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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.: O PASSEIO DA SOMBRA

O narrador depara-se com uma sombra azulácea deambulando pelas ruas da cidade, sem o corpo correspondente. Segue-a, e testemunha a abordagem daquela a uma jovem com quem se cruza. Percebendo a perturbação da rapariga, seguindo a sombra o seu caminho, estabelece diálogo com ela, e confirma: não apenas viram ambos a sombra, como esta pertence(u) a uma pessoa querida da transeunte, o seu noivo, morto na guerra por uma carga de obus. O narrador esforça-se por continuar no encalço daquele espectro singular; quando este pára sobre um canteiro de flores, como que aspirando o perfume que exalavam, repara no seu perseguidor, estabelecendo com ele uma muda comunicação, que acabará no cemitério, à beira do túmulo do corpo que lhe pertencera. O remate final do conto faz uma optimista profissão de fé: a morte não mata a memória de nós nos outros...
O que sucede quando estes outros, por sua vez, deixam o mundo dos vivos, isso já não coube nessas linhas.

o incipit: «Era um pouco antes do meio-dia.»
um parágrafo: «Recuei de imediato com medo de pisá-la. Receava fazer-lhe mal. Sentia uma piedade imensa pelo abandono. Mas, de repente, num acto de correspondência inexplicável, pareceu-me que ela me dava a entender que era feliz, e que os seus soluços outra coisa não eram que soluços de ventura, que havia nela uma vida imortal que lhe permitia sobreviver ao corpo desaparecido e enlear-se em tudo o que este havia acarinhado. A felicidade dessa sombra era feita da sua presença nesses locais que havia frequentado.»

Guillaume Apollinaire, «O passeio da sombra», O Rei Lua [1916], tradução de Luís Alves da Costa, Lisboa, Vega, s.d., pp. 67-71.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

um sorriso de inescrutável contentamento

«O corpo foi exposto, em caixão aberto, na capela. O Rev.º Heathcote ajoelhou ao lado, a rezar. Amphillis e eu fomos trazidos para o ver. O tio estava branco como o marfim, mas não mais pálido do que fora em vida. Havia um sorriso de inescrutável contentamento no seu rosto, e parecia dormir feliz, como alguém de posse de um precioso segredo, que confiadamente aguarda um auspicioso acontecimento.»

Maurice Baring, O Trono e o Altar (1930)
tradução: Jorge de Sena

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

como se fora nada

«Saberão qualquer coisa sobre o meu fim? Um vestido perfurado por balas, manchado de sangue, um nome riscado nos registos do campo: foi assim que soubemos qual fora o destino de outras desaparecidas na noite.»

Geneviève de Gaulle Anthonioz, A Travessia da Noite (1998)
tradução: Artur Lopes Cardoso