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domingo, março 02, 2025

Coro dos Cidadãos

 

Curvo a espinha

que a culpa é minha,

limpo do chão

a merda do cão.

 

Subo a avenida

no autocarro

e pago-te a conta

com um escarro.

 

Já não há um comunista

a zelar em cada esquina,

ele é mais muito turista

subindo a pé rua acima.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 (decrescendo de volume até ao silêncio)

terça-feira, fevereiro 18, 2025

A Paz como Comédia

 Descia a avenida depois de umas horas na Biblioteca onde começara por ler e consultar as notas de A Paz de Aristófanes (diverti-me muito com o diálogo dos escravos que alimentam de merda o escaravelho que servirá de montada a Trigeu) e, já de saída, passei os olhos pelos primeiros versos de A Divina Comédia na tradução de Vasco Graça Moura.

Dizia eu que descia a avenida depois destas indolentes leituras quando fui assaltado pelas palavras que a seguir transcrevo:

A vida de cada um não passa de intervalo 
durante o qual o corpo de alma é disfarçado. 

Parei no passeio e registei a coisa no caderno que trazia no bolso esquerdo do casaco.

sexta-feira, fevereiro 07, 2025

Coro dos Desalojados

 

Coro dos Desalojados

A luta continua,

vamos todos para a lua;

para a lua vamos todos

empurrados com bons modos.

 

Uns dias amam-nos muito

outros dias nem por isso;

tudo depende do guito,

guito paga compromisso.

 

Nas ruas desta cidade

já nem os pardais têm asas

e são os filhos da puta

quem nos fica com as casas.

 

Quem manda é gente de bem,

gente suja e perfumada,

uns grandes filhos da mãe

que nos pagam com porrada.

 

Hoje não tenho casa,

não tenho sequer barraca,

trago uns filhos na escola

outros a pedir esmola.

 

A luta continua,

vamos todos para a lua;

para a lua vamos todos

empurrados com bons modos.

 

 

terça-feira, dezembro 10, 2024

Espécie de elegia

     Não sei o que dizer. Sinceramente!? Nem sequer sei o que fazer. Assim sendo, deixo o trabalho entregue aos mecanismos do relógio na esperança de que as coisas possam fazer algum sentido caso seja o Tempo a responsabilizar-se pelo desenrolar dos acontecimentos. Entregar o destino a molas e rodas dentadas, ponteiros presos ao centro da circunferência das horas do dia.

    A impotência é grande. Perante a inevitabilidade dos acontecimentos encolho-me, abstenho-me, anulo-me. Faço a única coisa que me parece estar ao meu alcance: desenho. Como se cada imagem pudesse sublimar tudo o que se revolve dentro do meu ser; as tripas misturadas com a alma, o coração a tentar ser inteligente, as mãos resolvendo o que o cérebro não abrange sequer, coisas impossíveis, coisas patéticas: humanidade.

    Tivesse eu garras e presas, fosse eu todo músculo, todo instinto, todo arrojo, fosse eu um lobo faminto e talvez o mundo fizesse mais sentido, talvez pudesse viver mais sossegado, apesar do frio, apesar da fome, apesar dos homens.

sábado, novembro 30, 2024

Vinha trazer-vos o Amor

     Vinha trazer-vos o Amor mas tenho a sensação de ser coisa que vos não faz falta. Tendes as Black Friday, tendes o Tik Tok e o Facebook, os smartphones e as companhias low cost, tendes tudo e tanta coisa, que falta vos poderá fazer algo tão etéreo, vago e indefinido como "é coisa que arde sem se ver"?

    Vinha trazer-vos o Amor mas decidi ficar-me pela tasca da esquina a comer um choco frito pobremente regado com uma imperial, fresca q.b.

quarta-feira, março 20, 2024

Dúvida acumulada

     61 anos de dúvida acumulada pagam o valor de uma pergunta apenas. Uma vida inteira até chegar o dia de agora para encontrar uma única resposta sem sequer ter formulado a pergunta que possa corresponder-lhe. 

