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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

leituras de 2014 - #10 A LÃ E A NEVE



O fio da narrativa expõe-se numa penada: Horácio pastor de Manteigas, abrira os olhos para outras realidades que não a vida elementar que transcorria entre as faldas da Estrela e os redis nas aldeias, na sequência do serviço militar cumprido nos arredores de Lisboa, mais precisamente em Cascais. Decide, então, adiar o casamento com Idalina, previsto para ser celebrado após a tropa -- e mudar de vida. Quer tornar-se operário têxtil, ali mesmo, em Manteigas, ou na Covilhã, centro mais importante, única possibilidade que vê para fugir à pobreza que confina aquelas existências.
Após percalços vários, que tornam a narrativa coerente, segue-se a entrada num mundo diferente, em que a consciência de pertença a uma classe socialmente bem delimitada, o proletariado, irá mudar, paulatina mas radicalmente, a forma como o protagonista se vê a si próprio no mundo.
Publicado em 1947, A Lã e a Neve levanta múltiplas questões no âmbito histórico-cultural, das quais só enumero algumas, e brevemente.
1. A circunstância de A Lã e a Neve ser um romance neo-realista heterodoxo: Ferreira de Castro, visceralmente libertário, anarquista por formação, convicção e coração, não acolhe a doutrinação canónica marxista-leninista, largamente teorizada a partir de meados da década de 1930. A vanguarda da classe operária aqui não tem ligações ao Partido [Comunista Português]; antes é protagonizada por  abencerragens do sindicalismo anarquista e revolucionário que caracterizou o movimento proletário organizado durante a I República: o "Marreta" -- esperantista e vegetariano -- e os que lhe estão próximos.
2. Apesar de referenciado como livro subversivoA Lã e a Neve é um romance fortemente político, de oposição que não foi apreendido nem o seu autor ao que se saiba incomodado. Já por várias vezes me referi à particular circunstância política de 1947, de suavização da ditadura em face da vitória aliada na II Guerra Mundial. Por outro lado, o reconhecimento grande que Castro tinha no estrangeiro, muito em especial em França, terá sido, de certo modo dissuasor de medidas repressivas, dado o contorno de escândalo de que se revestiria. Finalmente, e escrevo isto pela primeira vez, não posso deixar de especular (embora a pertinência deste alvitre esteja por demonstrar), o caso curioso de a editora de Ferreira de Castro, a filha de Delfim Guimarães, Maria Leonor da Cunha Leão, ser casada com Francisco da Cunha Leão, um intelectual conotado com o regime e seu funcionário superior.
3. Deixando a história político-cultural, sublinho os recursos estilísticos do escritor, as suas poderosas descrições e a mestria ficcional, que confirmam as dos romances anteriores, e de que o episódio da tempestade de neve será, possivelmente, uma das mais extraordinárias aflorações em todo o romance. Acresce a espesssura psicológica das personagens -- também sem surpresa para quanto já estavam familiarizados com os seus romances.

Poderia soltar mais uns milhares de caracteres a propósito deste livro. Para não abusar, direi apenas que um romance como A Lã e a Neve pertence à categoria daquelas obras de arte que nos definem como cultura e civilização, como portugueses; e que Ferreira de Castro é membro, um dos mais brilhantes e representativos, daquela família de escritores que tem no seio espíritos como os de Júlio Dinis e Eça de Queirós até Alves Redol, Manuel da Fonseca ou José Saramago, passando por Aquilino Ribeiro e Raul Brandão.   5*****

Ficha:
Autor: Ferreira de Castro
título: A Lã e a Neve
editora: Guimarães Edtiores
local: Lisboa
ano: 1990~
edição: 15.ª
ano: 1990 [data da primeira edição: 1947]
impressão: Oficinas gráficas de Guimarães Editores, Lisboa
págs.: 358

sábado, 8 de junho de 2013

uma carta de Alberto d'Oliveira


imagem daqui
Ex.mos Srs.

Com muito prazer me associo à justa homenagem, que VV. tomaram a iniciativa de promover, à memória do nosso ilustre confrade Delfim Guimarães.
A-pesar-de sermos conterrâneos, só tive ocasião de o conhecer pessoalmente há poucos meses; e realizou-se êsse encontro em circunstâncias que não esqueci e que bem assinalam os raros dotes de coração e de carácter que, não menos que os da inteligência, caracterizavam a figura de Delfim Guimarães. Por isso as vou narrar aqui ràpidamente.
Em Outubro do ano passado foram convidados alguns amigos e admiradores de António Feijó a reünir-se no gabinete do Dr. Júlio Dantas, na Biblioteca Nacional, para deliberarem sôbre a realização do monumento que se projectava erigir ao insigne poeta minhoto na sua tão amada vila natal de Ponte do Lima. Estava eu então em Lisboa e, correspondendo ao apelo que me foi dirigido, compareci à reünião. Quasí ao mesmo tempo que eu chegava também, pelo braço do nosso comum amigo Dr. Araujo Lima, um homem de fisionomia atraente, mas parecendo muito doente e exausto de fôrças, que logo depois soube ser Delfim Guimarães. Vinha arquejante de ter subido a longa escadaria do velho convento fransciscano e mal podia falar quando entabolámos conversa.
Referiu-se ao seu estado de saüde com a tristeza de quem lhe conhecia a gravidade: e com efeito, de vê-lo e ouvi-lo. fiquei comovidamente certo de que êle já não tinha senão um fio de vida. Meses depois êsse fio partia-se sem nenhuma surpreza minha.
Mas o que aumentou nesse momento a minha comoção foi ver Delfim Guimarães, que me parecia agonizante, tomar parte tão efectiva e dedicada naquela reünião dos amigos de um poeta morto e valorizar essa adesão não só com a sua presença num lugar de acesso tão penoso e até perigoso para a sua saüde, como pelo oferecimento, que se apressou a fazer com calor, dos seus serviços e préstimos, para que o projecto em discussão não tardasse a converter-se em realidade.
Êsse homem tão vizinho da morte, e sabendo-o, que se esquecia completamente de si para se votar tão afanosa e desinteressadamente ao culto de outro poeta, que já só existia na memória dos que o amaram e admiravam, não era certamente do número daqueles para quem se fez o moto: «Les morts vont vite». Mas, e ainda melhor, também não era daquelas numerosas almas a quem o egoísmo, se as não dominou sempre, acaba por vencer, de tal modo o instinto de conservação é preponderante e quasi legítimo no homem. Aquele poeta sofria de grave doença do coração: mas o seu coração, quasi sem corda, estava moralmente intacto e vigoroso e continuava a bater com a mesma pontualidade e carinho pelos seus amigos vivos ou mortos.
VV. acharão talvez, como eu, que êste singelo facto que lhes ofereço retrata com justeza as feições morais de Delfim Guimarães. Se assim é, queiram incluí-lo no seu In Memoriam e aceitem os mais atenciosos cumprimentos do

                                                De VV. confrade muito de dicado e obrigado

                                                                     Alberto d'Oliveira
Bruxelas, 22 de Agosto de 1933.

In Memoriam de Delfim Guimarães -- 1872-1933, organizado por Galino Marques, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1934.