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14 de abril de 2022

Opinião – “Traições” de Arnaud Desplechin

Sinopse

Um escritor americano que vive na Europa. Philip ouve as mulheres... A sua amante que o visita regulamente no apartamento que lhe serve como refúgio... Uma aluna que amou noutra vida... Uma antiga amante internada num hospital em Nova Iorque...

Opinião por Artur Neves

Um escritor que está preparando um livro acerca da particularidade do amor recebe em casa uma amante que discute com ele os pormenores do amor que ambos vivem. Eles são os mais ousados, ela, Léa Seydoux, a amante inglesa, trava com ele todos os pormenores da sua relação tanto nos aspetos íntimos como na relação que ambos constroem analisando com propriedade as suas vantagens que extraem da sua relação. Ela é terna e exibe sempre um sorriso para ele mostrando que para a sociedade o número de adúlteros é uma condição em crescimentos e colocando para ele, que é casado, que a quebra do pacto de confiança de exclusividade não é outra forma de se sentir vivo, considerando que a relação presente já não lhe transmite o que ele procura duma relação.

Arnaud Desplechin um diretor francês, do qual não encontro muitas coisas interessantes para nomear, pegou no romance Deception/Engano de Philip Roth, e não considerou as diferenças de tradução entre as duas línguas nem tão pouco as diferenças de conceitos que intermeia os dois idiomas para nos apresentar este filme que devido a essas duas diferenças poderiam ser mais interessantes. O principal do filme é uma grande serie de diálogos que tecem os pergaminhos das suas escolhas, bem como das suas atitudes, no corpo de personagens franceses que não estamos habituados a entende-los como tal o que nos faz vê-los como estranhos. O intenso texto de diálogos que íntegra as conversas entre os personagens apresenta na sua estrutura algo mais intensos que não são visíveis nos sorrisos em determinadas aturas que e pontuação e as pausas podem reforçar.

Nós aceitamos Filipe (Denis Podalydès) como um profundo interessado nas justificações da sua amante Léa Seydoux, à qual Desplechin não lhe atribuiu um nome, sendo o primeiro um expatriado americano e a segunda na sua língua nativa como se as conversas entre eles seja aceites como parte do que Filipe estava esperando ouvi-los, extrapolando para Rosalie (Emmanuelle Devos) uma a outra relação que ele tinha e que cuidava com uma atenção especial devido à sua doença, ou também a (Anouk Grinberg) sinalada como o Repouso de Filpe e (Madalina Constantin) denominada como La Tchéque, que completam o conjunto das mulheres que integram o leque que com ele convivia deixando para o fim a sua verdadeira mulher que embora aparece várias vezes só no fim é que que toma o seu definido lugar provocando um linguajar que que não nos convence de tanto o vermos falar daquela maneira apenas para contrariar os conceitos que Léa Seydoux verborreia em tantas atitudes uma vezes mais apaixonada, outras menos, mas todas em cenas e padrões que tentariam representar com ardor a jactancia do seu amor.

Devido às suas origens e sem respeito por elas, Desplechin faz Filipe assumir uma batalha de fantasia quando o retrata no presente a responder ás questões de Seydoux, pelos seus argumentos de abuso insensíveis (não esquecer que o cinema já teve uma organização chamada #MeToo) particularmente de abuso a mulheres, muito longínquo do tempo em que o escritor Fhilip Roth escreveu os argumentos que não podem hoje serem auscultados a mesma maneira. Desplechin quer ser fiel ao autor original pelo que introduz alguma graça no texto original (é uma maneira astuta) mas ainda assim é um modo meta textual de atualizar o material colocando-o no circulo especificamente francês quando todo aquelo desiderato é tão verdadeira em cada raça como no resto do mundo de acordo com o seus parâmetros a que estamos habituados a ver.

Toda a história assenta no diálogo Filipe / Seydoux enquanto os outros fazem parte do segundo mundo onde Desplechin faz com que ele procure as suas razões para escrever o livro que aparece como pronto no fim do livro. É ai, na apresentação pública do livro que Seydoux o visite, compra o original e sai sem outra palavra como que a dizer-lhe que apesar do seu diálogo ele não teve mais do que a recolha das notas para um livro que se apresenta. É como que ela considerasse “Decepcion” (o nome original do livro e origem) como o termo mais capaz para todo o trabalho e Filip, porque as ambiguidades que o filme sugere obrigariam a conclusões claras. Não é fácil entender-se o objetivo, muito embora a subtileza do texto nos leve a entender as verdades que são gerais e universais. Para vê-lo recomendo uma disponibilidade mental que nos deve acompanhar todo o filme.

Tem estreia prevista em sala dia 21 de Abril

Classificação: 6 numa escala de 10

 

10 de março de 2022

Opinião – “Petit Maman – Mamã Pequenina” de Céline Sciamma

 

Sinopse

Nelly, 8 anos, acabou de perder a avó e está a ajudar os pais a esvaziar a casa de infância da mãe. Explora a casa e a floresta à volta, onde a mãe, Marion, costumava brincar e onde construiu uma cabana. Um dia, a mãe parte sem explicações. E Nelly conhece uma menina, mais ou menos da sua idade, na floresta. Está a construir uma cabana e chama-se Marion.

Opinião por Artur Neves

Céline Sciamma é uma realizadora de origem francesa que à sua responsabilidade apresenta até esta data 5 longas metragens, (além de 2 curtas e outras obras de escrita) das quais, a anterior a esta; “Retrato de uma Rapariga em Chamas” de 2019 já foi apreciado nestas crónicas e por mim mereceu rasgados elogios pelo seu conteúdo e pela forma arrojada, sensível e naquele contexto autenticamente delicada, defendeu o amor entre duas mulheres que se conheceram acidentalmente através de um contrato de pintura do retrato da dona da casa.

Agora traz-nos esta história para crianças sobre uma menina que acompanhou à sua maneira a morte da sua avó e viaja com os pais para a casa dela situado no campo, que eles se propõem esvaziar. A menina; Nelly (Joséphine Sanz) circula por ali, (em vez de estar na escola, pois com 8 anos e no inverno seria o que me parece normal) pelas cercanias da casa e do bosque e dá de caras com outra menina Marion (Gabrielle Sanz) na difícil tarefa de construir uma casa de ramos junto a uma árvore. As duas tornam-se amigas (o que não é estranho porque ambas são irmãs gémeas na vida real) e ao visitar a casa de Marion observa que a casa dela é um espelho da sua.

Sem perguntar a que se deveriam as semelhanças entre as casas ela assume, através do que apreendeu das conversas entre os pais sobre a infância da mãe quando ela não existia e a avó era viva, que de alguma maneira Marion seria a mãe dela num tempo passado e logo ela seria a sua filha no futuro. Para lá das ternuras e afinidades entre as meninas eu pergunto se seria lógico este pensamento numa menina de 8 anos. Pergunto ainda para que crianças é que esta fábula se destina, pois se os adultos podem aceitá-la com um sorriso, introduzindo uma fantasia que a história não nos transmite, as crianças não sei como alcançarão este sentido. Todo o filme se passa no mesmo local, nos dias atuais e se embora introduzir-mos a fantasia dos “fantasmas vivos” ou outra apreciação criativa, a história poderia ter acontecido um pouco antes, o que não altera o fundamental.

