a Montevideu, ocorrida no dia 1 de julho, os norte-americanos foram obrigados a dar uma conferência de imprensa na sequência de uma denúncia da delegação belga – precisamente o primeiro opositor da seleção de Bom Millar no torneio –, a qual apontava ilegalidades sobre a nacionalidade de alguns jogadores yankees. Os belgas acusavam os norte-americanos de incluírem no seu grupo atletas de vários países europeus, acusação refutada pelos responsáveis yankees, que explicaram – na dita conferência de imprensa – que apesar de seis dos seus 16 jogadores terem nascido na Europa haviam já adquirido nacionalidade norte-americana. Como senão bastasse o ataque belga também a imprensa brasileira lançou alguma lenha para fogueira, ao dizer que o principal craque dos States era… português! Tratava-se de Billy Gonsalves, filho de portugueses – nascidos na Madeira – mas que na verdade havia nascido em Portsmouth (Rhode Island) dois anos após a chegada dos seus progenitores a Terras do Tio Sam. Tal como Gonsalves, outros jogadores tinham descendência europeia, embora tenham nascido nos Estados Unidos da América, casos de Tom Florie (filho de italianos) e Bert Patenaude (filho de emigrantes franceses). Estrangeiros naturalizados a seleção norte-americano tinha seis atletas, todos eles nascidos na Grã-Bretanha, nomeadamente os escoceses Alexander Wood, Bart MacGhee, Jimmy Gallagher, Andy Auld, James Brown e o inglês George Moorhouse.

Alguns historiadores apontam que esta desconfiança e suspeita sobre a seleção yankee remonta ao facto de que o poderio (monetário) do soccer daquele país nos anos 20 fez atrair grandes estrelas do futebol europeu, que não só procuravam na América um nível de vida melhor, mas sobretudo tentavam fugir da Guerra que assolava o Velho Continente. Atletas provenientes da Inglaterra, Escócia, Áustria, Hungria, Itália, ou Alemanha emergiram em vários clubes norte-americanos durante a referida década de 20 – a Golden Era do soccer estado-unidense –, fazendo inúmeras digressões não só pelo continente americano como também pela Europa.
Ora, terá sido esta multiculturalidade que vigorou durante anos no futebol dos States que levou outros países a desconfiarem da “originalidade” da seleção estado-unidense no primeiro grande torneio da FIFA. Certo é que no dia 13 de julho os Estados Unidos da América tinham a honra de dar o pontapé de saída do primeiro Campeonato do Mundo da história, quando no Parque Central de Montevideu enfrentaram a Bélgica – no mesmo dia e na mesma hora, também jogaram as seleções de França e México no Estádio de Pocitos.

Fase do jogo entre EUA e Paraguai
Moorhouse estava lá, na line-up inicial dos States, que iriam vergar os belgas a uma derrota por 3-0. Quatro dias mais tarde voltou a ser titular em mais um momento de glória da nação que o acolheu em 1923, ao ajudar a derrotar o Paraguai também por concludentes 3-0 – com a particularidade dos três golos serem da autoria de Patenaude, que assim se tornava no primeiro jogador da história a fazer um hattrick em Mundiais. Com isto, os Estados Unidos da América seguiam para as meias-finais, onde viriam a cair com estrondo aos pés da poderosa Argentina, por 6-1, diante de 112,000 espectadores no majestoso e recém-construído Estádio Centenário.
O facto de a Jugoslávia – derrotada na outra semi-final ante os futuros campeões mundiais, do Uruguai – se ter recusado a disputar o encontro de atribuição dos 3.º e 4.º lugares conferiu aos norte-americanos a medalha de bronze, o que ainda hoje constitui o melhor resultado numa fase final de um Mundial de uma nação que sonha um dia vir a ser a número 1, como em tantas outras modalidades.

Porém, a aventura de Moorhouse com a seleção prolongar-se-ia até ao Mundial seguinte, realizado em Itália, em 1934, tendo o inglês (naturalizado) sido novamente selecionado e nomeado – desta feita – como capitão de equipa. Apesar de o combinado agora às ordens do escocês David Gould incluir algumas lendas do Mundial anterior, como Gonsalves, Florie, Jimmy Gallagher e o próprio Moorhouse, o que é certo é que os States cedo saíram da competição, após serem esmagados por 7-1 pela equipa da casa, na primeira ronda de eliminatórias.
Após a saída do futebol, George Moorhouse continuou a viver no país que lhe abriu as portas do belo jogo ao mais alto nível, a nação que o tirou do anonimato das reservas do Tranmere Rovers e que lhe concedeu a honra de figurar no National Soccer Hall of Fame, privilégio só concedido aos grandes ícones do soccer.
Faleceu a 13 de julho de 1982, curiosamente o mesmo em que meio século antes havia entrado na história ao “antecipar-se” à sua pátria natal na participação num Mundial FIFA.