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sábado, 15 de junho de 2024

A Lua


Tenho de repensar a minha vida,
disse-me, e acrescentou:
ser-se feliz é não ter esperança.
Lembrei-lhe o sol e o mar
que hoje vejo sozinho nesta praia,
e respondi não há quem viva assim,
ainda que a esperança não exista.
Mas vi-a olhar o céu,
dizendo que sorte é termos a lua
- rege-nos as marés e o corpo -,
e que amava o seu rosto claro,
um espelho de luz na noite
onde se olhava já sem sonhos.
Nem suspeitou ser isso a esperança,
a lua e os espelhos sem mais nada,
a música que ouvíramos
e o mar além, atrás das dunas.

Autor : Nuno Dempster
Imagem : Anya Anti

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Final

 


De mãos escassas nuas a flor frágil
renasce sem motivo senão vê-la
tardia nos caminhos
que até aqui me trouxeram, e a surpresa,
a nitidez dos colos tranquilos
onde as searas são o dia-a-dia
já maduras e a estrada que entre os campos
me leva desconheço hoje para onde
nem como nem porquê entre cidades
e plainos navegando e vendo as árvores
e o seu perfil exacto contra o céu.

Digo-me tanto aqui hei-de passar
que um dia o silêncio se abrirá
no rasto que existia na memória
e as lembranças se irão, morto estava
o desejo de flores e as mãos escassas
preparavam o seu fim
sem que a pena ou o medo as desviasse.

Autor : Nuno Dempster

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Exílio


Quando penso nas ruas por onde andei,
nas ruas das cidades em que vivi
e recordo as janelas
que guiaram os meus passos
justamente até aqui, a hora tardia
de escrever estes versos sem dedicatória,
quando penso na teia emaranhada
onde me fui perdendo,
descubro na memória um clarão branco
e vejo desolado que não tenho uma cidade
a que pertença inteiro
e lhe devote as minhas palavras
de modo tão fiel como os choupos repartem
o sol com os seus bairros e dão sombra no estio;
não sei se o tempo apaga a origem,
a ilha que não é minha senão no sangue
de velhos capitães
que meu pai garantia correr-me nas veias
e o rio que foi meu, largo rio, mar
onde aquele que eu era se afogou.
Essa ilha naufragou sem a ver,
esse rio não corre mais,
e às vezes quando passo para norte
e o vejo não o sinto, é outro rio.

Se habitasse nas suas margens talvez
o exílio não tivesse surgido,
seria o mesmo rio que hoje flui ausente
na memória despida de sinais
e apinhada de rostos inúteis,
de mortos e de amigos que partiram
deixando as cidades por onde andei
desertas como o exílio que sinto esvaziar-me
de paisagens antigas,
de retratos de um velho álbum
nas folhas de um jornal ido há muito.

Autor : Nuno Dempster
Imagem : Brian Oldham