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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Um Belo Livro



Quando leio um grande livro tenho um medo terrífico do que vem a seguir. Porque um belo livro pode ser uma bela perdição para quem o escreveu, e esse é sempre o meu medo: que um belo livro se transforme numa bela perdição. Isto é, lê-se um modelo do qual a pessoa já não consegue sair. E penso que isso é uma das coisas terríficas na literatura portuguesa. As pessoas submetem-se rapidamente a um modelo e sentem-se bem nele. E quando nos sentimos bem na linguagem que produzimos, no próprio discurso que produzimos, isso só significa para mim que estamos numa gaiola. Pressinto que um dos problemas da literatura portuguesa é exactamente esse. O talento que muitas vezes encerra a pessoa na sua própria gaiola.

Autor : Rui Nunes,
 in 'Jornal i, 2 de Setembro de 2013'

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Vésperas Portuguesas

o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante

no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências


Autor : Rui  Nunes,
in Ofício de Vésperas
Imagem :Silena Lambertini

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Uma viagem no Outono


Imensa, esta gente reconduz
a catástrofe ao ruído de folha sobre folha,
mas a vingança dos mortos
é uma faca mergulhada na terra, o gume
iluminado da raiz.

Autor :Rui Nunes
Imagem :Janek Sedlar

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Outras Viagens


aproxima-te do fundo. Da enxada a bater na pedra.
Ou da lama pastosa onde se enterram os pés.
No que não encontrares estará a verdade:
quanto mais fundo, mais nada: uma descida completa.
O fundo é o sítio que os mortos não frequentam com a sua
exactidão.
É a exactidão de um sítio.
Um sítio exacto nem os mortos acolhe.

Autor : Rui Nunes
Imagem : Nicolas Bruno

terça-feira, 16 de agosto de 2022

és só um homem esquecido pela terra

 


és só um homem esquecido pela terra,
os que te cercam não te reconhecem,
nada sabem das tuas mãos, dos teus olhos,
da coisa mais ínfima que seja tua.
Tu vês os que te cercam, mas eles
Rodeiam-te da tua ausência
com a perseverança de sobreviventes

do mundo aos lábios: a separação
do olhar de Deus

Autor : Rui Nunes
Imagem : Diggi Vitt

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Verão

Paul Kelley

a paisagem dissolve-se
na cintilação.
Cresce a cobra
na vereda de som a explodir
na carqueja.
Fecha-se a poeira
gota a gota na luz.
Abre-se
na pedra a ruga.
O seu gume
sorri na boca.
Um nome
suporta a voz.
A trepadeira.

Autor : Rui Nunes