Mostrar mensagens com a etiqueta NOS Audiovisuais. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta NOS Audiovisuais. Mostrar todas as mensagens

5 de abril de 2022

Opinião – “Gasolina Alley – Investigação Explosiva” de Edward Drake

Sinopse

Depois de se cruzar momentaneamente com um grupo de mulheres num bar em Los Angeles, o tatuador Jimmy (Devon Sawa) descobre que as estas foram brutalmente mortas e que ele é o principal suspeito. Enquanto o detetive Freeman (Bruce Willis) e o detetive Vargas (Luke Wilson) começam a investigar Jimmy, este regressa ao submundo do crime de Los Angeles, que lutou muito para deixar no seu passado. Em busca de respostas, os corpos acumulam-se enquanto Jimmy é puxado cada vez mais para o fundo da conspiração que vai abalar o centro da cidade. Depois de uma das fontes de Jimmy ser sequestrada e a polícia emitir um mandado de prisão para ele, Jimmy considera a ideia de que a única maneira de expor os monstros por trás dos assassinatos é tornar-se ele mesmo um monstro.

Opinião por Artur Neves

Há um tempo a esta parte os filmes com o Bruce Willis não passam de uma utilização do seu nome para se tornarem credíveis, ao nível do público que usa o cinema como uma mera distração e utilização de tempo para se aturdir, quando pura e simplesmente não quer pensar em mais nada, alem de se perder na sua atenção durante aquele tempo.

Bruce Wilis foi uma ator que ganhou fama através de uma serie na TV, depois passou para o cinema fazendo o seu sucesso mais sonante com a série de filmes Die Hard que começa na década de 90 e termina com o “Die Hard 4” em 2007 com alguns intervalos de boas interpretações que não vou citar, como o “Sexto Sentido” de 1999 e outros, mas a partir de 2007 o seu nome passou a servir apenas como chamariz para mais 46 produções, também com algumas, poucas exceções de qualidade, embora a grande maioria fosse apenas para utilizar o seu nome ao serviço da produção que preferia rentabilizar o dinheiro empenhado, normalmente em projetos baratos, onde se queria obter o máximo de rentabilidade. Para completar a informação informo ainda que existem 8 títulos em fase de post-production, alguns ainda sem data de conclusão, o que significa que apesar de ele ter manifestado o seu abandono do cinema por estar sujeito a uma crise de Afasia, ainda vamos vê-lo mais uns tempos, presumo até 2023.

Esta explicação serve para justificar que esta produção tipo Série B onde este filme se insere é um filme de baixo orçamento onde o assassínio de algumas garotas é usado para incriminar um dos intervenientes, Jimmy (Devon Sawa), dono da loja de execução de tatuagens corporais “Gasolina Alley”, pelo facto que ter sido achado junto aos cadáveres das moças maltratadas um isqueiro publicitários da loja que os dois detetives investidos no caso, Freeman (Bruce Willis) e o detetive Vargas (Luke Wilson) acham suficiente para o incriminar.

Como os polícias são pouco diligentes nas investigações vai ser o principal suspeito Jimmy, filho de um anterior polícia reformado, que vai vestir a pele de detetive para descobrir o verdadeiro culpado e assim poder-se libertar da pressão que os detectives exercem sobre ele. Ele vai de clube em clube, entrevista os donos ou os responsáveis pela sala, estabelece os contactos necessários com amigos que se transformam em inimigos, segue os mais suspeitos e encontra realmente os responsáveis. Os detectives, entre os quais Bruce Willis, não servem para mais do que justificar um argumento de detecção e caça de bandidos por uma equipa de desconhecidos, sem ação, sem manobras de emoção ou surpresa, de forma e encher o tempo previsto para o filme que se pretendia construir.

No fim, no meio de uma cena de tiros chega-se à conclusão que um dos detectives estava enrolado com os traficantes (há sempre uma cena de tráfego de droga no meio) e que desde o princípio sabia de tudo. É isto o que se pode encontrar nesta história em que Bruce Willis tem quatro aparições fugazes, balbucia duas ou três frases perfeitamente supérfluas ao enredo da história e o filme faz-se com personagens de segunda ou terceira categoria para nos manter ocupados durante os 97 minutos de duração. Nem sequer dá para começar…

Tem estreia prevista em sala dia 07 de março

Classificação: 3 numa escala de 10

 

29 de março de 2022

Opinião – “Tudo em Todo o Lado ao mesmo Tempo” de Dan Kwan e Daniel Scheinert

Sinopse

Escrito e realizado por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como Daniels, esta história conta a fantástica odisseia de uma imigrante chinesa nos Estados Unidos, exausta de tentar organizar os seus impostos vê-se arrastada para uma louca aventura onde só ela pode salvar o mundo explorando outros universos ligados às vidas que poderia ter levado.

Opinião por Artur Neves

Trata-se de um filme sobre uma família chinesa emigrante nos USA, que desenvolve um negócio de lavandaria com máquinas que são utilizadas em self service pelos utilizadores e tomamos contacto com eles na altura de apresentar ao serviço de contribuições e impostos o resumo anual da sua atividade empresarial. Encontramos Evelyn Wang (Michelle Yeoh) sentada a uma mesa a tentar interpretar e selecionar os documentos de despesa relevantes da atividade para os entregar ao sistema de cobrança de impostos.

A família dela é composta por o seu marido Chade (Harry Shum Jr.) que não sabe o que fazer naquela azáfama toda, todavia está disposto a fazer o que for preciso para ser útil, muito embora tenha na mão um pedido de divórcio que não consegue apresentar a Evelyn porque ela não lhe dá a mínima atenção às suas solicitações. A filha Joy Wang (Stephanie Hsu) uma jovem adolescente que namora com uma rapariga; Nariz Grande (Jenny Slate) sua colega de escola e luta por a apresentar à mãe que com a sua louca ocupação profissional não lhe dá atenção nem considera o que ela lhe pretende transmitir. O filho mais novo, Waymond Wang (Ke Huy Quan) que anda por li sempre nos locais mais impróprios para o desenvolvimento do negócio e o seu avô, pai de Evelyn, Gong Gong (James Hong) que já não se encontra em perfeita saúde, não comendo nem se deslocando pelos seus próprios meios precisando sempre que alguém se lembre dele e lhe empurre a cadeira de rodas em que se desloca.

Como se pode pensar tudo é possível acontecer naquela família em que Evelyn julga que pode conduzir todas as tarefas necessárias para a sua manutenção. Ela tem de deslocar-se às finanças para oficializar e entrega das contas e a empregada que a atende não é outra senão Deirdre Beaubeirdra (Jamie Lee Curtis) que não se parece nem um pouco com Wanda, a heroína de “Um Peixe chamado Wanda” de 1988 que a atirou para o estrelato. Jamie Lee Curtis nascida em Los Angeles, em 1958 e filha de dois atores muito famosos daquela época; Janet Leigh e Tony Curtis apresenta-se aqui tal como está, sem grandes pinturas que a promovam e mostra a proeminente barriga que hoje possui, dentro de uma calças justas que não são sequer um princípio para a esconder.

Como a apresentação das contas aquela funcionária rígida e exigente que não para de lhe pedir adicionais e provas para certificar aquelas contas, a história deixa para trás toda a complexa família que nos foi apresentada e explora universos multidimensionais de magia e ficção científica com que pretende fazer comédia na solução dos diferentes paradoxos em que aquela família está envolvida. Podia pensar-se que aquela situação caótica poderia dar aso a uma análise do que fazemos da nossa vida para a destruir, priorizando as obrigações e os afazeres profissionais mas não é isso que acontece porque a parte mais importante do filme são as múltiplas transformações e mutações dos seus intérpretes, através de tecnologias bacocas, sem nexo, finalidade ou sentido. É o que eu chamo um filme que cansa, baseado em fantasia que não serve de distração, ou no mínimo, o empolgamento do espectador.

