domingo, 28 de abril de 2013

um país de mortos-vivos

Picaresco e fantástico, A Torre da Barbela, de Ruben A., tem uma originalidade que lhe dá um lugar único no panorama romanesco português, tanto quanto me é dado saber. Calculo que a reacção no ano em que foi publicado (1964) deva ter oscilado entre o estranhamento e a indiferença, que é o que sucede a tudo que esteja fora dos cânones. Nem era romance psicológico à presença, nem neo-realista e muito menos procurava imitar os franceses do nouveau roman. Embora não me pareça a obra-prima que alguns nela vêem, tem o atractivo de ser iconoclasta para com o romance português da época, e é-o com humor. E o autor, recorde-se, além de escritor desalinhado do mainstream, era também historiador circunspecto, nomeadamente do século XIX, sabendo muito bem o que estava a fazer -- literária e até, digamos, politicamente.
Absolutamente marcante, portanto. O que esperar de uma catrefa de personagens de várias épocas que coexistem no mesmo espaço e interagem entre si? O guia burgesso e comerciante para turista entreter e, se possível, enrolar, situa-nos no espaço e no tempo; mas logo aparece um Menino Sancho, ser misterioso e disforme, e o lendário Cavaleiro da Barbela: «De cada túmulo, de cada sarcófago ou fosso anónimo eles iam saindo, meio estonteados pelos séculos da História»...
Leio aqui o Portugal profundo de então: um país de mortos-vivos.

sábado, 27 de abril de 2013

ÚLTIMAS PÁGINAS, de Eça de Queirós

Nas «Lendas de Santos» de Eça de Queirós (Últimas Páginas, 1912, edição póstuma organizada por Luís de Magalhães), biografias ficcionadas de santos. «São Cristóvão», aliás o único que o escritor concluiu, é um dos textos queirosianos que prefiro. Numa imprecisa Idade Média francesa, Cristóvão é um ser disforme (um gigante) e simples, cheio de amor para dar; amor forjado no conhecimento da incrível história do Menino-Deus, que por amor virá a morrer na cruz ("Cristóvão", o que tem Cristo em si...). De tal forma Cristóvão é possuído por esse amor ao semelhante, que nunca é abalado pelas inúmeras rasteiras e traições que lhe são infligidas pelos seus irmãos em humanidade; o mesmo amor e coração puro que, não suportando a miséria o leva a chefiar  jacqueries... Eça mantinha bem viva a leitura do seu Proudhon. Da narrativa desprende-se  um ambiente benfazejo e etéreo, no meio de guerra e de opressão do forte em relação ao fraco (a mesma atmosfera que se evola do magnífico «O Suave Milagre», trazendo-me à memória, por essa mesma atmosfera miraculosa do indizível «O Gigante Egoísta», do Oscar Wilde). 
Em Eça sempre adorei a sua paixão pela História e a forma simultaneamente séria e lúdica com que lhe pegava. «Santo Onofre» é um dos padres do deserto, indivíduos que fugiam do mundo para encontrar Deus através da oração e da renúncia, sujeitando-se a todas as solicitações do Demónio, que mais não eram do que alucinações provocadas pela carência física e psicológica de tudo... Talvez o menos conseguido.
«S. Frei Gil», cujo plano da obra chegou até nós, poderia ser uma das grandes narrativas queirosianas, provavelmente abandonada (e isto é um palpite; precisaria de verificar cronologias) pelo felizmente concluído A Cidade e as Serras. Várias vezes me veio à memória a dispersão e a inconsistência do Jacinto de A Cidade e as Serras, ou mesmo de Gonçalo Mendes Ramires. Em todo o caso, ficamos com pena do corte abrupto da narrativa quando o volúvel Gil a caminho de Paris, na companhia do escudeiro Pêro, para estudar Medicina, é desviado do intento por um misterioso cavaleiro...
O segundo bloco desta Últimas Páginas, consiste num conjunto de «Artigos Diversos», textos todos de primeira água, em que avulta o também incompleto «O "Francesismo"», um magnífico ensaio de irónica autobiografia cultural.
Eça é sempre Eça. Imortal. 



REINALDO

Reinaldo Ferreira pertencia à geração que entrou na vida ao estrépito dos canhões da Grande Guerra. À sua volta, tudo era turbilhão e vertigem. Dotado de uma sensibilidade quase infantil, absorveu todas as inquietações e angústias que 1914 lançou no mundo, revoluções e atentados, fortunas e misérias, glórias e baixezas, espionagens e crimes... Foi assim que ele compreendeu a vida. E assim a descreveu a sua pena de jornalista, em crónicas modelares, em reportagens de mistério e fantasia.
Os que somos da geração anterior, ainda sentimos durante alguns anos a noção de equilíbrio social, de harmonia, de estabilidade nos interesses criados. Habitávamos uma casa talvez envelhecida, mas com todos os compartimentos em ordem. A mobília, gasta pelo uso, estava sempre no seu lugar. As paredes davam uma impressão de solidez eterna. Pensávamos que seria sempre assim. Fazíamos versos e líamos romances.
Depois, o mundo entrou em obras. Surgiram em toda a parte arquitectos audaciosos, que mandavam implacàvelmente deitar abaixo. Nalgumas salas só há estilhaços de cadeiras. As paredes ameaçam desabar. Os vigamentos tremem. Os alicerces mal suportam o peso das ruínas ainda em pé. Como deve ser bom habitar o mundo quando as obras receberem os acabamentos finais e tudo esteja outra vez no seu lugar, o tempo a deslizar com harmonia, num ritmo suave! 
Reinaldo Ferreira, que aflorou todas as formas literárias com a mesma espontaneidade exuberante e criadora, não quis que da sua pena saísse a descrição do drama pungente que foi a sua existência, em certos lances. Se o fizesse, não precisaria de socorrer-se da sua imaginação prodigiosa para despertar algumas lágrimas de piedade nos olhos de quem os lesse.
Pobre Reinaldo! Sofreu demasiadamente as angústias da época em que viveu. Foi ela que o matou.