Por outro lado, os personagens infantis, são ambos de uma correção absoluta, sem traumas, sem problemas que perturbem o seu comportamento ordeiro, seguindo uma narrativa que pode levar-nos a considerar que tudo se passa no espírito de Nelly, mas nada na história nos leva objetivamente a pensar isso, quando as suas falas e os seus raciocínios são avançados para a idade e não vemos quando ela frequentou ou se frequenta a escola. Assumo que seja defeito meu não compreender a sensibilidade da infância como Sciamma nos apresenta, pois no aspeto cénico a tomada de vistas é irrepreensível, elas são as personagens principais, sempre vistas de frente, ao nível dos olhos, para nos impressionar com a sua candura e humor natural dos seus verdes anos.

Talvez por serem irmãs gémeas a representação entre elas flua tão bem, sem qualquer sobressalto visível, num enquadramento perfeito em que tudo para além das meninas é deixado deliberadamente vago. As interpretações dos pais adultos são pontuais, aparecendo aqui e ali para que não pensemos que ficaram sozinhas, todavia as suas interações com elas são, breves, avulsas e mais uma vez distantes da sua manifesta sensibilidade. Esta história terá com certeza os seus apreciadores sobre a delicadeza da infância e a amizade que daí resulta, entre os quais não me incluo. Durante os seus 72 minutos de duração pareceu-me que falta assunto, ou pelo menos pistas para nos enquadrar na trama do argumento.

Tem estreia prevista em sala dia 17 de Março

Classificação: 4 numa escala de 10

27 de outubro de 2021

Opinião – “Três Andares” de Nanni Moretti


 

Sinopse

Três Andares foi um dos filmes mais consensualmente aplaudidos do último festival de Cannes, onde Moretti regressou em competição com esta história de um prédio de Roma habitado por três famílias que, ao longo de dez anos, têm de lidar com situações dolorosas, difíceis e desconfortáveis. As escolhas que cada um faz vão determinar o curso da sua existência. Uma adaptação do romance do escritor israelita Eshkol Nevo, o filme conta com as magníficas interpretações do próprio Nanni Moretti, Margherita Buy, Riccardo Scamarcio e Alba Rohrwacher.

Opinião por Artur Neves

De Moretti recordo à 20 anos atrás o seu prémio da Palma de Ouro em Cannes 2001 com o filme “O Quarto do Filho”, onde Moretti mostrou que soube construir inquietações e estados de espírito intensos relativamente aos valores familiares, quando toda a família sofre o revés da morte do filho num acidente de mergulho. A história densifica-se quando Moretti (que protagoniza a interpretação do pai) entra numa espiral depressiva através da obsessiva insistência em projeções contrafactuais que em nada ajudam a realização do luto, nele próprio como na família, induzindo outros males.

Desta vez Moretti fez tudo diferente. Com base no romance “Three Floors Up” (que dá nome ao filme) escrito pelo israelita Eshkol Nevo e originalmente ambientado em Tel Aviv, enveredou por nos mostrar os infortúnios e os incidentes lamentáveis que ocorreram aos inquilinos de três andares de um prédio situado numa zona de classe média suburbana de Roma e das consequências desses eventos ao longo de 10 anos, sob uma abordagem que tresanda a melodrama, enfatizando o lado negativo como se não tivesse havido nada de recomendável e de auspicioso durante esse mesmo período. É tudo infortúnio e desgraça, que embora apresentem uma sequência lógica, são analisados pela superficialidade dos acontecimentos, quase dando a entender que Moretti reuniu o cardápio da desgraça e “meteu tudo no assador” para nos fazer puxar a lágrima ao canto do olho.

Na sua nota de realização sobre o filme, Moretti refere que quis abordar “…temas universais como a culpa, as consequências das nossas escolhas, a justiça e a responsabilidade que acompanha a parentalidade” e reconhecemos que estas vertentes estão espelhadas nas histórias, através de eventos concentrados naquelas três famílias, mas que nos soa a falso, revelado pela manipulação da realidade para nos encharcar com o melodrama de todas aquelas felicidades.

E começa logo no início do filme, com o irreverente filho Andrea (Alessandro Sperduti) do austero juiz Vittorio (Nanni Moretti), a provocar um acidente fatal que causa a morte de uma mulher que atravessa uma passadeira de peões, devido a conduzir embriagado e em alta velocidade ao chegar a casa, enquanto, ao mesmo tempo, na mesma rua Monica (Alba Rohrwacher) irremediavelmente grávida, se desloca a pé para o hospital para dar à luz o filho do seu marido ausente devido a obrigações profissionais que o mantém fora da cidade. Monica é um pouco lerda das ideias, tem horror da solidão e tem visões criadas pelos seus sentidos que não são reais, mas que condicionam o seu comportamento. Para completar o leque, Lucio (Riccardo Scamarcio), casado com Sara (Elena Lietti) têm uma filha de 7 anos que curte uma amizade especial por um vizinho idoso que toma esporadicamente conta dela, mas de quem Lucio suspeita de ser pedófilo, sem que para isso tenha qualquer prova ou indício concreto.

Com o desenrolar da história mais personagens vão chegando construindo uma estrutura abrangente com diversas interações com os inquilinos dos três andares, mas em toda a história o espectador nunca fica envolvido com qualquer dos personagens que são abordados superficialmente, atrapalhando-se uns aos outros, com erros, tristezas, dúvidas e solidão que vivem com elas próprias e as caracterizam criando uma atmosfera redundante de tédio que não transmite uma ideia clara sobre o que pretende, nem representa satisfatoriamente o passar dos anos. Moretti costuma impregnar as suas histórias de drama, polvilhado com alguma ironia que neste filme está completamente ausente. Parece-me que a história teria resultado melhor se Moretti tivesse centrado a ação no prédio. Ao apresentar outros locais e outras envolvências a ação esbate-se e o drama fragmenta-se, embora contenha ainda boas cenas fortemente emotivas. Se é adepto de um melodrama recheado de estereótipos, então este filme é para si.

Tem data prevista de estreia nas salas em 4 de Novembro

Classificação: 5 numa escala de 10

31 de julho de 2021

Opinião – “Laços de Família” de Daniele Luchetti

Sinopse

Nápoles, início dos anos 80. Aldo e Vanda vão separar-se, depois de ele revelar que está a ter um caso. Os dois filhos são apanhados no turbilhão de ressentimento. Mas os laços que unem as pessoas são inevitáveis, mesmo sem amor. Agora, 30 anos depois, Aldo e Vanda continuam casados.

Opinião por Artur Neves

Mais uma vez os títulos atribuídos aos filmes em Portugal deturpam o sentido com que foram concebidos e realizados. No presente caso este “Lacci” (Laços) no original, reporta a história de um casal italiano da classe média em plena crise do casamento que os uniu uns anos antes. Convencionalmente eles são uma família; casados, com dois filhos menores a viverem sobre o mesmo teto, mas no seu espírito eles estão separados, propensos à infidelidade, ao rancor recíproco e à vergonha de possuírem esses sentimentos que os leva ao sofrimento, à traição, à tentativa de suicídio e ao afastamento. O romance de Domenico Starnone de 2017 (também “Laços”) que serve de base ao argumento do filme, faz uma autópsia às ligações entre estas pessoas, amarradas em erros por laços concretos e em Portugal chamam candidamente a esta excelente ficção: “Laços de Família”…

A história começa na década de 80 no meio de uma festa ao som de uma música e uma dança que se tornou emblemática daquela ápoca; a Yenka. O jovem casal Aldo (Luigi Lo Cascio) e Vanda (Alba Rohrwacher) divertem-se com amigos e em casa Aldo confessa a Vanda que está tendo um caso e não se sente bem naquela pele. Vanda lembra-lhe os seus deveres, bem como a promessa que ambos fizeram no dia do casamento. Vanda assume o papel da mulher injustiçada, reclamando os seus direitos mas com uma mágoa arrogante e preocupada com o efeito que a separação terá nos filhos; Anna e seu irmão mais novo Sandro. Eles tentam resolver essa situação no tribunal onde se estabelecem as condições da separação sem contudo se divorciarem. Aldo sai de casa para viver com Lídia (Linda Caridi) e Vanda fica em casa com os filhos ruminando a sua dor crescente que a leva a tomar uma medida desesperada, sem contudo alterar a dinâmica cruel do casal em ponto de rutura, embora sem conseguirem separar-se.