Tem estreia prevista em sala dia 07 de Abril

Classificação: 2 numa escala de 10

 

14 de março de 2022

Opinião – “X” de Ti West

Sinopse

X é o novo filme de terror do diretor Ti West. Na década de 1970, um grupo de filmmakers alugam uma antiga casa de fazenda no interior de uma cidade no Texas para gravar um filme pornográfico. Mas quando os dois idosos, anfitriões e reclusos da antiga casa os pegam em flagrante, o elenco logo se vê em uma luta desesperada por suas vidas.

Opinião por Artur Neves

Os filmes de terror pertencem a um subgrupo dos filmes de suspense frequentemente baseados em crenças, fantasmas, ou de algum modo, convicções do além que redundam sempre numa encarnação maléfica com poderes condicionados por qualquer processo acessível aos mortais que por eles são perseguidos. Neste caso não é bem assim e todo o terror, constituído por assassínio, é cometido pelos personagens que compõem o filme que entram em confronto por desacordo entre as convicções dos idosos donos da casa e as convicções da equipa de filmagem que alugou o espaço para realizar um filme pornográfico.

O referido desacordo só existiu, porque um dos produtores não declarou ao dono da casa os fins do aluguer da casa nem o número de ocupantes envolvidos, tentado com isso obter um menor valor de renda pelo tempo de ocupação. A casa alugada é separada da casa principal habitada pelo casal de idosos que a chegada da equipa causa um perturbação e desconfiança nas relações com tais pessoas. Ele recebe os hóspedes de carabina na mão, e ela espreitando por uma janela do 1º piso sente atração pelo fator “X” caraterístico de uma das personagens que compõem a equipa, que é a primeira a vê-la espreitar entre as cortinas numa atitude que lhe causa um arrepio de medo.

Eles são todos jovens, são constituídos por três casais, dos quais duas mulheres e um homem são os personagens do filme, o outro homem é um dos produtores e o chefe de equipa e o outro casal são o operador da câmara e a mulher que trata da captação do som que tem com o marido uma relação fixa, muito diferente da relação aberta entre os outros dois casais. Do lado do dono da casa, a mulher do casal que outrora também foi atriz, sente saudade e inveja da juventude que com ela coabita, fazendo-a lembrar-se dos tempos em que era preferida e amada pelo marido e cobiçada por outros homens que lhe reconheciam o fator diferenciador “X” que ela identifica numa delas.

O que se segue é o avolumar-se de questões baseadas no argumento do filme que levantam algumas questões curiosas, que de modo algum sem serem novas, nem o filme estar dedicado a analisá-las, levam às mortes de todos os elementos, que se movem sem compreender as diferenças fundamentais entre uns e outros. Ti West, um realizador independente nascido em 1980 nos USA, é o diretor e argumentista desta história que se pode descrever como uma mistura entre “Massacre no Texas” de 1974 e “Jogos de Prazer” de 1997, e que apesar de contar com várias realizações neste género à maneira clássica, resolveu reformular o tema e apontar o sofrimento e inadaptação de cada pessoas como responsável por tantas e tão violentas mortes que se vão sucedendo sem razão específica exceto a conceção de diferença individual quando não podemos concretizar os nossos desejos por incapacidade física.

Tem estreia prevista em sala dia 17 de Março

Classificação: 4 numa escala de 10

 

8 de março de 2022

Opinião – “O Domingo das Mães” de Eva Husson

Sinopse

Num dia quente da primavera de 1924, Jane Fairchild (Odessa Young), uma empregada doméstica órfã, vê-se sozinha no Dia da Mãe. Os patrões, o Sr. e Sra. Niven (Colin Firth e Olivia Colman), estão fora e ela tem uma oportunidade rara de passar um bom bocado com Paul (Josh O'Connor), o seu amante secreto. Filho dos donos de uma mansão vizinha, Paul é a paixão de longa data de Jane, embora esteja noivo de outra mulher, uma amiga de infância que é filha de amigos dos seus pais. Mas eventos que nenhum dos dois pode prever virão mudar o curso da vida de Jane para sempre.

Opinião por Artur Neves

Esta obra é um exemplo acabado em como a edição (montagem das cenas filmadas) é de crucial importância para a sua qualidade, interesse e até inteligibilidade da história. Na descrição de uma qualquer história costuma também dizer-se, que mais importante do que a sequencia em que os eventos são contados, o importante é estarem lá todos e não serem perdidos no seu encadeamento descritivo e essa é a principal função e objetivo de uma competente edição tal como se pode observar neste filme.

“O Domingo das Mães”, no original; “Mothering Sunday” é um romance escrito em 2016 pelo autor inglês Graham Swift sobre o dia 30 de março de 1924 em Inglaterra, em que as famílias da classe alta realizam um encontro no campo para se confortarem da perda dos seus filhos mortos na Primeira Guerra Mundial e permitirem aos criados um dia de folga em que aproveitem visitar os sus parentes mais próximos, principalmente as suas mães também enlutadas pela morte dos seus filhos, e assim prestarem-lhe o conforto possível.

A sinopse descreve o fundamental do enredo, que pode entender-se como linear e simples como se apresenta, pelo que o importante e transforma esta história num documento sobre sentimentos, é a forma como Eva Husson (já nomeada para a Palma de Ouro por “As Filhas do Sol” de 2018) filmou o argumento bem elaborado por Alice Birch que foi capaz de capturar o poder literário do romance original, e Emilie Orsini que editou o material filmado de forma a oferecer-nos um filme repleto de surpresa, misturando notavelmente os eventos do romance de Graham Swift e fazendo com que o filme sugira ser uma memória emocional, em vez de um desdobramento da narrativa. Sem pontos mortos e principalmente recheado de pormenores íntimos de comportamentos da época em que não era espectável a revelação sincera das suas emoções, mas antes a submissão severa às regras convencionais de etiqueta que regulavam as relações sociais.

Todo o elenco está muito bem escolhido com particular destaque para os patões de Jane, Sr. E Sra. Niven (Colin Firth e Olivia Colman), que apesar de não serem figuras centrais na história mostram o sentimento compungido da época de luto, ele tentando amenizar o ambiente e facilitar a vida, embora com a consciência da superficialidade circunstancial das sua alusões, ela mantendo um ar de tristeza azeda em todas as situações compondo um personagem imbuído na dor que deve ter sido comum a muitos outros pais na época.

O filme move-se constantemente para a frente e para traz no tempo, mostrando-nos o passado órfão de Jane que justifica uma das premissas do romance; alguém sem passado só pode esperar um futuro melhor, pois não tem nada a perder. O passado com os jovens da casa que marca o início da sua relação com Paul (Josh O'Connor) e focando-se na sua vida de criada em que Jane assume uma postura de observadora atenta, que lhe potencia a ascensão social com o emprego numa livraria e a futura carreira de escritora de sucesso.

Não há dúvida que o profundo romance de Swift ao caraterizar os sentimentos humanos torna-se difícil de passar a filme. Literalmente os personagens serão descritos com mais vibração e apresentarão uma sensualidade erótica mais desenvolvida. O escritor tem outras formas de as descrever e nos fazer imaginá-las, mas Eva Husson, ou melhor, a três mulheres envolvidas na confeção deste filme conseguiram apresentar-nos uma adaptação decente e bem representativa de uma experiencia de vida emocionante. Gostei, recomendo sem reservas.

