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sábado, 16 de novembro de 2024

Ergo uma Rosa


Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou ventos de cabelos que sacode.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontua de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

Autor : José Saramago
Imagem :Pinterest

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Não me peçam razões,


Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há de vir.

Autor : José Saramago

sábado, 21 de maio de 2022

Ergo uma rosa

 

Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou ventos de cabelos que sacode.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontua de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me doi de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

Autor : José Saramago
Imagem : Andrea Kiss

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Poema à boca fechada

Não direi: 
Que o silêncio me sufoca e amordaça. 

Calado estou, calado ficarei, 
Pois que a língua que falo é de outra raça. 

Palavras consumidas se acumulam, 
Se represam, cisterna de águas mortas, 
Ácidas mágoas em limos transformadas, 
Vaza de fundo em que há raízes tortas. 

Não direi: 

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem, 
Palavras que não digam quanto sei 
Neste retiro em que me não conhecem. 

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas, 
Nem só animais bóiam, mortos, medos, 
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam 
No negro poço de onde sobem dedos. 

Só direi, 

Crispadamente recolhido e mudo, 
Que quem se cala quando me calei 
Não poderá morrer sem dizer tudo. 

Autor : José Saramago
In “Os Poemas Possíveis” 
Editorial Caminho 
Imagem : Alex Stoddard

sábado, 30 de novembro de 2019

Intimidade


No coração da mina mais secreta, 
No interior do fruto mais distante, 
Na vibração da nota mais discreta, 
No búzio mais convolto e ressoante, 

Na camada mais densa da pintura, 
Na veia que no corpo mais nos sonde, 
Na palavra que diga mais brandura, 
Na raiz que mais desce, mais esconde, 

No silêncio mais fundo desta pausa, 
Em que a vida se fez perenidade, 
Procuro a tua mão, decifro a causa 
De querer e não crer, final, intimidade. 

Autor : José Saramago
Imagem : Katharina Jung

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Arranca metade do meu corpo


Arranca metade do meu corpo
Do meu coração,
Dos meus sonhos.
Tira um pedaço de mim, 
qualquer coisa que me desfaça.
Me recria,
porque eu não suporto mais pertencer a tudo,
mas não caber em lugar algum.

Autor : José Saramago

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

...

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.


Autor : José  Saramago
in Os Poemas Possíveis (Portugália Ed., 1966)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Retrato do poeta quando jovem

José Saramago
16-11-1922
18-06-2o1o



Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.



Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.



Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.



Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.



Autor :José Saramago


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)