A problemática do
tiranicídio (e do regicídio) moderno surgiu crescentemente ligada a uma
filosofia da história secularizada, cujo sentido optimista teria remover os
obstáculos ao seu percurso progressista, sobretudo porque se acreditava que,
por essência, ou por razões sociais injustas mas ultrapassáveis, todo o poder
era despótico.
Daí que o seu executor aparecesse como um justiceiro
animado pelo que ele (ou o grupo em que se integrava) achava ser o imperativo
inscrito no devir histórico, logo, como um revolucionário cheio de pressa para
que o futuro
chegasse mais cedo. Heroicidade que lidava mal com os
reformismos
ou
com os movimentos que colocavam o motor da transformação social num sujeito
anónimo e colectivo, condenando a violência individualizada. Filho do modo
romântico de encarar a revolução, o tiranicida dos finais do século XIX e
princípios de Novecentos irrompeu como um herói individual, embora
justificasse a sua acção por valores universais e redentores, fosse a pátria,
o oprimido, ou toda a humanidade escravizada pela exploração e pelo
sofrimento. Com isso, porém, o seu acto fazia-se acompanhar pela simultânea
individualização da responsabilidade pelo opressivo transcurso da história.
Compreende-se, assim, que, mesmo quando ideologicamente o não era, os
seus protagonistas se movimentassem numa mitologia de fundo anarquista e
mesmo, em casos mais radicais, niilista. Horizonte que ganhou particular
relevo a partir das últimas décadas de Oitocentos, e que impulsionará uma
espécie de onda que submergiu reis,
imperadores, ministros e presidentes de repúblicas, desde a Rússia, os EUA, a
França, a Itália, a Espanha, até, entre outros locais, Portugal e o Império
Austro-Húngaro. E se, na Antiguidade, o tiranicídio era desculpabilizado em
nome da restauração da ordem natural da pólis,
e se, na justificação teológica, se matava em nome de Deus e da pátria
celeste, com a Revolução Francesa e com as suas apropriações anarquistas e
patriótico-nacionalistas posteriores, o considerado como déspota era
executado por quem pensava estar a cumprir uma missão resgatadora, agindo,
assim, como juiz único da razão e do tribunal da história.
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Retirado da página de FB , de A textos e pretextos de Fernando Catroga