Tem estreia prevista em sala, dia 31 de Março

Classificação: 8 numa escala de 10

 

28 de fevereiro de 2022

Opinião – “O Poder do Cão” de Jane Campion

NOTA: Este filme estreou inicialmente na plataforma de streaming Netflix e como tal já teve uma apreciação neste blogue, todavia as suas 12 nomeações para os Óscares da Academia Americana de 2022 e a estreia em sala pela mão da NOS Audiovisuais, justifica a sua republicação.

Sinopse

Severo, de olhos claros, bonito, Phil Burbank é brutalmente sedutor. Todo o romance, poder e fragilidade de Phil estão presos no passado e na terra: ele pode castrar um bezerro com dois golpes rápidos da sua faca; ele nada nu no rio, encharcando seu corpo com lama. Ele é um cowboy tão cru quanto as peles obtidas nas suas caçadas. Corre o ano de 1925. Os irmãos Burbank são fazendeiros ricos em Montana. No restaurante Red Mill, a caminho do mercado, os irmãos encontram Rose, a proprietária viúva e seu filho gentil, Peter.

Phil se comporta tão cruelmente que leva os dois às lágrimas, deleitando-se com sua dor e levando seus companheiros vaqueiros ao deleite dos brutos – todos exceto seu irmão George, que conforta Rose e depois volta para lhe propor casamento. Enquanto Phil oscila entre a fúria e a astúcia, sua provocação a Rose assume uma forma estranha – ele paira no limite de sua visão, assobiando uma música que ela não consegue tocar no piano que George lhe ofereceu. Humilha o filho dela de forma aberta, amplificada pelos aplausos dos vaqueiros ao serviço de Phil. Posteriormente, Phil assume voluntariamente a educação do menino sob sua responsabilidade. Este último gesto é a suavização de uma relação que deixa Phil exposto ou uma trama que se transforma em ameaça?

Opinião por Artur Neves

Jane Campion tornou-se notada quando em 1993 foi vencedora do Óscar da Academia Americana com o filme “O Piano” em que uma pianista muda, a sua filha e um piano de marca, são enviadas para Nova Zelândia, para ela casar com um fazendeiro abastado. Os problemas começam quando um trabalhador local se apaixona por ela. A pianista muda era Holly Hunter que tem aqui a sua ascensão ao estrelato através da direção de Jane Campion que faz dela um personagem ainda hoje inesquecível quando é nomeada pelas suas novas realizações, como neste filme em que o pormenor, a descrição lenta e porfiada da caraterização dos personagens os tornam reais, próximos de nós e convincentes nas atitudes que os vemos tomar na interpretação da história que os suporta.

A sinopse é suficientemente descritiva sobre o enredo da história pelo que vou voltar-me para o desenvolvimento dos personagens que é o que Jane Campion faz melhor, ao seu ritmo lento, pormenorizado, detalhando as diferenças significativas de uma história passada em Montana em 1925, em plena conquista do oeste americano, mostrando-nos que nem só de tiros, índios e cowboys se faz um western. O argumento foi baseado no romance com o mesmo nome, escrito em 1967 por Thomas Savage e o filme teve a sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza em setembro de 2021 que lhe conferiu o Leão de Prata de Melhor Realização. O trabalho foi realizado na Nova Zelândia, numa zona montanhosa do país mas que não se parece com o estado de Montana, todavia as tomadas de vista panorâmicas, em jeito do que faria Terrence Malick, são impressionantes e atestam bem a maestria da autora.

As quatro personagens mencionados na sinopse são-nos meticulosamente apresentadas, começando por Phil (Benedict Cumberbatch), que se apresenta como um fazendeiro machista, duro, naturalmente agressivo, que esconde uma homossexualidade latente, menosprezando tudo e todos, bem como todas as atividades que não revelem a virilidade inerente à sua necessidade de a mostrar, para ocultar a sua fraqueza profunda e o seu segredo escondido entre ramos e folhas de árvores da floresta, onde periodicamente se recolhe para solitariamente apreciar em revistas fotográficas da época, corpos musculados de homens. Nesses momentos ele perde-se em fantasias homoeróticas e lembranças do seu mentor Bronco Henry falecido há cerca de 20 anos, de quem ele guardou um lenço que usa para se masturbar. Na realidade ele é apenas um ser sofrido pela sua condição, não é intrinsecamente mau, apenas sente necessidade de compensar a sua fraqueza com demonstrações violentas. O seu irmão George Burbank (Jesse Plemons) tem o comportamento oposto dele. É calmo, ponderado a falar com frases curtas e por vezes insuficientes para concretizar uma ideia, e para a necessidade de exuberância do seu irmão Phil, pelo que se torna o alvo das suas provocações, tratando-o sistematicamente por “gordo”, escarnecendo das suas premissas e da sua falta de apetência para a lidação com o gado. George tem estudos e outra visão da vida de que não abdica, como a constituição de uma família com a viúva Rose Gordon (Kirsten Dunst) dona do restaurante da cidade que o gere com a ajuda do seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee), de aparência esguia, delicado, aspirante a médico, metido consigo e com os seus livros e com as suas habilidades manuais de fazer arranjos de flores em papel colorido que se destinam à decoração das mesas.

É com estes quatro elementos que Jane Campion desenvolve uma história de competição e confronto de personalidades. Quando George e Rose depois de casados coabitam com Phil a casa de família no rancho, Phil envolve-se em provocações psicológicas a Rose que integra muita emoção no papel do seu personagem, mas a força está com Phil. Peter por seu lado, observa, regista, mastiga as humilhações e com base na religiosidade da sua formação folheia o Livro de Oração, lê os Salmos 22:20 “Livra a minha alma da espada minha querida, e do poder do cão”, reflete, e sorrindo suavemente engendra um processo para castigar o pecador. Diabolicamente lindo, muito bem interpretado é merecedor de ser visto com tempo para o desfrutar ao longo dos seus 126 minutos. Recomendo sem reservas.

Em exibição em sala a partir de 03 de Março

Classificação: 7 numa escala de 10

 

25 de fevereiro de 2022

Opinião – “Competição Oficial” de Mariano Cohn, Gastón Duprat

Sinopse

Quando um empreendedor multimilionário decide impulsivamente criar um filme icónico, ele exige os melhores e recruta a conhecida realizadora Lola Cuevas (Penélope Cruz) para orquestrar a sua ambiciosa proposta. A completar um elenco de estrelas são escolhidos dois atores de enorme talento, e egos ainda mais colossais: o grande galã de Hollywood Félix Rivero (Antonio Banderas) e o radical ator de teatro Iván Torres (Oscar Martínez).

Embora sejam lendários no ramo, os dois não são propriamente grandes amigos. Sujeitos por Lola a uma série de testes cada vez mais excêntricos, Félix e Iván têm de se confrontar não só um com o outro, como também com os seus próprios legados. Qual deles restará quando a câmara começar finalmente a filmar?

Opinião por Artur Neves

Os realizadores Mariano Cohn, Gastón Duprat têm como antecedente de referência um filme muito interessante também interpretado por Oscar Martínez com o nome de “Cidadão Exemplar” em que ele, um escritor de renome há muito tempo afastado voluntariamente da sua terra natal na Argentina, propõe-se lá voltar depois de ser agraciado com um prémio Nobel que distinguia a sua obra e, na sua opinião, o valorizava aos olhos dos seus conhecidos na sua terra de origem.

Como pode pensar-se, as coisas não se passam assim e tal como neste filme, em que dois nomes sonantes da sétima arte são contratados para corporizarem o legado de um milionário farmacêutico em empo de reflexão sobre a vida, eles preocupam-se antes em desenvolverem o seu personagem melhor do que o outro, preocupando-se mais com a competição entre si. que normalmente tende a não produzir destaque a uma das partes, do que na canalização de esforços comuns para que o resultado, o filme, seja uma obra-prima como o produtor pretende.