Trinta anos mais tarde Vanda (Laura Morante) é uma Vanda mais velha, amargurada pela desilusão e manipuladora de Aldo (Sílvio Orlando) punindo-o pela sua infidelidade durante todos os dias das suas vidas em comum. Aldo é agora um homem maduro, reformado depois de que a RAI lhe retirou o programa literário e de opinião que liderava, é um homem gasto, indiferente às investidas verbais de Vanda, sofredor e manso, sem por uma única vez levantar a voz para retorquir ou simplesmente defender-se das mesmas acusações de passividade e inércia de sempre.

Através de flashbacks percebemos que Lídia não teria sido má de todo e que Aldo se teria apaixonado sinceramente por ela. Vanda reconhece isso e pensa que ambos poderiam ter sido mais felizes se Aldo tivesse lutado por ela com mais convicção deixando em aberto a sugestão que a lassidão de Aldo, a sua compreensão e passividade, funcionaram como a cola do seu casamento. Veremos posteriormente que Vanda também teve outras opções embora nunca as tendo seguido ou alimentado. Todavia, o retorno de Aldo para Vanda, deu-se também por sugestão de Lídia após extinta a paixão que os juntou e os fez felizes enquanto durou.

No final, Aldo e Vanda regressam a casa de umas pequenas férias e a casa foi assaltada, tudo foi remexido e violado, até a caixa de segredo onde Aldo guardava fotografias de Lídia nua no auge da sua paixão, mas nada foi realmente roubado nem a porta arrombada e não quero revelar quem foi o autor da proeza, só quero acrescentar que nem com os filhos eles tiveram sucesso, pois todos aqueles anos de separação conjunta, ele com Lídia, ela lambendo as suas feridas e encontrando-se de acordo com o calendário estabelecido, provocou nas crianças em desenvolvimento raiva e ressentimento pelo carinho medido em horas de presença. Os pais e eles nunca foram uma família e os seus verdadeiros sentimentos explodem quando sentem que não mais precisam deles e se podem afirmar como autónimos.

No meu entender este “Lacci” é uma digna resposta europeia a “Marriage Story” “História de um Casamento” de 2019 nas desavenças entre um casal e nos distúrbios emocionais que mesmo sem querer eles legam aos seus filhos. Muito bom, recomendo vivamente.

Estreia nas salas de cinema em 05 de Agosto

Classificação: 8 numa escala de 10

 

30 de junho de 2021

Opinião – “Funeral de Estado” de Sergei Loznitsa

Sinopse

A partir de imagens de arquivo únicas, muitas inéditas, Loznitza retrata o funeral de Estaline como o culminar do culto à personalidade do ditador. A notícia da morte de Estaline, a 5 de Março de 1953, deixou em choque a União Soviética. Milhares de pessoas estiveram presentes nas cerimónias fúnebres. Observamos todas as etapas da cerimónia fúnebre, descrita pelo jornal Pravda como “a Grande Despedida”. Loznitza aborda a questão do culto à personalidade de Estaline como uma forma de ilusão induzida pelo terror. Retrata a natureza do regime e o seu legado, que continua a assombrar o mundo contemporâneo.

Opinião por Artur Neves

Este filme, embora de absoluto interesse atual para que os mais jovens conheçam a história e a verdade por detrás dela, apresenta-se limitado no seu enquadramento histórico-político, considerando que se circunscreve a mostrar os dias de luto que durou o funeral de Josef Stalin em Março de 1953 sendo constituído fundamentalmente por três partes: A receção às representações oficiais dos mais altos dignatários da Repúblicas Soviéticas integradas na URSS, as incomensuráveis procissões de muitos milhares de cidadãos russos que por toda a Rússia e repúblicas anexas visitavam a urna do ditador em Moscovo (muitos provavelmente para confirmarem que ele estava realmente morto) e milhares de outros em cada cerimónia organizada pelo partido comunista em cada capital das repúblicas integradas na URSS e finalmente pelos discursos inflamados, imediatamente antes da procissão do féretro, proferidas por; Geórgiy Malenkov, Lavrenti Beria e Vyacheslav Molotov, mas sem qualquer referência ou indicação da significância política do envolvimento destes homens no entourage que compunha o Politburo e o secretariado do partido comunista da URSS na época.

É assim o que pode chamar-se um documento ilustrativo do funeral puro e duro de Josef Stalin que terá pouca utilidade se for visto sem o conhecimento histórico, ainda que sumário da envolvência política do que foram os anos de chumbo da presidência de Josef Stalin à frente dos destinos da União Soviética desde meados da década de 1920 até à sua morte, tendo ocupado os cargos de Secretário-geral do PCUS entre 1922 e 1952 e primeiro-ministro entre 1941 e 1953 até ao dia da sua morte.

Refira-se ainda que no final do filme aparece uma nota que informa o espectador, que durante a governação de Stalin foram executados, deportados, presos e torturados até à morte mais de 27 milhões de cidadãos soviéticos e nos campos agrícolas (kolkhozes) coletivizados, morreram de fome mais de 15 milhões de cidadãos, havendo até notícias de se ter praticado canibalismo, decorrente da total ausência de meios de subsistência. Em 1956, o 20º congresso do PCUS condenou finalmente a governação de Stalin e preconizou a “desestalinização” do país.

É pois com base neste conhecimento (só disponível no fim do filme) que se deve observar com atenção os cortejos e as homenagens fúnebres dos muitos milhares de cidadãos russos, que, de rosto fechado, sem qualquer expressão significativa desfilam lentamente em frente da urna do ditador, ou em frente dos símbolos que o representam nas diferentes capitais das repúblicas da URSS. São imagens de época, algumas inéditas, mas todas muito bem tratadas, “remasterizadas” e até coloridas tecnicamente, que mostram os duros rostos do povo martirizado pelo tirano que os seus pares candidamente apelidaram de “pai do povo”.

É com esta ideia em mente, que o filme não transmite, que devem ser ouvidos os discursos finais de Malenkov, que sucedeu a Stalin e foi primeiro-ministro da União Soviética de 1953 a 1955 tendo sido forçado a abandonar o cargo por motivo da sua ligação próxima com Beria (que já havia sido executado como traidor em Dezembro de 1953) e pelo ritmo lento dado às reformas do regime e à reabilitação dos presos políticos do tempo de Stalin.

Lavrenti Beria é lembrado como o executor do Grande Expurgo de Stalin na década de 1930, tendo comandado o massacre de Katyn, no qual mais de 22 mil oficiais e intelectuais polacos foram assassinados, para lá de outros crimes de guerra. Em Julho de 1953 foi processado por prática de “atividades criminosas contra o partido e contra o estado” por perseguir e violentar mulheres e por ser responsável pelo laboratório onde eram produzidos os venenos usados contra os alegados “inimigos” do regime.

Vyacheslav Molotov é lembrado por ter sido um dos mentores pela campanha de apreensão das colheitas na Ucrânia, responsáveis pela fome e genocídio entre 1932 e 1933 e em conjunto com Beria um dos principais colaboradores de Stalin. Em 1957 foi afastado do partido por Nikita Khrushchov, por ser contrário à “desestalinização” do regime e nomeado para embaixador na Mongólia. O seu nome tornou-se célebre pela associação à arma química caseira “coquetel molotov” que foi de sua autoria, mas sim, a resposta finlandesa aos bombardeamentos soviéticos à Finlândia durante a Guerra de Inverno, que foram descritos por Molotov como sendo um “envio de alimentos” ao povo.

