Grande literatura é isto: domínio da palavra a benefício da narrativa, espessa, sumarenta, cheia de coisas a dizer e de indícios doutras que ficam por enunciar. Estórias e estorietas, há muito quem conte, alguns até reputados de bons escritores; mas O que Diz Molero (1977) é a história, narrada de forma múltipla, dum escritor de obra escassa, sete títulos, três dos quais sob o pseudónimo Dennis McShade.
Li-o por volta de 1983, e voltei agora a ele, no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro. Por esse então, final da adolescência, apesar de muitas referências me escaparem -- que não as da BD (Dinis Machado terá sido o único escritor português a ter aposto numa obra literária os nomes de Zig e Puce...) ou as dos Westerns de John Ford; é um livro cheio de cinema (até na prosa) e quadradinhos --, havia também uma memória que me era familiar: o imaginário lisboeta das décadas de 1930-1940, que me foi transmitido pelo meu pai, da mesma geração do autor: as figuras populares, suas alcunhas e seus maneirismos; a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial, o modo como eram ansiosamente seguidas e as próprias implicações sociais e políticas desses dois cataclismos entre nós; o cinema de Hollywood e os filmes em 31 partes do Flash Gordon; os comics americanos, Dick Tracy e Mandrake, os combates de boxe... Referências pulp e eruditas, de Camilo Pessanha a Jorge Luis Borges, fluindo naturalmente, porque reflexo da vida e da vivência. Não sei se algum vez um livro me deu tanto prazer a reler.
A verdade é que em que O que Diz Molero a prosa é rigorosamente vigiada e calibrada, tão fundamental quanto o inventário da infância se presta a todas as derrapagens do sentimentalismo : não há lamechice, mas ternura, um humor terno e nunca boçal.
Nota aos jovens leitores: tem até vampiros... -- não daqueles de ecrã, que ocupam os escaparates dos híperes, mas o tenebroso "Vampiro Humano", tenebroso para o rapaz(o protagonista do romance, ou um dos protagonistas) e para os seus amigos de correrias e partida pelo Bairro.