Para que tudo corra pelo melhor o produtor não se escusa a esforços para contratar o melhor realizador da época, Lola Cuevas (Penélope Cruz) que depois de conhecer a história e integrar o tema na sua complexa e excêntrica maneira de ser e sensibilidade esotérica, evidenciada nas suas esdruxulas posições de descontração e de meditação, sente que precisa de se orientar pela busca da verdade e explorar as mais excitantes possibilidades de ambos os atores convidados; Félix Rivero (António Banderas) e Iván Torres (Oscar Martínez) para que eles possam dar o melhor de si e que por ego, ou vaidade masculina, eles não pretendam ofuscar-se mutuamente. Para conseguir isso, Lola submete-os aos mais duros ensaios, durantes as fases de preparação das filmagens, de leitura dos textos, de composição das cenas como maneira de eles esgotarem os seus impulsos primários e trabalharem coordenadamente.

Portanto a história deste filme reporta-se á confrontação de dois colegas de profissão de forma satírica e altamente competitiva tendo com pano de fundo a pretensão cínica do mecenato cultural que mantenha para a história o bom nome do seu financiador. Em boa verdade, a Humberto Suárez (José Luis Gómez) o mecenas bilionário, não lhe interessa o enredo do filme de cujo livro em que é inspirado lhe custou elevada quantia e que ele nem percebe bem. A sua preocupação real é aos 80 anos reconhecer que apesar de toda a sua fortuna não deixa atrás de si algo de valor autêntico ou de utilização e consequências duradouras.

É pois um filme com um sentido de humor indireto, baseado na sensibilidade estética do local dos ensaios e nos pormenores de preparação das cenas e do guarda-roupa dos dois atores para o qual foi utilizado um carinho especial para não prejudicar os personagens, muito embora as suas cenas e os seus diálogos possam surgir como ridículos. “Competição Oficial” é um filme diferente do comum onde tudo se passa antes do início das filmagens e foi o Filme de Abertura do Festival de Cinema de San Sebastian e foi ainda Seleção Oficial quer do Festival de Cinema de Veneza quer do Festival de Cinema de Toronto. Contendo cenas “bem apanhadas”, um twist inesperado no final que não engana Lola Cuevas, define-se como interessante e recomendável.

Tem estreia prevista em sala dia 03 de Março

Classificação: 6 numa escala de 10

 

15 de fevereiro de 2022

Opinião – “Cyrano” de Joe Wright

Sinopse

Em Cyrano, o premiado realizador Joe Wright envolve os espectadores numa harmonia de emoções, música, romance e beleza, reinventando esta intemporal história sobre um comovente triângulo amoroso. Um homem à frente do seu tempo, Cyrano de Bergerac (interpretado por Peter Dinklage) deslumbra tanto com os seus ferozes jogos de palavras em disputas verbais, como com a sua esgrima formidável em duelos. Mas, convencido de que a sua aparência o torna indigno do amor de uma fiel amiga – a resplandecente Roxanne (Haley Bennett) – Cyrano não lhe declara os seus sentimentos e Roxanne apaixona-se à primeira vista por Christian (Kelvin Harrison, Jr.).

Opinião por Artur Neves

“Cyrano” é mais uma versão para cinema da peça de teatro feita em 1897 pelo poeta e dramaturgo francês Edmond Rostand, inspirado na vida real de Cyrano de Bergerac, um homem que viveu em 1600, impetuoso nos duelos de espada, com dotes linguísticos e de escrita e também um verdadeiro artista musical, provido de um nariz demasiado proeminente que o desclassificava aos seus próprios olhos de ser merecedor do amor por uma prima distante, Roxane, que ele amava em silêncio. Deixo aqui já um aviso que se trata de um filme musical, nem sempre do agrado do público cinéfilo.

A argumentista Erica Schmidt pegou na peça original e reinventou-a alterando a caraterística identitária de Cyrano de forma a poder servir para um novo personagem interpretado pelo seu marido Peter Dinklage, bem conhecido do grande público e com talento reconhecido na série da HBO “A Guerra dos Tronos” (2011 a 2019), transformando-a num conto sobre um afeto profundo vivido em segredo e não correspondido, mais ao jeito das histórias de amantes infelizes que pululam na obra de Shakespeare. Assim este filme é mais uma adaptação de Hollywood aos contos clássicos que pela ousadia da sua transformação literária e pela mão de Joe Wright consegue alcançar um resultado híbrido entre o clássico de amor e os filmes de capa e espada.

Relembro que as obras anteriores mais notórias de Joe Wright, como “Orgulho e Preconceito” de 2005 ou “Expiação” de 2007 eram histórias sensuais, com desenvolvimentos ricos em detalhes íntimos, que neste seu “Cyrano” só podemos sentir por uma expressão de vontade, considerando que a profusa banda sonora de Bryce e Aaron Dessner (The National) consegue interromper a demonstração sentimental dos personagens. As peças que mais se destacam são uma música rock durante a intervenção do vilão e uma balada triste ao piano que enquadram os lamentos secretos de Cyrano mas de difícil recordação após o contexto em que a ouvimos. Por outro lado, sempre que assistimos a uma narrativa entre quaisquer personagens, logo o diálogo é substituído por música a que se segue outra, assumindo-se com todos os defeitos e vantagens dos filmes musicais.

Decorrente da experiencia de Dinklage o argumento permite-lhe muitas hipóteses de usar o seu pendor cómico, bem como exibir a sua tristeza de rigidez de rosto enquanto as lágrimas lhe caem dos olhos quando Roxane lhe revela que está apaixonada por outra pessoa. Ele nem pestaneja e congela a expressão tornando-a numa máscara destroçada de tragédia. Roxane, pelo seu lado exibe uma visível energia emotiva para equilibrar o desempenho de Cyrano, constituindo com ele o par mais desligado do romance.

É admirável a ideia destas pessoas em recriar uma nova versão de “Cyrano de Bergerac” que se distinga das suas congéneres, sem nariz e com outras caraterísticas que valorizam este personagem pouco conhecido, despindo-o de grandes tiradas teatrais e substituindo-as por um naturalismo adequado à modéstia das melodias, todavia isso não consegue ultrapassar que o amor central da peça, apesar de muito cantado por todos, se cinge a uma amizade forçada mal enquadrada no que deveria ser um conto de fadas. Vale o propósito, perde-se o resultado.

Tem estreia prevista em sala dia 24 de fevereiro

Classificação: 5 numa escala de 10

 

28 de janeiro de 2022

Opinião – “A Filha Perdida” de Maggie Gyllenhaal

Sinopse

Sozinha numas férias à beira-mar, Leda (Olivia Colman) fica obcecada com uma jovem mãe e a sua filha ao observá-las na praia. Enervada com a relação cúmplice entre as duas (e a sua família numerosa, barulhenta e ameaçadora), Leda é dominada pelas suas próprias memórias do terror, confusão e intensidade da maternidade precoce. Um ato impulsivo atira Leda para um mundo estranho e sinistro da sua própria mente onde é obrigada a enfrentar as escolhas inconvencionais que fez enquanto jovem mãe e as suas consequências.

Esta é a estreia de Maggie Gyllenhaal enquanto realizadora, baseada no romance de Elena Ferrante. “A Filha Perdida” conta também com Dakota Johnson, Jessie Buckley, Ed Harris, Peter Sarsgaard, Dagmara Dominczyk e Paul Mescal.

Opinião por Artur Neves

É com prazer que registo mais uma estreia auspiciosa de uma atriz já com créditos firmado no meio como em “A Secretária” de 2002 ou “Frank” de 2014. Maggie Gyllenhaal oriunda de uma família de atores e com o seu irmão Jake Gyllenhaal também seguindo uma carreira de realização já com algum sucesso assinalável, tem neste filme a estreia numa longa metragem baseada num romance de Elena Ferrante que apresenta diversos argumentos para estarmos atentos às suas futuras iniciativas.