Visto com este sumaríssimo conhecimento histórico, ou outro mais profundo, o filme já terá algum sentido e constituirá o documento que se pretende. Sem ele, são apenas 135 minutos de um longuíssimo cortejo anónimo e sem conteúdo. Pode ser visto nas salas a partir de 1 de Julho.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

16 de dezembro de 2020

Opinião – “A Mulher que Fugiu” de Hong Sang-Soo

Sinopse

Durante uma viagem de negócios do marido, Gam-hee encontra três amigas. Visita as duas primeiras nas suas casas e a terceira encontra-a por acaso num cinema. Enquanto conversam amigavelmente, como sempre, várias correntes fluem acima e abaixo da superfície do mar.

Opinião por Artur Neves

Este é um filme de mulheres, sem história, apenas quatro mulheres com relações de amizade variáveis entre si que se encontram na sequência de Gam-hee (Min-hee Kim) ficar temporariamente sozinha como desde há cinco anos não se lembrava de ter estado.

Primeiro visita a sua amiga mais chegada, Su-young (Seon-mi Song) onde almoça com ela e com a outra amiga Young-ji (Eun-mi Lee) que faz o almoço e conversam as três sobre trivialidades da comida e da vida. Após a saída de Young-ji convive com Su-young, comenta sobre a sua vida de divorciada, sobre a casa que possui nos subúrbios de Seul, bem arranjada, confortável, num prédio moderno com todas as necessidades de que se pode lembrar. Confidencia-lhe também, que desde que casou com o seu marido nunca se tinham separado até agora, por declarada preferência deste em estar com ela todo o tempo enquanto ele desenvolvia a sua atividade literária de escritor e tradutor em casa.

Ela revela-nos e à amiga, não saber se aquilo é amor, ou o que é realmente, não quer pensar muito no assunto e não lhe tinha tocado se a amiga não lhe tivesse perguntado tão diretamente. Ambas continuam a conversar sobre assuntos quotidianos, sobre o estado em que Su-young se encontra, divorciada, sozinha, a tomar conta do seu jardim e sem outros desejos que não seja manter a sua situação inalterada, embora sinta alguma curiosidade pelo vizinho do 2º andar, também aparentemente sozinho, com quem se cruzou e falou com agrado no café local. Gam-hee passa a noite em casa da amiga que a acolhe agradavelmente.

“A mulher que fugiu” aparece nos diálogos entre as duas como sendo uma mulher da vizinhança que abandonou o filho e o marido sem motivo aparente, apenas porque não suportava mais a sua existência com a família que tinha criado e tinha optado por sair de casa para sítio incerto, desconhecido, que lhe permitisse uma existência anónima.

No dia seguinte Gam-hee despede-se da amiga e vai ao cinema onde encontra Young-soon (Young-hwa Seo) de que ficamos a saber pela conversa entre as duas, não ser propriamente uma amiga, mas antes a mulher que anos antes lhe tirou o namorado e casou com ele. Gam-hee não está zangada com ela e esse evento é já uma memória nebulosa e longínqua, todavia não sabe bem porque foi aquele cinema e ao bar do cinema, onde sabia ser inevitável encontrar-se com ela e possivelmente também com ele. De facto encontra-o nas traseiras fumando um cigarro, falam de trivialidades, não tocam no passado e despedem-se, Gam-hee sai do cinema, anda uns passos pela rua e volta para o cinema para acabar de ver o filme, cujas imagens na tela são as últimas deste filme.

Se alguma coisa nos mostra esta história (sem constituir realmente uma história mas antes o relato de um intervalo de tempo) é sobre a forma como determinadas ações da nossa vida não possuem uma razão explícita para serem executadas e se as fazemos, pode dever-se ao remorso de uma amizade abandonada, ao despeito de uma amor perdido, à curiosidade sobre um futuro que poderia ter sido o nosso, ou simplesmente, ao tédio de uma presença aliviada por uma viagem de negócios. O amor do outro nem sempre preenche o nosso vazio interior e a solidão pode significar uma independência e uma autonomia há muito desejada. Gam-hee deve ter percebido estas duas realidades simultaneamente, não sabemos se lhe dará o melhor dos usos.

Hong Sang-Soo, realizador coreano de 60 anos dirige o filme fluentemente, com diálogos simples mas claros, enquadramentos diretos aos personagens lineares que vivenciam as suas frustrações sem contaminação emocional. Todo o ambiente é sóbrio, sem exageros mas com a qualidade que qualificamos como inerente a uma vida normal. Não encanta, não arrebata, não nos envolve (até porque a língua não nos é familiar) mas é agradável de ser ver.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

21 de outubro de 2020

Opinião – “Notre Dame de Paris” de Valérie Donzelli

Sinopse

Maud Crayon, uma arquitecta falhada e mãe solteira, com um ex-marido fraco e ainda demasiado presente na sua vida, sonha com um milagre que mude esta realidade. E é então que ganha o concurso para a renovação do adro da catedral de Notre Dame de Paris.E reencontra o charmoso ex-namorado, Bacchus. Terá que revelar os seus sentimentos a ambos os ex-companheiros para poder viver feliz para sempre.

Opinião por Artur Neves

Como sempre o cinema francês apresenta-se bem posicionado na análise social e traz-nos aqui uma história que só peca por introduzir fantasia a mais, num enredo que poderia ser mais escorreito e credível sem ela, considerando que as cenas fantásticas só desviam o espectador do tema principal que se reporta ao amor vivido em relação aberta.

Maud Crayon (Valérie Donzelli) é uma arquiteta (falhada só mesmo na opinião da sinopse), mãe lutadora para providenciar a casa e a educação dos seus filhos, divorciada de coração mole, que ainda atura o pária do seu ex-marido Martial (Thomas Scimeca) que tudo faz para continuar a viver à sua custa nos intervalos em que a sua amante o expulsa de casa. Ele, sem lugar onda cair morto, recorre à piedade de Maud para dormir na casa dela, com ela na cama (porque Martial, dorme mal no sofá) fazer sexo ocasional e consentido com ela, ao ponto de a engravidar na fase mais importante da sua vida profissional.

No atelier onde trabalha recebe a informação que o projeto que lhe está entregue foi descontinuado e o oportunista do patrão quase a despede. Constrangida com a situação mas apegada à sua obra, leva para casa a maquete do seu trabalho. Simultaneamente está a decorrer um concurso para o desenvolvimento arquitetónico da praça fronteiriça à catedral de Notre Dame que interessa a todos os arquitetos, ela incluída, mas ao qual não concorre por absoluta falta de tempo com todos os outros afazeres a seu cargo.

Valérie Donzelli, a realizadora francesa e protagonista, poderia ter utilizado múltiplos expedientes no enredo, para incluir no concurso da catedral de Notre Dame a maquete feita para o anterior projeto por Maud Crayon, mas escolheu (vá lá saber-se porquê) uma fantasista viagem da maqueta levada pelo vento e depositada docemente no local de recolha das propostas concorrentes. Quando o concurso foi apreciado, foi precisamente o projeto de Maud que foi escolhido, como aliás já todos estava-mos à espera. O público sabe que está em presença de uma ficção, não é necessário atirar-lhe também com uma fantasia (bem como com outras que se seguem mais à frente) que só desqualificam as piadas subtis e as críticas sociais incluídas na história que até aqui, se apresentava dentro de padrões regulares.

