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sábado, 14 de setembro de 2024

Jogo

SONJA HESSLOW

Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
 como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

Autor : Nuno Júdice
in "A Fonte da Vida"

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Metamorfose em Agosto

Jaroslaw Datta

O verão solta os cabelos como a mulher
que se ergueu do leito e avança para o espelho,
com as mãos da manhã a viajarem pela sua pele. O
que ela vê é o reflexo dos sonhos que as suas
pálpebras fecharam para que o dia se não apoderasse
de imagens que ela própria já esqueceu; e
quando despe a túnica da noite, olha
para os seios como se neles corresse o leite
que alimenta o desejo, e entrelaça nos seus
cumes os gestos trânsfugas do amor.

O verão, que subiu às açoteias do litoral
como o grito dos amantes que incendiou
a tarde e atravessou a terra com um calafrio
de nortada, transformou-se no carreiro
de formigas que se perderam da sua cova. Sigo-as
num caos de vagabundagem, como se elas me levassem
ao encontro de uma recordação de madrugadas
de ócio, ouvindo a voz que ficou da insónia
emergir de uma dobra de lençóis, com
as sílabas exaustas de um imenso abraço.

E saúdo o verão que as trepadeiras possuíram
nos quintais anónimos de ruínas imprecisas, esse
que fez cair sobre nós o seu relâmpago de seda,
um sumo de palavras húmidas e a última ressonância
de uma sombra de corpos.

Autor : Nuno Júdice

terça-feira, 9 de julho de 2024

Nunca são as coisas mais simples que aparecem

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
.
Autor :Nuno Judice
Foto:Sitriel

sábado, 8 de junho de 2024

Amor

Marc Figueras

Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.

Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo...

Autor : Nuno Júdice
De «Meditação sobre Ruínas» (1994)

terça-feira, 7 de maio de 2024

Um poema de amor

 

Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

Autor : Nuno Júdice
in O movimento do mundo (Quetzal, 1997)
Imagem Evan Atwood

sábado, 6 de abril de 2024

É nos teus olhos

Esther Bayer

É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou,mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.
.
Autor : Nuno Júdice

sábado, 2 de março de 2024

Para Escrever o Poema

laura makabresku

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

Autor : © Nuno Júdice

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Elegia

Nem os dias longos me separam da tua imagem. Abro-a no espelho de um céu monótono, ou deixo que a tarde a prolongue no tédio dos horizontes. O perfil cinzento da montanha, para norte, e a linha azul do mar, a sul, dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia quando, ao dizer o teu nome, a realidade do som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo o silêncio para que dele possas renascer, sombra, e dessa presença possa abstrair a tua memória.

Autor: Nuno Judice
Foto:Kamyk75

terça-feira, 9 de maio de 2023

In Memoriam

 

ao Bernardo Sassetti

Há um fotógrafo triste que bóia no oceano. Nas mãos
já não tem a máquina que deixou cair pelo caminho,
e nos olhos falta-lhe essa força que lhe permitia fixar
o objectivo, definir o quadro, inventar o ângulo
certo para atingir o alvo. Agora, flutua como o barco
que perdeu a âncora, ou como folha que se cansou
de ir com o vento, e se deitou a descansar num
leito de água. Alguém que o tivesse visto teria
querido chamar por ele, puxá-lo para a margem,
e convencê-lo a olhar para a paisagem, sem outro
objectivo do que o simples olhar para a paisagem;
mas ele não ouve ninguém, e deixa-se ir até onde
a corrente o levar, no mar que se tornou o seu berço.

Autor : Nuno Júdice
Imagem : Jessamine Barnieh

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Peso Incerto

 


A terra tem o peso de uma nuvem quando
cai sobre o corpo que lhe adormece nos braços;
e empurra-o para o seu fundo, onde se irá
transformar na raiz desta filosofia: deita-te
na terra sem dormir, ouvindo a sua respiração,
e levanta-te quando a nuvem passar sobre
ti, furando-a com um espinho de rosa
para que se desfaça em água. Então, em vez
de seres envolvido por lama e pedra,
mergulharás num oceano de névoa.
E se um dia te perguntarem a diferença entre
a terra e o céu, responde com a nuvem.

Autor :Nuno Júdice

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Tarde com sol


As coisas simples dizem-se depressa; tão depressa
que nem conseguimos que as ouçam. As coisas
simples murmuram-se; um murmúrio
tão baixo que não chega aos ouvidos de ninguém.

As coisas simples escorrem pela prateleira
da loja; tão ao de leve que ninguém
as compra. As coisas simples flutuam com
o vento; tão alto, que não se vêm.

São assim as coisas simples: tão simples
como o sol que bate nos teus olhos, para
que os feches, e as coisas simples passem
como sombra sobre as tuas pálpebras.

Autor: Nuno Júdice
Imagem : Richard Blunt

sábado, 23 de março de 2019

Astronomia

Vou buscar uma das estrelas que caiu
do céu, esta noite. Ficou presa a um
ramo de árvore, mas só ela brilha,
único fruto luminoso do verão passado.

Ponho-a num frasco, para não se
oxidar; e vejo-a apagar-se, contra
o vidro, à medida que o dia se
aproxima, e o mundo desperta da noite.

Não se pode guardar uma estrela. O
seu lugar é no meio de constelações
e nuvens, onde o sonho a protege.

Por isso, tirei a estrela do frasco e
meti-a no poema, onde voltou a brilhar,
no meio de palavras, de versos, de imagens.

Autor : Nuno Júdice
In O Breve Sentimento do Eterno
 Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008

sábado, 30 de junho de 2018

Acordo Ortográfico


Gosto do teu rosto exacto,
com o cê bem desenhado,
mesmo quando não se vê,
para te pôr, como laço
nos cabelos, o circunflexo
em que nenhum traço há-de
sair, mesmo que um pacto
roube o pê nessa pose
de pura concepção.

Autor : Nuno Júdice

sábado, 4 de abril de 2015

Poema 2


Katerina Plotnik



De tarde, no campo, nenhum pássaro cantou;
e só neste fim de dia um vento traz o assobio
da primavera melancólica: despedidas,
imagens breves, nenhuma inspiração. O sopro nocturno,
porém, anuncia um reflexo de espelho no fundo
do corredor. A voz surge de um dos quartos
em que a ausência se perde. Um baço
murmúrio se aproxima do gemido que evoca
o mar - sem que a onda se decida, quebrando
o som agonizante. Então, abro a porta
e chamo-te; sabendo que só a noite me responderá.

Autor Nuno Judice in «Poesia Reunida 1967 -2000», ibidem

domingo, 28 de novembro de 2010

Sonhei contigo


Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer ao amor,
quando entre mim e ti se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que faz com que
a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.
.
Autor: Nuno Júdice
Foto: PA weł

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

arte poética com melancolia

Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro palavras de dentro do que penso e do que faço, como se elas pudessem viver aí, peixes verbais no aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem da terra, nem trazem consigo o peso da matéria; quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem o mesmo sangue com que se faz viver as emoções, e servem de alimento a outros que as lêem como se, nelas, estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me das mãos como areia; tento apanhar esses restos de tempo, de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É então que surges: o teu corpo, que se confunde com o das palavras que te descrevem, hesita numa das entradas do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens inúteis que me separaram de ti.