Em “A Filha Perdida” segue-se o percurso solitário de Leda (Olivia Colman) em gozo de uma semana de férias numa praia da Grécia, onde ela se dispõe a observar uma jovem mãe, Nina (Dakota Johnson) que cuida da sua pequena filha Elena no seio de uma família cujas atividades em grupo levantam alguma especulação. A observação de Leda é tão intensa e levanta-lhe tanta curiosidade e interesse o relacionamento de Nina com Elena que lhe desperta memórias do seu próprio relacionamento com as suas duas filhas Bianca e Martha, que a certa altura ela reconhece como falhado, ou pelo menos sem o desvelo e a atenção que Nina revela para com Elena.

Apesar de tudo, numa das voltas da praia escarpada e perto de um pequeno bosque, Elena perde-se dos pais o que faz perturbar toda a paz da praia e do pequeno lugarejo onde se insere. Acidentalmente é Leda quem a encontra e a entrega a Nina estabelecendo assim uma forte ligação entre as duas mulheres, com Nina agradecida e Leda experimentando sentimentos confusos na solidão das suas férias e dos seus curtos sonos onde experimenta uma saudade e um remorso de não ter sido a mãe que hoje desejava ter sido. É aqui que o argumento se centra e que a realização pontua, pois esta espécie de expedição psicológica em que o argumento percorre o passado através dos pensamentos de Leda e das suas lembranças, levanta-nos as mais atuais questões sobre a condução da maternidade, que são simultaneamente a evidência da necessidade condicionada por tabus.

O filme mostra-nos através de flashbacks de Leda (Jessie Buckley) quando nova, os problemas que levam a perturbação aos pensamentos de Leda de hoje e neste ponto deixo uma nota que durantes as primeiras vezes temos alguma dificuldade em estabelecer essa relação, que só posteriormente se vem a confirmar. A partir daí a história já se torna mais fluida porque as ações de hoje são provocadas por situações que vemos como são recordadas pelo espírito de Leda, e neste ponto está verdadeiramente a dificuldade de pôr em filme este romance de Elena Ferrante sem o complemento da palavra que exprima o contexto.

O personagem de Olívia Colman, de uma mulher com um pensamento que a condiciona nas suas atitudes, serve-se do lastro de outros personagens já representados por esta atriz, tem a capacidade de ser simultaneamente a vítima e o algoz de Elena, quando encontra e guarda a sua boneca preferida, perdida quando ela momentaneamente desapareceu, pois é a tentativa derradeira de Leda encenar a retoma do seu relacionamento com as suas filhas, já que durante a vida anterior Leda se limita a suportar o papel de mãe, ou na melhor da hipóteses, representar esse papel, após ter voltado para as filhas depois de uma longa ausência apenas justificada por puro egoísmo sem justificação. Agora, já sem esperança ela rouba a boneca a Elena como compensação para os maus tratos que Bianca provocou na boneca de Leda. Ela trata bem da boneca, compra-lhe vestidos novos, limpa-a, no desejo de mostrar os cuidados maternos que em tempos ela não soube dar ás suas filhas.

É um filme muito curioso, passível de diversas interpretações dos factos que nos são mostrados, mas que confronta sempre o princípio de que a maternidade é inerente a todas as mulheres, embora o individualismo como mulher e as suas falhas de caráter devem acabar ou corrigir-se com a maternidade. São 121 minutos de ação intelectual que se vão consumindo lentamente apesar das perguntas que ficam com a resposta a cargo do espectador. Recomendo

Tem estreia prevista em sala dia 03 de Fevereiro

Classificação: 7 numa escala de 10

 

19 de janeiro de 2022

Opinião – “Ilusões Perdidas” de Xavier Giannoli

Sinopse

Lucien (Benjamin Voisin) é um jovem poeta desconhecido na França do século XIX, com grandes esperanças e aspirações. Deixa a tipografia na sua província natal para tentar a sorte em Paris sob tutela da sua mecenas. Rapidamente deixado à sua sorte nesta fabulosa cidade, Lucien descobrirá os meandros deste mundo submisso à lei do lucro e do fingimento.

Uma comédia humana onde tudo tem um preço, seja sucesso literário ou imprensa, política ou sentimentos, reputações ou almas…

Adaptação do livro “Ilusões Perdidas” (Comédia Humana) de Honoré de Balzac.

Filme da competição oficial no 78.º Festival de Veneza

Opinião por Artur Neves

Quem conhece o escritor do século XIX Honoré de Balzac deve ter a noção de que este romance constitui a obra capital do conjunto de 98 obras completas e 48 incompletas da “La Comédie Humaine” no setor “Études de Moeurs”, mais precisamente da série “Scènes da la vie de province” e constitui o seu romance mais famoso e mais extenso. O romance foi publicado em três partes entre 1836 e 1843. Este romance conta a história de Lucien Rubempré (Benjamin Voisin) que nasceu como Lucien Chardon (Chardon era o nome do pai que ele rejeita e quer trocar pelo nome da mãe; Rubempré) em 1798 em Angoulême e morreu em Paris em 1830 depois de ter sofrido as vicissitudes contadas no romance e magistralmente adaptadas ao cinema por Xavier Giannoli, um realizador francês nascido na década de 70 que tem no seu curriculum outros filmes interessantes, nem sempre conhecidos como mereceriam.

O filme porém não integra todo o romance e conta a história do 1º e 2º livros (o mais importante) começando com Lucien como funcionário de uma tipografia e com vincadas tendência para a palavra e a escrita, nomeadamente poesia que resolve demitir-se para procurar melhor vida na cidade, Paris, depois de ser descoberta a sua relação com Luisa de Bargeton (Cecile de France) uma dama da nobreza da província que farta de ser infeliz com o seu marido por este dar mais atenção aos cavalos e à caça do que a ela, cedendo aos encantos de Lucien e às sua declarações em verso dando origem a um caso de amor intenso que preenche a vida de ambos. Quando o caso é conhecido pelo marido de Bargeton, ambos são obrigados a fugir e fogem juntos cometendo um grave “pecado” para os preceitos da época que poe em causa a o comportamento de Bargeton no contexto da nobreza reconhecida pela sociedade parisiense.

Decorrente disso, eles são obrigados a separar-se e Lucien fica entregue à sua sorte numa cidade totalmente desconhecida e com ideias de pureza e de escrita completamente desajustadas à vida real da época. Inicialmente lady Bargeton tenta protege-lo mas ele comporta-se de modo ridículo na ópera que justifica sua prima a marquesa d’Épard (Jeanne Balibar) a abandoná-lo para não se comprometer diante da alta sociedade parisiense, o que o faz aperceber-se da sua condição miserável nos meios mais elegantes da sociedade parisiense.

Ele fica assim entregue a si próprio, muito embora o marido da marquesa d’Èpard lhe tenha arranjado um lugar onde ficar e lhe tenha dado algum dinheiro para os primeiros tempos que de seguida lhe é roubado devido à sua inocência em o guardar em casa e sair sem ele. A partir daqui vê-se a ascensão atribulada da sua pessoa como jornalista, da qual não me vou deter em pormenores, ao seu romance com Coralie (Candice Bouchet), á sua perda de valores com que largou a província e onde foi educado, e duma maneira geral à entrada na sociedade parisiense que inicialmente o recusou, usando nos mesmos degraus que foi aprendendo na sua dura luta pelo pão de cada dia. Todavia o sucesso cega, ele começa a gastar mais do que ganha e rapidamente volta à estaca zero, volta ao início, mas com uma grande lista de inimigos e de credores que o fazem voltar à província, a Angoulême, que é onde o filme termina.

