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domingo, fevereiro 24, 2019

Em que pensava eu ainda agora?

Há um ruído contínuo. Umas vezes lá ao fundo, outras vezes cabeça dentro; é como uma matraca mas uma matraca por vezes a bater em superfície acolchoada. O silêncio, nas cidades, tornou-se um bem, é produto de luxo ao alcance apenas de uma minoria. Ainda assim é preciso desejá-lo.

O ruído de fundo ininterrupto molda as pessoas. Se, porventura, esse ruído sofre interrupção, logo sobrevém a incómoda sensação de desconforto provocada pela impressão de alguma ameaça eminente. Silêncio implica catástrofe. É como quando as aves desaparecem do céu e se adivinha a proximidade da borrasca.

Viver na cidade exige a aceitação do ruído constante. O ruído faz parte do pacote, nem sequer se coloca a possibilidade de ser recusado. Viver na cidade é aceitar o ruído.

A pessoas como eu, que viveram a infância em ambiente rural e que têm, esporadicamente, a possibilidade de regressar a esse espaço mítico de paisagens verdejantes e montanhas azuladas pela distância; a imposição grandiloquente de um ruído benfazejo não constitui sedução suficiente ao ponto de evitar uma certa náusea, uma certa vertigem, uma quase rejeição muscular.

Por vezes dou por mim a reparar na barulheira, lá por detrás do cérebro e penso: em que pensava eu ainda agora? Lembro-me de uma frase que escrevi num "diário gráfico" dos meus primeiros tempos de estudante, quando troquei a pasmaceira dos espaços que habitei durante a minha infância e adolescência pela Babilónia incansável que é a Grande Cidade; escrevi então "traz-me todo o silêncio que encontrares e pendura-o nessa parede".

Só agora, quase 40 anos volvidos, compreendo o que quis dizer então, só agora alcanço o valor do silêncio.

sexta-feira, março 14, 2014

Numeração humana

Os nazis tatuavam nos judeus que mastigaram em Auschwitz aqueles numerozinhos sinistros como factor de identificação. Uns no braço, outros no peito, estavam todos escritos para não haver confusões.

A nós tatuam-nos uma série de numerozinhos no cartão de cidadão: identificação fiscal, utente de saúde, segurança social e mais uns quantos, um pouco menos perceptíveis mas, decerto, individualizados.

Há também os números das contas bancárias (que alguns de nós tatuam na memória), além dos números dos cartões de débito ou de crédito que funcionam como aquelas tatuagens que saem como brinde nas guloseimas das crianças; aquelas que se "tatuam" com água e vão desaparecendo com o tempo.

Estamos todos escrevinhados, riscados e carimbados, identificados, numerados e chipados. Somos como pombos com anilha electrónica, não damos um passo que não possa vir a ser reconstituído no futuro caso seja necessário alguma autoridade saber onde fomos, por forma a poder decidir o que andámos a fazer.

Virá o dia em que todo e cada ser humano será chipado à nascença, um chip enfiado algures, num lugar de onde seja inamovível. Todos os números guardados bem fundo do ser, o sonho de qualquer sistema burocrático contemporâneo.

Estamos marcados para a vida e, decerto, um dia que nos enfiem num caixote e nos enterrem algures, haveremos de ter um numerozinho qualquer que nos identifique, individualize e permita saber com exactidão onde foram depositados os nossos restos mortais.

segunda-feira, maio 07, 2007

Bom tempo

Chiça penico, quanto mais brilha o sol mais negra é a sombra!

Afinal de que falamos nós quando falamos de "bom tempo"? É o tempo do solinho e das areias da praia, das mangas-curtas e dos óculos escuros? Quando vemos sol forte pela manhã já ganhámos o dia! É o bom tempo em todo o seu esplendor. Mesmo que as pessoas continuem a ser tratadas como montes de merda com 2 olhitos e que o trabalho seja visto como um mal a suportar e não se dê o mínimo valor ao esforço de quem o faz. Mesmo que os tiranetes de opereta se riam do alto das suas barrigas ou os cães vadios continuem a ganir e a rosnar pelos cantos da cidade, haja sol, temos bom tempo.

Ou será que o "bom tempo" verdadeiro é aquele que já passou, aquele de que só restam vagas recordações que nos fazem saudosistas e desconfiados perante o momento que estamos a viver? "No meu tempo é que era!" ouço dizer e, quando volto a cabeça para encarar o autor do desabafo, vejo sempre um velho a tentar puxar para mais perto os tais "bons velhos tempos".
Pois é, é aí que reside o pormenor que faz a diferença. Quando falamos no singular e dizemos "bom tempo", é do sol que falamos. No plural, "bons tempos", é do passado, de quando fomos felizes, mesmo que isso não seja bem verdade nem tão-pouco mentira, apenas uma ilusão polida e aprimorada pela distância do Tempo (esse aí, com "T" já mete mais respeito mas não quero pensar Nele agora).

Isto a propósito de estarem a passar-se coisas incómodas e injustas e nítidamente mal intencionadas a toda a hora e momento, mesmo à frente dos olhos de todos nós. Mas, como o sol está ali mesmo a dourar a caca, nós dizemos, resignados, que está um belíssimo dia e um sol glorioso. Não está nada.
Está a ser um dia de merda!