Na sequência da sua vitória ela encontra Bacchus Renard (Pierre Deladonchamps) jornalista de profissão, destacado para cobrir a cerimónia da entrega do projeto, por quem Maud nutria uma carinho especial por ter sido o seu primeiro amor dos tempos de escola e correspondido por este, sem que alguma vez tivessem declarado as suas mútuas inclinações. A partir daqui o triângulo de Maud fica completo com o amor de sempre e o pesadelo atual do seu ex-marido que ela não consegue largar por ser o pai dos seus filhos e lhe ter feito outro que já vem a caminho no interior do seu ventre.

Em sequência a história desenvolve-se no dilema do amor dual, ou outro sentimento que se lhe queiram chamar, gerando situações confusas em que esta dualidade se apresenta com avanços e recuos, mas onde a problemática das relações abertas fica bem exposta à consideração dos espectadores. A concretização material do projeto da praça também conduz a cenas divertidas, com piadas de cariz sexual que nos fazem sorrir.

Valérie Donzelli não defende a bigamia, nada na história a isso nos conduz, mas ao promover o amor platónico com Bacchus e uma piedosa complacência na coabitação com Martial, parece querer abraçar dois mundos incompatíveis e impróprios, não somente pela substancia das relações em si mesmas, como pelo modo de utilização da fantasia para abordar ambos os temas retirando-lhe profundidade e seriedade na análise duma situação invulgar mas hipoteticamente possível. Adicionalmente a realizadora introduz ainda elementos periféricos à história desgarrados do tema fulcral, bem como, a propensão de todos namorarem com todos tornando o argumento disperso e multivariado.

No final, Maud transporta Bacchus na sua bicicleta voadora sobre a catedral, fazendo lembrar o regresso de ET ao seu planeta distante, mas isso foi em 1982 e noutro contexto muito diferente. Este filme estreou no Festival de Locarno e vai estrear nas nossas salas em 29 de Outubro. Tem boas piadas e uma mensagem subtil, para a qual vai a classificação a seguir.

Classificação: 5 numa escala de 10

 

30 de setembro de 2020

Opinião – “O Sal das Lágrimas” de Philippe Garrel

Sinopse

As primeiras conquistas de um jovem e a paixão que tem pelo pai. Esta é a história de um jovem da província, Luc, que vai a Paris para se candidatar à Escola Boulle. Na rua, encontra Djemila, com quem vive uma aventura. De regresso a casa do pai, reencontra uma ex-namorada, Geneviève, enquanto Djemila alimenta a esperança de o rever. Quando recebe a notícia da entrada na Escola Boulle, vai para Paris e abandona a namorada que está grávida…

Opinião por Artur Neves

Philippe Garrel é sempre igual a si próprio. Atualmente com 71 anos ele continua a divertir-se em arranjar uma narrativa sobre os factos que apresenta numa história de amor cheia de percalços, que pode ser uma história que conheçamos pessoalmente, ou por interpostas pessoas, e deixa ao espectador a responsabilidade de a mastigar, digerir e julgar de acordo a sua experiencia de vida e as suas convicções, sem interferir com a sua visão pessoal que usa apenas para mostrar como as coisas se passaram. É isto o cinema de Philippe Garrel.

A preto e branco como é hábito, Garrel conta-nos uma história de juventude, de aprendizagem da vida de um rapaz Luc (Logann Antuofermo) criado na província e com educação limitada, que ama o pai, (André Wilms) marceneiro, por quem ele nutre forte amor filial e devoção pela sua entrega a uma arte que ele pretende seguir, depois de adquirir formação complementar em Paris, na Escola de Artes e Ofícios Boulle, onde ele se candidata como aluno.

Na grande cidade, que vai implicar uma grande transformação na sua vida para fazer o exame de admissão, ele confronta-se com o despertar do amor com Djemila (Oulaya Amamra) num namoro de juventude limitado pela exiguidade de tempo em que estão juntos e pela recusa dela ao primeiro encontro a sós. Depois do exame, volta a casa de seu pai e durante a realização de um trabalho num cliente encontra uma amiga de infância Geneviève (Louise Chevillotte) com quem enceta um namoro e uma relação de vida com propósitos de futuro, todavia abandona-a logo que recebe a confirmação de admissão na Escola Boulle, num ato chauvinista e arrogante de independência masculina, por não estar disposto a lidar com o futuro filho que vem a caminho.

Em Paris, com os novos amigos descobre o amor apaixonando-se por Betsy (Souheila Yacoub) que lhe sugere uma relação triangular com um anterior relacionamento, Paco (Martin Mesnier) que ainda mantém e que ele aceita numa coabitação temporária por tempo indeterminado. Luc e Betsy declaram mutuamente o seu amor, enquanto ela salta de cama em cama no mesmo quarto e na mesma noite. Quando se precisa de privacidade uma gravata pendurada na porta pelo lado de fora avisa do facto. Ela é transparente com ambos e convive com amor pelos dois sem abandonar nenhum, numa relação aberta, franca e assumida pelos três, embora diferenciando a sua preferência mais consistente por Luc.

É assim que Garrel nos apresenta o amor em 2020 para pessoas heterossexuais, brancas e europeias que apenas existem para amar e ser amadas, sem implicações sociais dos seus atos, ou conflitos políticos ou económicos que os condicionem. Garrel não nos indica qualquer dos caminhos, apenas os apresenta, captando os atos e as pessoas numa apresentação trágico cómica, (dependente do ponto de vista) do estereótipo burguês, citadino, sobre o amor e seus possíveis triângulos, ora tradicionais, ora inovadores ligados aos nossos tempos.

Garrel não cuida de qualquer dos personagens que são tomados e largados tal como nos foram apresentados, exceto de Luc e do seu pai, ocupando este um papel centralizador na vida de Luc de que ele tenta libertar-se, mostrando um distanciamento em relação à sua contribuição para este imbróglio que cabe ao espectador deslindar qual o sentido a dar-lhe na sua imagética pessoal e privada. Pelo meu lado também não vou dar qualquer contributo, apenas que veja e despenda algum tempo a pensar num assunto que afinal é de todos.

Classificação: 5 numa escala de 10

 

3 de setembro de 2020

Opinião – “Roubaix, Misericórdia” de Arnaud Desplechin


Sinopse

Roubaix, uma noite de Natal. O comissário Daoud percorre a cidade que o viu crescer. Carros incendiados, altercações… Na esquadra, um novo elemento, Louis Coterelle, acaba de chegar. Daoud e Louis vão investigar a morte de uma idosa. Duas jovens mulheres, Claude e Marie, são interrogadas. Pobres, alcoólicas, amantes.

Opinião por Artur Neves

Este filme é cinema do Real, isto é, a história que nos é pormenorizadamente contada, aconteceu com todos os contornos que nos são apresentados no filme realizado por Arnaud Desplechin e representado por atores que interpretam os principais personagens de Claude (Léa Seydoux) e Marie (Sara Forestier), detidas para investigação de um crime ocorrido num bairro incluído na jurisdição da esquadra de Roubaix, sob a direção do comissário Daoud (Roschdy Zem).

Á semelhança do programa “Casos de Polícia” da SIC Notícias, Mosco Boucault, jornalista francês ao serviço do canal France 3, acompanhou durante o ano de 2002 uma equipa de detetives da esquadra de Roubaix, um bairro pobre de Paris habitado fundamentalmente por emigrantes magrebinos, uns legais outros ilegais, onde tomou contacto com este caso de assassínio de uma idosa, perpetrado por Stéphanie e Annie, que no filme são representadas por Claude e Marie anteriormente referidas, além de documentar com impressionante realismo a vida numa esquadra de subúrbios e os mistérios da alma humana.