O terceiro livro não faz parte do filme e conta o seu ressurgimento já com a experiencia entretanto obtida, que o faz voltar a Paris e morrer calmamente em 1830. De facto a parte mais significativa desta história é o segundo livro onde o filme magistralmente encena a sociedade da época, a evolução social do jornalismo e a sua relação com a política, o dinheiro, a nobreza, os costumes, mostrando-nos o que eram as trapaças, a falta de respeito com o próximo onde Dauriat (Gérard Depardieu) um editor negreiro, era o expoente máximo, da maledicência mútua para a qual não fazia qualquer falta a inexistência de redes sociais como hoje as conhecemos, sendo nesta vivencia social que o filme mais se destaca ao apresentar-nos uma caricatura da sociedade desta época.

Todo o filme está muito bem feito, com decors muito bem construídos, filmagens à luz de velas e muitos atores secundários que compõem a Paris fervilhante de 1800 com o aparecimento do que mais tarde se vem a chamar de Boulevards. É um filme com uma duração de 150 minutos e uma narrativa história rica em pormenores que nos são narrados ao longo de toda a história, que recomendo sem reservas.

Tem estreia prevista em sala dia 20 de Janeiro

Classificação: 8 numa escala de 10

 

13 de janeiro de 2022

Opinião – “A Vida Extraordinária de Louis Wain” de Will Sharpe

Sinopse

Esta é a extraordinária história verídica do excêntrico artista britânico Louis Wain (Benedict Cumberbatch), cujas imagens lúdicas, às vezes até psicadélicas, ajudaram a transformar para sempre a perceção do público sobre os gatos. Passado entre o final de 1800 até a década de 1930, o filme acompanha as incríveis aventuras deste herói inspirador e anónimo que, ao procurar desvendar os mistérios "elétricos" do mundo, pretendia compreender melhor a sua própria vida e o profundo amor que o uniu à sua mulher, Emily Richardson (Claire Foy).

Opinião por Artur Neves

Fazer um biopic sobre alguém que mesmo sendo anónimo para a maioria do público, devido a ficar mais ou menos esquecido entre os outros factos que com ele conviveram entre o século XIX e XX em que é difícil conhecê-lo e recordá-lo, não é somente evidenciar os factos mais significativos da sua vida, especialmente o período em que conhece o amor para a vida e tem o único tempo feliz ao viver esse amor, na época até mal visto. O objeto do seu amor Emily Richardson (Claire Foy) pertencia a uma classe inferior à dele e a sua paixão não foi apoiado pelas irmãs e pela mãe que desde cedo tudo fizeram para complicar a relação.

Ela cedo morre vítima de um cancro e depois disso o filme perde gás em direção a um final já conhecido (o filme começa por nos apresentar Louis Wien já doente) sem um esforço de enaltecimento do seu trabalho que continua mesmo durante essa fase.

Aliás Louis Wain é um jovem com algumas particularidades a nível mental, (hoje seria considerado hiperativo) que desenha a duas mãos simultaneamente fazendo na época um desenho, uma ilustração, perfeita de uma pessoa ou situação sendo como tal útil para ilustrador de um jornal ou revista, numa altura em que ainda não havia fotografia e o desenho era o elemento que figurava o acontecimento. Aliás essa evolução técnica da fotografia veio roubar-lhe emprego e ocupação, para ele que mantinha uma casa com a mãe e as suas cinco irmãs das quais Caroline (Andrea Riseborough) a mais velha, tinha as funções de governanta e desde cedo que ficou desagradada com a presença de Emily em casa e mais se opôs ao amor entre os dois.

Durante o namoro e posterior casamento há algo de doce na aceitação de Louis por Emily pois ela absorve as suas insuficiências e serve de amortecedor perfeito para a sua inesgotável energia, aceita que apesar de ter casado sem o apoio da família ele continue a suportar os dois orçamentos da sua casa e da mãe e irmãs. O amor entre ambos é completo e poderoso, eles são particularmente cúmplices e é aqui que se dá o aparecimento de Peter, o gato de Emily que desperta nele uma imaginação multiplicadora de imagens inéditas de gatos que virão a constituir a sua obra central e deixará um legado a toda a sociedade que motivará a nossa aceitação pela adoção de felinos.

O personagem de Louis Wien está magistralmente desempenhado por Benedict Cumberbatch que teve em 2021 um ano de glória na sua carreira se contarmos com a sua interpretação em “O Poder do Cão” já comentado nestas crónicas, em que se nota a dedicação de um ator em interiorizar o espírito do personagem, tanto na idade de novo, como posteriormente quando já vencido pela doença, mostrando-nos com verossemelhança a degradação devida à idade e à doença que ele tentou controlar em novo, multiplicando-se em tarefas e atividades que serviam para lhe cansar o corpo que lhe exigiam movimento constante. Outra coisa que reputo de qualidade neste filme é o trabalho de caracterização tanto em Louis como em Emily, devido a ser pormenorizada e muito cuidada.

Todavia o filme embora com seguimento seguro e uma narração eficiente de Olívia Coleman, desenvolve-se num formato 4 x 4, pouco usual nos tempos de hoje, com uma fotografia muitas vezes desfocada e baça nas cores que são a principal atração do trabalho de Louis Wien. A mudança de planos ou a confrontação com cenas fora do presente faz-se de maneira estranha fazendo deslizar os traços da fotografia de forma pouco ortodoxa, provocando que nos perguntemos o porquê de tal enviesamento. O filme e a história são interessantes mas perdem valor pelo modo de realização utilizado.

Tem estreia prevista em sala em 20 de Janeiro

Classificação: 5 numa escala de 10

 

12 de janeiro de 2022

Opinião – “Nightmare Alley – Beco das Almas Perdidas” de Guillermo del Toro

Sinopse

Quando o carismático, mas sem sorte, Stanton Carlisle (Bradley Cooper) se torna querido para a vidente Zeena (Toni Collette) e o seu marido mentalista Pete (David Strathairn) numa feira itinerante, ele ganha um bilhete dourado para o sucesso, usando o conhecimento adquirido com eles para ludibriar a elite rica da sociedade de Nova Iorque dos anos 1940. Com a virtuosa Molly (Rooney Mara) lealmente ao seu lado, Stanton planeia enganar um magnata perigoso (Richard Jenkins) com a ajuda de uma psiquiatra misteriosa (Cate Blanchett) que pode vir a ser sua melhor adversária.

Opinião por Artur Neves

Guillermo del Toro depois do seu premiado filme “A Forma da Água” que sinceramente não me agradou e muito menos para ser destacado com o Óscar de 2017, que me pareceu ser mais uma carolice da Academia Americana nunca justificada, apresenta-nos agora este “Beco das Almas Perdidas” com base na novela com o mesmo nome “Nightmare Alley” de William Lindsay Gresham escrita em 1946 e levada ao cinema numa obra com o mesmo nome realizada por Edmund Goulding em 1947. Temos portanto um remake, quiçá mais inteligente segundo um argumento do próprio Guillermo del Toro, transformado num neo-noir thriller psicológico que decorrente da supremacia dos meios tecnológicos atuais deve acrescentar mais emoção e suspense a uma história com uma base interessante sobre os propalados poderes da mente. Todavia a versão do primeiro filme que passou em França foi rebatizada com o nome de “Le Charlatan” comprovando que ontem tal como hoje, aqueles “poderes” são uma falácia.