    61 anos de dúvida acumulada são todo o espaço em volta de uma palavra solitária; uma palavrinha perdida, a ecoar baixinho na imensidão que é para mim a vida toda que vivo, coisa insignificante seja qual for a escala de medida com a qual tente compará-la. 

    Uma palavra a pulsar, coração da existência, a bombear sentido para a existência, para o mundo, para nós, palavra solitária, absoluta, arrasadora semente de vida.

    Julgo ouvir a palavra "amor"...

quarta-feira, março 13, 2024

Silencioso

     Faz hoje exactamente um ano. Caronte vinha já deslizando, silencioso como ele só. Terá por mim passado no caminho, não me apercebi, não o vi, não o senti. Faz hoje exactamente um ano que chegou Caronte.

    Chegou cedo, encontrou-o a dormir. Não sei se falaram, se olharam nos olhos um do outro. Caronte levou-mo. Não mais voltei a ver o meu pai. Fica a saudade, enquanto Caronte não voltar, dessa vez para me levar.

terça-feira, fevereiro 27, 2024

Saudade

     Por vezes sinto-me tão próximo de qualquer coisa semelhante ao que imagino que possa ser a verdade que a felicidade dentro de mim quase ocupa algum espaço. É difícil de explicar por se tratar de uma sensação cá muito perdida nas profundezas do meu ser mas sei que é uma coisa real, de outro modo não me aperceberia da sua presença, da sua fisicalidade.

    Isto acontece de surpresa. Não posso dizer que acontece quando menos se espera pois estaria a mentir e a mentira não faz parte da minha prática. Quando sinto necessidade de mentir costumo ficar calado. Omito. Ou tento omitir, nem sempre resulta. A mentira é um embaraço. Mas, dizia eu, isto acontece de surpresa.

    É uma coisa que não se força, não se busca, deixa-se acontecer e é uma felicidade. É fugaz, é transitória; na maior das parte das vezes, conforme vem assim se vai, sem deixar vestígio nem registo. Fica apenas uma espécie de saudade. Acho que é isto, a saudade. Que a saudade é isto.

sábado, fevereiro 24, 2024

Escuridão

     Há coisas que servem apenas para existir. Não têm aparente utilidade prática. Limitam-se a cumprir o seu papel. Por isso mesmo encontram-se frequentemente em vias de extinção.

    Incansáveis, procuramos o espírito da coisa embora saibamos que a coisa não tem espírito, que a coisa, na maioria das vezes, se esconde dentro de nós.

    Cercados por alcateias de monstros ávidos de riqueza assistimos impotentes à desolação da paisagem.

domingo, janeiro 21, 2024

O mostrengo

  De vez em quando lá aparece Cavaco Silva a perorar sobre os malefícios de toda a governação que não a sua. Quem me conhece sabe o desprezo que nutro por esse ser vivo. Admito que seja exagero meu, que não lhe faça justiça, sei que, este quase ódio, não é coisa que se cultive assim, ao deus-dará e com nítido regozijo. Confesso: dá-me prazer achincalhar esse miserável aprendiz de Nosferatu (talvez ele nem saiba quem é Nosferatu).

    Como tal, de quando em vez (muito influenciado pelas aparições do mostrengo) vêm-me à cabeça certas ideias que preferia não ter. Ainda aqui há 10 minutos registei no meu caderno este quase-poema: "O cavaco não desiste de nos assombrar por trazer ainda aquele sapo entalado. Foi obrigado a engoli-lo mas não o consegue cagar. Coitado."

    E pronto. Está uma bela tarde de Domingo, soalheira mas fria que racha! O mostrengo irá regressar em breve. Ele avisou.