As duas mulheres viviam na mesma casa, Stéphanie (Claude - Léa Seydoux) tem um filho que está institucionalizado e Annie (Marie - Sara Forestier) de sexo misto ou indefinido, nutre profundo amor carnal e forte dependência emocional por Stéphanie que por falta de melhores oportunidades se sente compelida a aceitar aquela situação que não revela a sua verdadeira tendência como mulher.

Para ambientar a história, o filme também contempla os casos de denúncia culposa de incêndio de um carro, para obter vantagens da seguradora, uma tentativa de roubo com violência, a fuga de casa dos pais de uma adolescente e uma violação, mas o “prato forte” documental centra-se nas duas mulheres, inicialmente confrontadas com um incendio num quintal próximo em que elas são interrogadas como testemunhas de acusação dos presumíveis autores por motivos criminais.

A descoberta do cadáver da senhora que habitava o apartamento contíguo ao delas volta a coloca-las sob os holofotes da polícia e desta vez, as suas declarações individuais revelam contradições de depoimento que nenhuma sabe explicar com razoabilidade. O comissário Daoud, profundamente conhecedor dos hábitos da população do bairro onde passou a infância e a juventude, começa a desconfiar dos seus depoimentos e aumenta a pressão sobre elas nos interrogatórios separados a Claude e Marie que começa a quebrar a sua resistência ao pacto de silêncio estabelecido entre as duas.

É aqui que o filme tem o seu ponto alto pela expressão do fardo de culpa do culpado que ao não aguentar a pressão da verdade que lhe é apontada, soçobra ao peso da sua culpa e começa a falar, primeiro vacilantemente e depois completamente revelador, do modo como cometeu o ato, de forma a aliviar todo o peso que já não suporta e para se sentir outra vez humano e em paz consigo mesmo. Depois dessa revelação está exausta e pede apenas que a deixem dormir.

Os interrogatórios continuam com todo o pormenor descritivo possível, primeiro na esquadra numa simulação com um boneco e depois numa reconstituição no local em que Annie reproduz sobre a cama da defunta o modo como pressionou o travesseiro sobre o rosto da vizinha, enquanto lhe apertava o pescoço e como pediu ajuda á sua namorada Stéphanie, que visivelmente mais consciente tenta atenuar as condições de realização do crime, embora revivendo no local todo o horror do ato praticado, entre duas cervejas e um cigarro fumado à pressa.

Toda a história contém uma realidade palpável, descrita minuciosamente num bairro com uma população carente mostrando uma polícia competente e conhecedora da humanidade que ainda assim existe sob a natureza destas duas criminosas, que coabitam com as misérias de uma sociedade arruinada pelo álcool, droga e pela ociosidade que lhes retira perspetivas de futuro. Este filme foi apresentado em competição oficial no festival de Cannes 2019, por somente agora ter sido autorizada a teatralização deste caso de 2002, após ter transitado em julgado. Muito bom, recomendo.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

26 de agosto de 2020

Opinião – “Fojos” de Anabela Moreira e João Canijo


Sinopse

Castro Laboreiro, a terra mais a Norte de Portugal, é um lugar cujos montes terminam numa rua sem saída. Chamam-lhe o buraco do fim do mundo. Ali vivem lado a lado lobos e homens. Os lobos saem dos seus covis para atacarem livres as presas dos homens trancados nas suas tocas. Uns e outros armadilhados dentro do grande fojo que é a vida e de onde não se pode sair vivo.

Opinião por Artur Neves

Considerando a sinopse anterior e o poema inscrito no poster do filme (“Os homens são como o lobo,/Só lhes falta ter rabo,/Andam de dia e de noite,/Na figura do Diabo”), bem como que; “Fojo” é uma armadilha para captura de lobos, construída em pedra e representativa de uma manifestação cultural única a nível ibérico, da convivência nem sempre amistosa entre lobos e homens. Na minha genuína paixão cinéfila, sempre recetiva á desejada evolução do cinema português, pensei tratar-se de um documentário, sim mas, em que João Canijo, autor de algumas boas obras recentes, nos quisesse oferecer um drama na paisagem agreste do Alto Minho em que homens e lobos se comportassem uma vez como eles próprios e outra como o seu contrário, conjugando uma história documental sobre a dura vida das pessoas de Castro Laboreiro e Melgaço.

Mas não… mais uma vez as minhas expectativas foram goradas e o que temos aqui é um documentário puro e duro, do quotidiano quase primitivo (apesar da existência da Internet) das gentes de Melgaço, nas suas atividades de subsistência e manutenção da vida do dia a dia, apresentadas aleatoriamente, ou pelo menos segundo uma ordem de duvidosa referenciação.

O documentário não tem atores, é feito com as pessoas da terra nos seus afazeres normais de pastar os animais, matar os porcos e defumar os presuntos, bem como conservar a carne em sal. Todas as pessoas são indiferenciadas e reportadas ao mesmo nível sendo tão destacado o “Tiro”, um cão pastor, como a “tia Benite”, ou “Benitinha”, apoiada em duas canadianas sempre que se desloca ao centro de dia para executar uma ginástica mal guiada, ou ao posto médico para tratar dos seus múltiplos achaques.

A aldeia reportada tem muitas pessoas mas o filme não nos permite conhecer qualquer delas ou as relações entre elas, os seus dramas, ou o posicionamento social relativo daquelas que a realização achou por bem destacar com a abordagem dos seus problemas específicos. O abastecimento da dispensa dos habitantes é feito pela mercearia itinerante que pára em vários lugares e atende diferentes fregueses, com dificuldades pecuniárias também diferentes, mas tudo de uma forma tão plana, tão rasa, tão elementar que ficamos sempre à espera que o próximo assunto seja mais interessante.

A abordagem espiritual dos habitantes é feita através da apresentação de uma igreja frugal e de um funeral não se sabe de quem, apenas uma procissão atrás do féretro, vista de perto e de longe quando atravessa uma ponte. Mais interessante é a mostra de uma prática religiosa cigana, com o discurso do mentor num altar improvisado e as respostas pré estabelecidas dos fiéis na assembleia, num misto de reza e cântico aos sons de acordes de música cigana.

Dos fojos apenas um nos é mostrado e a uma distância segura. Dos lobos nem um vislumbre, exceto das carcaças despojadas de carne de caçadas antigas, dos homens que viram diabos, também nem uma réstia, até porque, na sociedade matriarcal que nos é apresentada, elas são sempre determinantes em tudo o que importa e neste filme tudo o que importa é apontar a objetiva para diferentes assuntos e deixar correr a gravação para ter assunto para a edição. Ora bolas… não pode ser sempre isto o cinema português.

Classificação: 3 numa escala de 10

14 de agosto de 2020

Opinião – “A Troca das Princesas” de Marc Dugain

 

Sinopse

Em 1721, o Regente de França, numa tentativa de selar a paz com Espanha, oferece ao Rei espanhol, um casamento entre os herdeiros respectivos: Luís XV, de 11 anos, e Mariana Victoria, a infanta espanhola de 4 anos. O Regente propõe também a sua filha, Mademoiselle de Montpensier, de 12 anos, ao Príncipe das Astúrias, o herdeiro do trono de 14 anos. Madrid responde com entusiasmo às propostas. A troca das princesas realiza-se numa pequena ilha, entre os dois países. Mas nada corre como planeado.

Opinião por Artur Neves

A sinopse anterior descreve sucintamente todo e enredo da história em que baseia este filme de Marc Dugain, realizador e argumentista francês, nascido em 1957 no Senegal, que tem no seu curriculum diversas obras de caris autobiográfico e histórico referente a personalidades como Joseph Staline ou J. Edgar Woover.