Logo no início do filme temos a cena de abertura em que um homem empurra para um buraco no chão de uma casa um volume que parece um cadáver, arruma as suas coisas, acende um cigarro, deita o fósforo para o buraco donde começam a emergir chamas que consomem toda a casa e ele calmamente se afasta da casa para um destino sombrio. Não conhecemos nada sobre o sítio, a casa, o homem nem os seus motivos o que pode ser classificado como o início perfeitamente adequado a um noir inspirado nos clássicos. No seu caminho, que pode ser entendido como um recomeço, ele apanha um autocarro e sai no fim da carreira, depois de ser acordado por uma feira itinerante para onde ele se dirige à procura de trabalho, ou de algo para ganhar uns cobres a fim de se alimentar. Todo o ambiente é escuro, com detalhes macabros. Ele consegue uma ocupação que vai potenciar a descoberta de si como mentalista, e dos amigos e companheiros de espetáculo que o ajudam a compreender que pode escalar a sua ocupação para outro nível de sociedade e de clientes.

Stanton “Stan” Carlisle (Bradley Cooper) recebe todas as indicações de Pete (David Strathairn) e sua mulher Zeena a Vidente (Toni Collette) que lhe ensinam toda a verdade por detrás do mentalismo de feira recheado de pistas verbais que criam a ilusão ao espectador crente que ele está a entrar no cérebro e a conhecer os seus segredos e angústias. O elenco está cuidadosamente escolhido, Toni Collette e David Strathairn como o par da magia, ela cartomante, ele o mentalista de feira. Molly (Rooney Mara) é a rapariga elétrica por quem Stan se apaixona depois de incrementar o seu número com um cenário que prende mais a atenção dos espectadores. Em pouco tempo ambos se apaixonam e separam-se da companhia para procurar rumo numa vida a dois.

O argumento de Guillermo em conjunto com Kim Morgan, um historiador de cinema, seguem os passos da novela original mas os ambiente onde se movem os personagens, os da feira mais pobres e sujos e os da classe alta, mais sofisticados e ricos, vivendo nas melhores casa da época recriadas com cuidado e requinte tanto nas superfícies brilhantes como nas decorações ArtDeco das casas em que vivem. Toda a história decorre com o cuidado e pormenor que os 150 minutos de filme permitem. A música utilizada é deliciosamente barroca em sintonia com os cenários e os figurinos da época impecavelmente produzidos. O cinema de del Toro vale-se de imagens com beleza dura e brutal que ele não tem pressa de as mostrar sem ser na altura certa, na altura em o clímax da sua história explode em sangue, neve e morte, numa boa interpretação de Bradley Cooper. Muito interessante, gostei e recomendo.

Classificação: 8 numa escala de 10

Tem estreia prevista em sala em 27 de Janeiro

 

10 de janeiro de 2022

“Best-Sellers” de Lina Roessler

Sinopse

Lucy Skinner (Aubrey Plaza) herda do pai uma seleta editora, mas a ambiciosa aspirante a diretora quase afunda a empresa com uma série de péssimos livros que recebem críticas negativas. Quando descobre que Harris Shaw (Michael Caine), um escritor recluso, rabugento e entorpecido pelo álcool, que inicialmente pôs a editora no mapa, lhe deve um livro, vê nele a tábua de salvação, tanto comercial como crítica.

E o momento não podia ser mais perfeito. Harris deve dinheiro e tem um novo livro que ele próprio odeia. Lucy fica eufórica, até descobrir que o antigo contrato de Harris estipula que ninguém pode rever o seu trabalho. Porém, em troca, tem de fazer uma digressão para promover o livro. E assim nasce a digressão literária do inferno, onde a fama não é igual a fortuna, os seguidores do Twitter valem zero e o legado que se tenta defender pode ter nascido de mentiras que não poderão ficar guardadas no passado.

Opinião por Artur Neves

Este “Best Sellers” vale pela aparição de Michael Caine com os seus 89 anos bem medidos e bem usados nos seus mais de 130 filmes ne curriculum, em que presumo, deve dar-lhe o privilégio de trabalhar só quando o argumento o diverte e onde pode exibir ser prejuízo para o papel, o seu olhar descaído e o seu sotaque inglês de classe trabalhadora média baixa, algo diferente do Inglês tradicional de Londres, o seu sotaque cockney que já lhe serve com imagem de marca e de identificação de origem.

Em termos de atuação Harris Shaw (Michael Caine), traz o seu melhor para o personagem de um romancista britânico, velho, com pouco cuidado com a sua pessoa, forte consumidor de álcool enquanto fuma o seu charuto, recluso de memórias na casa desarrumada e em ruínas, em que vive e sofre a solidão pela morte da sua mulher, acompanhado de um gato que apesar da pouca atenção com que o trata é o único elemento vivo que o acompanha. Harris está zangado com tudo e com todos e mostra bem esse desagrado nos avisos que coloca na porta de entrada e nas traseiras para que se afastem todos os que o procuram.

Uma entusiasta do mundo dos livros Lucy Stanbridge (Aubrey Plaza) herdou de seu pai uma editora independente em Nova Iorque, (algo muito improvável hoje em dia) outrora promissora, mas agora com as múltiplas alternativas ao dispor para ler livros já teve dias melhores. Os jovens de hoje não entendem o valor dos livros, a importância de os folhear, de os conhecer na sua integridade, considerando que atualmente os meios eletrónicos e as redes sociais determinam o que se lê, o que é importante, o que marca, o que vale a pena, com duas palavras e pouco conteúdo. Ela porém, está determinada a salvar o legado de seu pai e a marca da livraria, pelo que entende que seria o aparecimento de um Best Seller o elemento capaz de operar o milagre. Para isso procura um êxito antigo e propõe-se encontrar o seu autor. Todavia, quando ela encontra a obra que tornou famoso o seu pai e projetou o autor do livro, fica horrorizada ao ver que ele se tornou um bêbado, velho, e mais famoso pelo seu comportamento excêntrico do que pelo seu valor literário. Porém a necessidade une-os, ela precisa de dinheiro e ele tem um novo livro chamado “The Future is X-Rated” que com alguma dificuldade e quezílias ela consegue que ele promova para o benefício de ambos.

Lina Roessler é uma realizadora de primeira viagem, uma estreia em longas metragens, tendo apenas até agora dado corpo a três pequenos filmes curtos, mas não se pode dizer que saia mal da empreitada. Apoiada por bons desempenhos anteriormente citados e um secundário de peso, Scott Speedman como (Jack Sinclair) que quer conquistar Lucy para a convencer a vender a editora, desenvolve uma história pouco verosímil mas com momentos doces entre Harris e Lucy que com a convivência a que a digressão literária promoveu, a diferença de idades faz despertar entre ambos sentimentos de pai e filha e as revelações que são proferidas por Harris fazem-nos descobrir a verdade sobre o seu pai e reconhecer os motivos de Shaw que justificam a sua posição de descrença e revolta. A história também refere algo interessante sobre a morte da alfabetização pelos livros e como do nada, nascem as celebridades nas redes sociais apenas porque são faladas e são os meios que os podem fazer nascer e acabar. O final é com uma surpresa adequada á temática e se não houver mais nada para fazer, porque não vê-lo?...

Estreia em sala no dia 13 de Janeiro

Classificação: 5 numa escala de 10

 

22 de dezembro de 2021

Opinião – “O Acontecimento” de Audrey Diwan

Sinopse

França, 1963. Anne é uma aluna jovem e brilhante com um futuro promissor pela frente. Mas quando engravida, vê desaparecer a oportunidade de terminar os estudos e escapar aos constrangimentos das suas origens sociais. Perante a aproximação dos últimos exames e a barriga a crescer, Anne resolve tomar medidas, ainda que tenha de enfrentar a vergonha, o sofrimento e se arrisque a ir para a prisão. Uma adaptação do romance homónimo de Annie Ernaux, que aborda a sua experiência com o aborto quando este ainda era ilegal em França nos anos 60.