Herculano Nunes, in O Livro de Repórter X, edição de Mário Domingues, Lisboa, Agência Editorial Brasileira, s.d.

domingo, 21 de abril de 2013

Senhor Presidente...

Senhor Presidente,
Minhas Senhoras,
Meus Senhores:

Perguntou alguém um dia a Sócrates «porque tinha feito uma casa tão pequena»; e o filósofo respondeu, «que bem quisera vê-la cheia de verdadeiros amigos». Esta sala é bastante grande, a quadra estival vai adiantada, convidando mais ao silêncio dos campos, ou ao bulício das ondas, do que a ouvir importunas prelecção, e por isso eu, embora tão longe de Sócrates em todos os sentidos, não posso deixar dever em V. ex.as, em todos os presentes -- amigos bem verdadeiros. E quando não tenham vindo aqui por cativante bondade para comigo, mas por interesse pelas letras -- sendo amigos das letras, meus amigos também são. muito e muito obrigado.

Início da conferência Através da poesia Inglesa, de Luís Cardim, Porto, Edição da Biblioteca do Clube Fenianos Portugueses, 1939.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

12x25

Gabriel-Ernest

     -- Há uma fera nos seus bosques -- disse o artista Cunningham, quando estava a ser conduzido à estação. Fora o seu único comentário durante todo o caminho, mas como Van Cheele falara incessantemente, o silêncio do seu companheiro não tinha sido notado.
     -- Uma ou duas respostas extraviadas e algumas doninhas que aí habitam. Nada de extraordinário -- disse Van Cheele. O artista não respondeu.
     -- O que queria dizer com «fera»? -- perguntou mais tarde Van Cheele, já na gare.
     -- Nada. Foi a minha imaginação. Eis o comboio -- disse Cunningham.

Saki, A Tela Humana, trad. isabel cisneiros, Lisboa, Diário de Notícias, 2000, p. 25, ls. 1-12..

quinta-feira, 4 de abril de 2013

O AMOR DAS MÃES (Brito Camacho)

Dizia o médico que não era nada; mas a criança piorava a olhos vistos, a febre queimando-lhe as carninhas tenras, e uma tosse incessante, muito funda, parecendo que lhe rasgava o peito, como se fosse um lâmina! Era o seu único filho, a compensação duma longa vida de trabalho e dores, a esperança dum futuro longínquo, em que havia clarões de gozo. Nem ela sabia como aquilo fora. De repente, como se o tocara um bafejo da peste, o pequeno deixou-se-lhe cair no colo, a encolher-se como quem sente frio, a tiritar como quem tem medo, e logo aquela maldita tosse entrou a rasgar-lhe o peito, como se fosse um punhal, ao mesmo tempo que lhe martelava a cabecinha loira, como sobre uma bigorna.
Enquanto não chegava o médico, fora ela renovar todas as flores do seu oratório, acendendo muitas vezes à Senhora do Rosário, sua madrinha de baptismo, perante a qual ajoelhava todos os dias, com muita fé e devoção. Pedia-lhe agora a vida do seu filho, a salvação do seu Toneco, que ali estava ardendo em febre, a tosse rasgando-lhe o peito, como se fosse um punhal, e nas faces redondinhas umas grandes chapas vermelhas, como dois gigantescos pingos de lacre. Parecia-lhe que a sua Madrinha descerrava os lábios, a dizer-lhe boas palavras, e, como fechasse os olhos, num grande movimento de concentração, ia jurar que tinha sentido sobre a sua cabeça pendida, a mãozinha branca da Santa, a significar-lhe que tivesse esperança.
Dizia o médico que não era nada; e efectivamente desaparecera aquela febre que escaldava o seu Toneco, como num banho de enxofre derretido; cessara aquela maldita tosse que lhe rasgava o peito, como se fosse um punhal, e das faces emagrecidas tinham-se apagado aquelas chapas vermelhas, que eram como dois grande pingos de lacre, ou duas gotas de sangue, muito quente e muito vivo. Aquilo não era nada; o sofrimento cessara... porque também cessara a vida.

Apagou as velas do oratório e, quando atirava para o quintal as flores e a sua Madrinha, pareceu-lhe que se descerravam os lábios da Santa, como num gesto de súplica. Fechou a janela, com força, e, deixando cair os olhos, cheios de lágrimas, sobre o pequenino leito vazio, ficou-se a considerar a impossibilidade de terem crenças as mães que perdem os filhos.

Brito Camacho, Contos e Sátiras, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1929.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Perto da Cidade principal da Lusitânia está uma graciosa Aldeia...

Perto da cidade principal da Lusitânia está uma graciosa Aldeia que com igual distância fica situada à vista do mar Oceano, fresca no Verão, com muitos favores da natureza, e rica no Estio e Inverno com os frutos e comodidades que ajudam a passar a vida saborosamente; porque, com a vizinhança dos portos do mar por uma parte e da outra com a comunicação de uma ribeira que enche os seus vales e outeiros de arvoredo e verdura, tem em todos os tempos do ano o que em diferentes lugares costuma buscar a necessidade dos homens; e por este respeito foi sempre o sítio escolhido para desvio da Corte e voluntário desterro do tráfego dela, dos cortesãos que ali tinham quintas, amigos ou heranças, que costumam ser velhacouto dos excessivos gastos da cidade.

Início de Corte na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988.