A história decorre quase completamente no interior dos palácios para onde o regente do Reino da França, Philippe d'Orléans engendrou o plano de casar o futuro rei de França, Luís XV, de 11 anos, com Marie-Anne-Victoire d'Espagne, de 4. Não satisfeito com isso, ele acrescenta ao “lote” a oferta da sua filha Louise-Élisabeth d'Orléans, de 12, para desposar o príncipe herdeiro do trono espanhol, Luis, de 14 anos que nos é apresentado como um imberbe totalmente impreparado para viver, ou casar, quanto mais para reinar.

É este o mérito do filme e do argumento que o suporta, escrito por Chantal Thomas que tem provas dadas nesta área de desmontagem da convenção história sobre as monarquias europeias que até hoje se revelam pelos piores motivos.

No presente caso é o desespero de Philippe d'Orléans, (Olivier Gourmet) a sua incapacidade e impreparação para assumir as tarefas régias durante a infância de Luis XV que o leva a tentar estabelecer uma ponte e uma amarração com o futuro, através do enlace dos atuais infantes, independentemente das suas preferências. Era o normal na época, bem sei e a história também nos mostra isso, mas só a ociosidade da sua vida palaciana e a total ausência de preocupação com o povo e os destinos da nação é que o faria pensar em levar o jovem Luis XV a assumir um compromisso de casamento com uma criança de 4 anos que o filme até nos mostra ter uma presença de espírito e de premonição invulgares para a idade.

Só pela idade e pela impreparação generalizada destes quatro peões infantis, usados nesta absurda empresa de vinculação dinástica pode-se suspeitar do sucesso da ideia, mas todo o ambiente vivido na corte de França e de Espanha que o filme nos mostra, sugere-nos claramente à sua conclusão catastrófica de devolução das “encomendas” às suas origens naturais de onde não deveriam ter saído.

Rodado quase completamente no ambiente interior dos palácios, o filme apresenta uma dinâmica lenta e soturna, filmado à luz de velas, no interior de salões, onde por vezes se espera que uma acção aconteça. Porém, esta fica retida no protocolo das cerimónias da corte e nos pensamentos dos seus agentes, mostrando-nos as vidas estéreis dos detentores do poder, embora inocentes nas suas atitudes, porque ainda ingénuos nos objetivos a atingir.

Fica-nos assim uma revelação histórica, por vezes comovente, dos poderes reais e da monarquia, interpretado por atores bem escolhidos com particular destaque para Marie-Anne-Victoire (Juliane Lepoureau) que apesar da sua tenra idade obtém um excelente desempenho.

Nas salas a partir de 20 de agosto

Classificação: 5 numa escala de 10

16 de julho de 2020

Opinião – “O Paraíso, Provavelmente…” de Elia Suleiman


Sinopse

ES escapa da Palestina em busca de uma pátria alternativa, apenas para descobrir que a Palestina está seguindo atrás dele. A promessa de uma nova vida transforma-se numa comédia de erros: por mais que ele viaje, de Paris a Nova Iorque, algo sempre o lembra de casa. Do premiado diretor palestiniano, Elia Suleiman, aparece-nos uma saga em forma de comédia que explora a identidade, nacionalidade e pertença, na qual Suleiman faz a pergunta fundamental: onde é o lugar que realmente podemos chamar de lar?...

Opinião por Artur Neves

Elia Suleiman é sem dúvida o mais famoso realizador palestiniano cujos trabalhos são reconhecidos na Europa, exibidos e premiados no festival de cinema de Cannes, que em 2019 destacou este filme num intervalo de dez anos do seu anterior, em que Suleiman mais uma vez explora a noção de nacionalidade com identidade e pertença, abordando as caraterísticas dessas expressões com um humor inexpressivo, recriando situações comuns que têm tanto de cómico como de irracional ou absurdo.

Não se pode dizer que é um filme fácil. Suleiman é um realizador e intérprete do seu personagem à maneira de Jacques Tati, mais observador do que comentador e que tal como Tatti compõe habilmente os quadros que nos apresenta para tirar o maior proveito possível de cada mordaça que exibe, através de um personagem mudo, frequentemente estático, de óculos e chapéu de palha cujo arquear de sobrancelhas constitui a sua mais poderosa ferramenta de comédia. Suleiman assume a liderança da história (uma sucessão de casos quotidianos) interpretando um personagem de si mesmo que absorve os absurdos do mundo ao seu redor e responde com o seu olhar e expressão facial que valem mais do que 100 palavras.

Suleiman pertence à comunidade ortodoxa grega Roum e para que o leitor possa formar uma ideia do conteúdo do filme vou revelar-lhe a cena de abertura. Com o ecrã negro ouvem-se vozes de várias pessoas rezando, quando aparece a imagem vemos tratar-se de uma procissão que caminha em direção a uma igreja ortodoxa de portas fechadas. Na procissão, um padre caminha no meio de um grupo de fiéis e emana preces que os fiéis respondem que a salvação está no interior da igreja. Ao chegar à porta da igreja, o padre solenemente bate três vezes e manda a porta abrir. A surpresa é geral quando do interior da igreja um voz anuncia que se recusa a abrir a porta e manda-os embora. O padre embaraçado, repete por mais três vezes a proclamação solene da cerimónia e pelas mesmas vezes a mesma voz se recusa a abrir a porta que os fiéis dizem ser da salvação. Já visivelmente zangado o padre entrega o bordão a um fiel que está próximo, tira a mitra da cabeça e entrega-a a outro, levanta as saias das vestes clericais e caminha em direção à porta lateral da igreja que arromba com um pontapé, entra na igreja e ouve-se no exterior, castigar à pancada os que no interior se recusavam a abrir a porta principal. A cena termina assim.

Depois de outras cenas significativas em Nazaré, sua cidade natal, Suleiman ruma a Paris e posteriormente a Nova Iorque transmitindo-nos a ideia de um exílio permanente, já que em qualquer das duas cidades visitadas ele não se sente mais confortável do que em Nazaré, que não corresponde ao “lar” (ao home) que ele procura, depois da morte dos seus pais, razão última para a sua demanda pelo mundo em busca de uma felicidade indefinível.

Em Paris e Nova Iorque Suleiman mostra-nos com ironia, o absurdo duma perseguição policial em patins a um suspeito só por ser estrangeiro, uma refeição familiar em Nova Iorque num restaurante de fast food em que todos estão armados, até as crianças, ou a paragem em frente de um edifício em Paris, que exibe uma placa indicadora com a frase; “a comédia humana” numa clara universalidade dessa comédia que nos atinge a todos, tornando irrelevante o sítio onde estejamos, pois nas grandes cidades campeiam os mesmos absurdos de que ele procurou fugir na sua cidade Nazaré.

Suleiman oferece-nos ainda a figura do palhaço burlesco, próxima de Buster Keaton, pela forma como se apresenta colocando-se sempre no papel do observador espantado que no fundo é o nosso próprio papel neste mundo insano que nos rodeia. É um filme subtilmente irónico, denunciador do absurdo e das incoerências existentes nas margens da realidade. Gostei e recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

27 de fevereiro de 2020

Opinião – “Para Sama” de Waad Al-Kateab e Edward


Sinopse

Para Sama é simultaneamente uma viagem íntima e épica pela experiência feminina da guerra. Uma carta de amor de uma jovem mãe para a sua filha, o filme conta a história de vida de Waad al-Kateab durante cinco anos de revolta em Alepo, na Síria, ao mesmo tempo que se apaixona, se casa e tem a filha Sama, tudo enquanto o conflito devastador cresce à sua volta. A sua câmara captura histórias incríveis de perda, alegria e sobrevivência enquanto Waad luta com uma escolha impossível – fugir ou não da cidade para proteger a vida da filha, quando sair significa abandonar a luta pela liberdade, pela qual já sacrificou tanto.