Opinião por Artur Neves

Esta história passou-se em França no início a década de 60 e relata na primeira pessoa os danos físicos e psicológicos com a lei iníqua que vigorava na época, mas o princípio ainda existe inculcado nos espíritos conservadores que mantém vivas filosofias extintas por direito. Como pode ser possível e legítimo negar a uma mulher o direito de decisão sobre o seu corpo e sobre a sua vontade?... pode… e não está muito longe de nós… basta lembrarmo-nos de alguns dos países pertencentes à união europeia, que anteriormente estavam ligados ao extinto bloco soviético, assim como as políticas de conceção ligadas às religiões islâmicas. Este filme é um libelo baseado na memória de quem sofreu isso na pele e publicou o seu testemunho em forma de livro.

A história está muito bem contada através do personagem de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) que mostra a ansiedade, o terror e a incapacidade de solução para o seu problema à medida que as semanas passam. É chocante observar com toda a crueza o seu desespero crescente e quase insuportável ver a sua cedência a esse desespero através de tentativas perigosas que ela decide experimentar no seu corpo. Em todo o drama da sua história ela esteve sempre sozinha, entregue aos seus medos, à sua vergonha e á culpa imposta por uma sociedade rígida e patriarcal. Os médicos a que tinha acesso não violavam a lei (que vigorou até 17 de Janeiro de 1975) e os mais extremistas mentiam no sentido do tratamento prescrito para provocar dificuldades acrescidas à vontade das suas pacientes.

O filme está bem construído, apoiado numa montagem fluida que nos mostra uma narrativa em forma de corrida conta o tempo e transcreve muito bem toda a pressão sobre Anne à medida que as semanas passam, como um rolo compressor que destruirá tudo á sua passagem, os seus projetos, os seus desejos, o seu futuro, porque se for denunciada será presa e perderá a possibilidade de evoluir socialmente. Nada tem mais importância para Anne do que a realização desse aborto, as aulas já não a motivam, a família fica mais longe e os amigos não têm soluções nem contemplação para o seu segredo, só essa ideia obsessiva a move como uma psicose angustiante que dia a dia a isolará mais do mundo que era o seu.

O cinema já abordou este tema anteriormente como em “Uma Questão de Mulheres” de Claude Chabrol em 1988, ou “4 Meses; 3 Semanas e 2 Dias” de Cristian Mungiu em 2007 em que reporta a ajuda de uma mulher a uma amiga num caso de aborto ilegal na Roménia dos anos 80, mas nunca nos tinha oferecido uma abordagem tão direta da violência que está intimamente ligada a este ato, violência física que implica a enorme resistência de uma mulher que deseja desfazer uma construção do próprio corpo e desfrutar plenamente da sua vontade e da sua liberdade individual para salvar o seu futuro, numa França misógina e conservadora que exclui e condena quem prevarica, tornando-se para Anna uma questão de sobrevivência. Bem estruturado e muito bem interpretado. Venceu o Leão de Ouro do festival de Veneza 2021. Recomendo vivamente.

Tem estreia prevista em sala no dia 6 de Janeiro de 2022

Classificação: 8 numa escala de 10

 

18 de dezembro de 2021

Opinião – “The King's Man: O Início” de Matthew Vaughn

Sinopse

Enquanto um conjunto dos piores tiranos e mentores da história do crime se reúnem para planear uma guerra para exterminar milhões, um homem deve correr contra o tempo para os deter. Descubra as origens da primeira agência de inteligência independente em "The King's Man: O Início".

Opinião por Artur Neves

O cinema reúne e possui a infinita capacidade de exercer a sua visão da história recente ou passada da maneira que mais lhe convém, mas decorrente dessa liberdade também deve assumir a obrigação de não se afastar dos factos tão completamente ao ponto de os substituir por uma macacada que só remotamente, em nomes de intervenientes e datas se reportem a essa história que pretende abordar por um ponto de vista diferente, ou como motivo para uma ficção atual fundamentada no passado. Nestes termos o cinema nega uma das suas mais nobres missões que é ser; um veículo lúdico de cultura.

Se cito isto é por respeito ao público alvo, maioritariamente jovem e com interesses bem diferentes das longínquas razões que fundamentaram a 1ª guerra mundial, que pelo desconhecimento dos factos reais e de nem sequer lhe sentirem os ecos políticos ou qualquer informação sobre o cheiro fétido das trincheiras e dos gaseados que por lá morreram, poderem na sua inocência, pensar, que o que lá se passou tem alguma relação com a macacada de que este filme se serve para se alimentar. Para todos esses, eu recomendo verem urgentemente “1917” de 2019, realizado por Sam Mendes e já comentado neste blogue.

Posto isto, podemos então referir que Matthew Vaughn, realizador e argumentista desta prequela, possivelmente entusiasmado pelo relativo êxito de “Kingsman: O Serviço Secreto” de 2014 onde Colin Firth armado em agente secreto muito British, elegante e bem vestido, mata secamente um extremista de forma pouco convincente, e de “Kingsman: O Círculo Dourado” de 2017 mais agitado, barulhento e estúpido que o primeiro, assume esta realização retrocedendo na linha do tempo, começando na África do Sul e na guerra com os Bóeres, (antigos colonizadores britânicos que queriam dominar o território e foram os responsáveis pela política de apartheid que durante muitos anos dominou o povo e o país) e termina no conflito europeu da 1ª guerra mundial. Honra lhe seja feita pelo menos, ao referir o triunvirato absolutamente louco que dominava a Europa na época, entre o rei George da Grã-Bretanha, o Kaiser Wilhelm da Áustria e o czar Nicolau II da Rússia, todos primos entre si pela existência de casamentos consanguíneos nas famílias imperiais que queriam manter o seu poder à custa de cruzamentos restritos, sempre combinados, entre os membros dessas famílias. É essa loucura tresloucada que faz o Duque de Oxford, Orlando (Ralph Fiennes) pretender constituir uma equipa, que operando em segredo e no mais rigoroso sigilo de meios, possa construir a paz e o progresso num mundo dominado por psicopatas e burocratas, embora nobres e aristocratas super ricos.

Do lado da Rússia, quem dominava a família imperial e a submetia à sua vontade era um monge religioso Grigori Rasputin (Rhys Ifans) místico, déspota e infame em todos os aspetos que mantém até hoje alguma dúvida sobre os seus reais poderes mediúnicos, não se parece nem de longe, com a caricatura carnavalesca de olhos esbugalhados que contracena com o Duque de Oxford quando este o pretende matar e trava com ele uma luta em forma de balet dançante que se aprecia com gosto, mas que não retrata de modo algum o poder e a discricionariedade do místico déspota. Todavia do ponto de vista do filme, encarado somente como uma inconsequente brincadeira para nos ocupar durante 131 minutos o personagem construído por Rhys Ifans está fabuloso, com uma cena de lambidela que vai ficar nos anais do cómico escabroso. Não tem é qualquer relação com o personagem que lhe deu origem e para quem não conhece o terror que foi Rasputin pode até branqueá-lo.

Deste modo o filme de Vaughn apresenta-nos, sobre uma capa de seriedade, um humor sem sentido, com algumas piadas no limite do aceitável, com alguns momentos pretensamente sérios, especialmente com o personagem de Ralph Fiennes, que podemos dizer que “carrega o filme às costas” de tão extensa que se torna a sua presença e faz o melhor que pode e sabe para imprimir alguma dignidade ao processo. Como entretenimento puro o filme até funciona razoavelmente com cenas de ação emotivas, excessivamente construídas é certo, mas ainda assim compatíveis com a diversão pura que pretende, quase recriando o ambiente dos super heróis que de todo, não são para aqui chamados. O que trama a história é a sua premissa ridícula, incorreta, deturpadora da realidade mas que a faz parecer satisfeita consigo mesmo, o que de todo não merece.

Tem estreia prevista em sala em 22 de dezembro

Classificação: 4 numa escala de 10