terça-feira, 26 de novembro de 2024

Revolta

 


Todos foram saindo, de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se fiquei mesmo só.

Não trouxe mensagem
e nem deram senha…

Disseram-se que não iria perder nada,
porque não há mais céu.

E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora…

Mas não quero ir para mais longe,
desterrado,
porque a minha pátria é a minha memória.

Não, não quero ser desterrado,
que a minha pátria é a memória…

Autor :João Guimarães Rosa
In “Magma”
Imagem:Martin Stranka

domingo, 24 de novembro de 2024

Chove


Chove neste recanto
De mundo
Onde estou

Olho a chuva
Que cai furiosamente
Sobre a terra seca

E fico magnetizada
A olhar e respirar serenamente
Este aroma de terra molhada

Autor : BeatriceM 2024-11-23
Imagem : TJ Drysdale

sábado, 23 de novembro de 2024

Ausência


Boyana Petkova


Fala

Ouvir-te-ei
Ainda que os segredos
As amoras me chamem

Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Fala

Ouvir-te-ei
A coragem

Alguém de nós que já não está

Autor : Daniel Faria
in "Oxálida"

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Eu te prometo

Liu Yuanshou


Eu te prometo meu corpo vivo
Eu te prometo minha centelha
minha candura meu paraíso
minha loucura meu mel de abelha
eu te prometo meu corpo vivo

Eu te prometo meu corpo branco
meu corpo brando meu corpo louco
minha inventiva meu grito rouco
tudo o que é muito tudo o que é pouco
meu corpo casto meu corpo santo

Eu te prometo meu corpo lasso
mar de aventura mar de sargaço
vaga de náufrago onda de espanto
orla de espuma do meu cansaço
eu te prometo meu doce pranto

Eu te prometo todo o meu corpo
ardendo eterno na nossa cama
como um abraço como um conforto

P´ra que me lembres além da chama
eu te prometo meu corpo morto

Autor : Rosa Lobato de Faria,
In a noite inteira já não chega

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

E nisso haver. E nisso persistir.

Frederico Erra

E nisso haver. E nisso persistir.
Pensar perder-me em nada diluído
pela bola de neve que me desses
instantânea mas branca. Conseguir
amores de bruma e de estampido
num espaço que não sei e onde teces
a tua tempestade.

Correr a mão
pelo corpo que tens em tempos quedos,
deixá-la ir pelos agostos fartos
pelas horas de ceifas e de verão.
Deixar que a tua pele me guie os dedos
para chegar aos olhos e fechar-tos.

Autor : Pedro Tamen

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Neste outono




Neste Outono, as pedras agasalham-se no no cobertor,
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma ida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar.
.
Autor :Maria do Rosário Pedreira
Foto:Introit

terça-feira, 19 de novembro de 2024

As cidades Invisíveis


É o início das chuvas, o amor.

Encontramo-nos de acesos lábios,
mãos feridas de ruína,
e tremente solidão.

Passam fantasmas travestidos
de gente, – sombras, ilhas,
um breve par adolescente.

E todo o tempo é feito de cinza,
Outubro de um só dia
no céu da nossa vida.

São invisíveis, as cidades,
e até o anjo na hora de ponta
guarda seus olhos de nós:

Ninguém sabe, meu amor,
que só teu nome é uma ave
no final da minha voz.

Autor :João de Mancelos
In O Labor das Marés, Aveiro, Estante Editora, 1994.
Imagem : Saul Leiter

domingo, 17 de novembro de 2024

Naquele outro tempo

Eu não sabia
Que tudo tem um preço
Tudo se vende
Tudo se troca e tudo se perde um dia

Naquele outro tempo.

Hoje, neste outro tempo
Tudo deixou de ter preço
Nada se troca
Nada se vende

Tudo é demasiado fútil.


Autor : BeatriceM 2024-11-16
Imagem : Natália Drepina

sábado, 16 de novembro de 2024

Ergo uma Rosa


Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou ventos de cabelos que sacode.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontua de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

Autor : José Saramago
Imagem :Pinterest

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Alegria



De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura
duma nova amargura...

De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...

De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.

Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.


Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir
o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a
um vício.

Alegria!
Alegria!

Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Autor : Fernanda de Castro

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Silêncio



Cerca-te como a sombra
de coisas
em forma,
livro fechado
entre o vago pó
do tempo.

Carrega nos braços
a voz da água
e um breve fio
de lume.

Desfolha-se.
Não é outono,
mas traz nos pulsos
a música dos frutos.

E dói
como uma ferida aberta
nos olhos
da melancolia.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto
 Cântico Sobre Uma Gota de Água
Imagem : Anna Heimkreiter

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Ruído

 


A vida é puro ruído entre dois silêncios abismais. Silêncio antes de nascer, silêncio após a morte.

Isabel Allende

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Regresso

Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvores secreta dos irmãos,
e, com saudade e desvario, abandonei as casas.

Escondi-me.
Escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau
paira,
quando chegar, pelas madrugada,
às portas do teu sonho?

De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.

Autor : José Agostinho Baptista
quatro luas
Imagem : Jerome Berbigier

domingo, 10 de novembro de 2024

Partidas imprevistas



Um dia, tudo deixará de existir
Nem recordações existirá
Nem sons, nem júbilo
Apenas vacuidade e tudo
Se transformará em pó e apenas pó

Autor : BeatriceM 2024-11-09
Imagem : Michelle Ellis

sábado, 9 de novembro de 2024

Aniversário

Salva-me agora, não desta morte ou de outra
mas de ir vivendo assim seguramente
sem música nem arte, e com o amigo ausente.

No escuro ainda levantei-me e vi
a antiga madrugada que nascia
leve e primeira com a luz macia.

E quem me ouvia, se não os mortos mansos
e generosos sob a lousa fria?
É certo que sonhei que me deixavas
amar e ser amado, como quem
sem mérito nem rosto me fizeste;
mas era de cantor que me mandavas
às portas da cidade ver arder o dia.
  
Autor : António Franco Alexandre
Imagem:Laura Zalenga