Opinião por Artur Neves

A revolução Síria é um conflito interno que opôs a generalidade da população contra o presidente Bashar al-Assad que se arroga ao direito divino de suceder ao seu pai, Hafez al-Assad que ocupou o poder durante 30 anos, e governa o país com mão de ferro á 10 anos. A inicial luta de poder alargou-se para domínios de natureza sectária e religiosa incendiando a rivalidade entre Xiita e Sunitas. Os protestos populares começaram em Janeiro de 2011 pelo que esta guerra civil já conta mais de 9 anos de duração.
Este documentário reporta a destruição de Alepo, segunda cidade do país a seguir a Damasco, capital da nação Síria, através de mais de 500 horas de filmagens dos bombardeamentos e combates na cidade efectuados pelo exército regular sírio, apoiado pela Rússia que apoia Bashar al-Assad na sua sangrenta luta pelo poder, sem respeitar a população civil a quem acusa de terroristas.
As filmagens foram feitas por Waad al-Kateab, jornalista autodidacta que mantinha ligação com a distribuição de notícias na televisão independente da Grã-Bretanha. As filmagens foram inicialmente feitas com smartphone e posteriormente com uma Handycam Sony como pode ver-se no filme. Waad é casada com Hamza, médico no único hospital em funcionamento em Alepo e activista político numa facção resistente ao governo central.
O casal e a filha Sama já abandonaram Alepo, pouco antes da tomada da cidade pelas forças do exército regular, tendo levado consigo para o exterior os discos com todo o material filmado, vivendo actualmente em Londres onde preparou o presente documentário com a ajuda do Channel 4, moldando-o neste filme, que documenta a destruição sistemática da cidade.
O filme é narrado pela autora num tom pausado e dramático sobre as imagens e os sons da guerra e destruição a que assistiram ou que filmaram, deixando a câmara em funcionamento e ausentando-se por segurança dos locais. O filme inclui os acontecimentos até 5 anos antes da destruição de Alepo que nos são apresentados como flashbacks que contrapõem a situação actual onde se desenrola a maior parte do documentário.
Em todo o filme Waad reporta os casos individuais da morte de pessoas que chegam ao hospital com as mais variadas feridas de guerra e das condições de assistência que lhe são prestadas, por pessoal dedicado, mas sem meios suficientes para as salvar. É a parte mais dura do filme em que vemos crianças estropiadas, com feridas na cabeça, ou mesmo já mortas e que os familiares que as transportaram não identificaram.
A filha, Sama surge aqui como a depositária da esperança que os anima e o objectivo de vida futura pelo qual eles lutam e morrem todos os dias em Alepo. Sama, além de filha deles é filha do hospital, por corporizar a razão de toda a dedicação ao próximo e também a expiação pelo facto de a terem trazido para um mundo em desagregação.
Este filme foi nomeado na classe de documentário para os prémios BAFTA e embora não o tendo ganho constitui um testemunho ocular de um regime que continua em guerra com o seu povo, que mesmo sendo sujeito a um banho de sangue conserva as sementes da esperança.

Classificação: 5 numa escala de 10

13 de janeiro de 2020

Opinião – “J’Accuse – O Oficial e o Espião” de Roman Polanski


Sinopse

No dia 5 de Janeiro de 1895, o Capitão Alfred Dreyfus, um jovem soldado judeu, é acusado de espionagem para a Alemanha e condenado a prisão perpétua na ilha do Diabo. Entre as testemunhas está Georges Picquart, promovido para gerir a unidade militar de contra-espionagem. Mas quando Picquart descobre que informações secretas continuam a ser fornecidas aos alemães, é arrastado para um labirinto perigoso de fraude e corrupção que ameaça não só a sua honra, mas também a sua vida.

Opinião por Artur Neves

Este filme é cinema ao seu melhor nível como meio de contar uma história real que no final do século XIX, mais exatamente 1895 como refere a sinopse, desestabilizou o poder político em França e pôs em causa as chefias militares de primeiro nível, todas envolvidas num caso de espionagem internacional em que foi injustamente acusado um oficial judeu, o Capitão Alfred Dreyfus, (Louis Garrel) para ocultação da incompetência e do compadrio castrense que grassava nas forças armadas e na sociedade antissemita da época.
Goste-se ou não de Polanski é da mais elementar justiça reconhecer que ele continua sendo um mestre no seu ofício pela forma distinta como constrói a apresentação desta história. O cenário é irrepreensível, o guarda roupa, a direção de atores extraordinariamente cuidada e meticulosa, preenchida com todos os detalhes comportamentais da hierarquia militar da época que transmitem ao espectador uma completa imersão relativamente aos que nos é contado.
Baseado numa novela de Robert Harris que também colaborou no argumento e conta-nos a história deste “erro” judicial começando pela cerimónia de remoção das insígnias do exército a Dreyfus, no meio de uma manifestação antissemita em que ele grita para a multidão e para todos os presentes a sua inocência, acusando a França de o excluir por ser judeu e não por terem provas irrefutáveis contra ele. Georges Picquart (Jean Dujardin) está nesta altura do lado dos acusadores, foi professor de Dreyfus, mas nega que seja por diferenças de religião a sua acusação. Este caso porem, conduz Picquart à chefia do departamento de investigação militar e à sua promoção a coronel.
É nessa qualidade que ele se confronta com a dúvida da culpabilidade de Dreyfus, sendo também a partir daqui que o filme se desenvolve no interior de ambientes poeirentos e escuros, mostrando alguns episódios da propalada “inteligência militar” em interiores claustrofóbicos onde trabalham os agentes da violação de correspondência, ou da reconstituição de documentos rasgados fornecidos por informadores a soldo, intrigas palacianas que mostram o sentido de autenticidade de Polanski na caracterização dos círculos de incompetência de que ele se vai apercebendo. Na realidade Georges Picquart é um produto do sistema, educado e formado no meio e também eivado do mesmo antissemitismo, todavia a confrontação honesta com indícios da cabala que foi montada contra Dreyfus, levam-no numa jornada de autoconsciência dolorosa, em que os seus princípios não permitem o encobrimento dos erros do sistema, com os inerentes custos para todos e principalmente para ele e para a sua amante, Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner) que se vê também envolvida.
Por outro lado, Polanski serve-se desta história para estabelecer um paralelo entre a sua condenação por abuso sexual de uma menor em 1977, em que ele se declarou culpado, foi preso e libertado sob caução, mas na iminência de nova detenção, tomou um avião para a Europa, encontrando-se desde então na situação de foragido da justiça norte americana, a que ele atribui uma componente de antissemitismo, tal como no caso de Alfred Dreyfus e assim esbata as diferenças entre o antissemitismo pessoas e institucional.
Ele faz isso muito bem lidando simultaneamente com uma narrativa de suspense executada por atores de elevada qualidade interpretativa que evoluem numa fotografia sóbria, por vezes em cores sépia que adensam a ação. Para lá de tudo isso, sente-se a “mão” de Polanski como a de um pintor conhecido num quadro seu, não só na construção da imagem, como na sua exposição no melhor ângulo em que ela pode ser vista, e ainda, considerando que se trata de uma mentira, de um embuste montado para prejudicar um determinado homem, contém algo de muito urgente a dizer sobre o mundo em que vivemos. Recomendo vivamente.

Classificação: 8 numa escala de 10