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Pressentimento

     Os dias sucedem-se como se os respirasse. Como se no céu batesse um coração azulado, como se no ar transpirassem pesadelos ainda por sonhar. Sinto minguar a confiança depositada na arte que produzo; mingua sem razão e sem aviso, vejo-a a desaparecer no fundo de um poço sem fundo.

    Porquê, como pode acontecer tal coisa?

    Talvez o expliquem as linhas definidas pelo vôo dos pássaros ou as inusitadas formas das nuvens que dançam no peito do céu ao ritmo do coração azul que nele vai batendo. Ainda ontem me senti pleno de fé, mas hoje...

    ... hoje olhei mais o chão do que repousei nos ares o meu olhar, pressenti pesadas aves presas a ramos de árvores por desenhar, aves de morte rodopiando numa espiral em direcção ao sol, na direcção de Deus, do olhar divino, abutres que sobem, sobem, sobem, até que são já pardais, são moscas, mosquitos, pontos projectados na perdição dos dias que se sucedem como se os respirasse.

    Como se no céu batesse um coração azul rodeado de fantásticas nuvens disfarçadas de sonhos por sonhar. E eu sinto a confiança que regressa. Volto a acreditar na minha obra, mais do que acredito naquilo que penso que sou, no que fui, no que serei.

    Sei que uma vez chegado ao meu destino serei nada. Ficará aquilo que fiz, nunca nada quem eu sou, meros vestígios de quem fui.

quinta-feira, janeiro 04, 2024

Cantiga de escárnio

     És o gajo das falas impossíveis, mestre das caganitas; nem com a navalha aberta, nem com lábios de palhaço, muito menos calcando saltos altos, poderias assustar a criancinha! Vai, regressa à caverna que te pariu. Faz-te sombra e desvanece.

sexta-feira, dezembro 29, 2023

Anjinhos

  Embrulhadas, mortas, como rebuçados amargos, são carregadas como se de penas fossem feitas; não doesse tudo isto, não doesse como doem pregos espetados nos olhos, pregos espetados nos ouvidos e nos pés, dir-se-ia que o embrulho transportava asas de anjo; os anjos não têm asas; asas têm os pássaros e os caças e os bombardeiros e os mísseis têm pequenas asinhas que lhes estabilizam o vôo trazendo a morte com a exactidão possível; no embrulho são transportados danos colaterais, já sem sonhos, já sem vida, já sem dor; os embrulhos trazem dentro pequenos corpos que nunca chegaram a imaginar o futuro. Nos embrulhos vão anjinhos.

terça-feira, dezembro 19, 2023

Noite

     Porque raio, porque carga d'água, por que displicente tempestade haverias de deixar cair os teus queixos a seus pés! Princesa nocturna. A chuva fazia cócegas no dorso da montanha, navalhas geladas enchiam-te as mãos com vontade de morrer. E matar. Sonho nenhum poderia resgatar-te, nada neste mundo seria capaz de aplacar o fogo que te consumia o pássaro fechado na gaiola. No teu peito. Esta vida não é nada. O amor não vale tudo. Terrível princesa, noite tenebrosa.

quarta-feira, dezembro 13, 2023

Gente do meu bairro

     Ficam coisas velhas, com paus espetados para dentro e panças rotundas que lhes balançam sobre as pernas finas. Fomes antigas permanecem, fomes que não morrem, pequenos mundos, minúsculos pensamentos. Imaginam ser homens. E têm desejos confusos, desejos como coisas vivas, desejos viscosos que serpenteiam entre os prédios, que deslizam pelas ruas e acabam, cansados, deitados na noite escura.


segunda-feira, dezembro 04, 2023

Garrafas nas ondas

     Com o Tempo a passar-me por cima da cabeça (de mãos dadas com as nuvens) olho o horizonte. Uma linha perfeitamente recta separa o céu do mar que lhe reflecte a cor, fazendo com que a translucidez solidifique, cinzenta. Não há barcos nem navios nem baleias nem golfinhos. Apenas aquela imensidão abruptamente interrompida pelo limite do que a vista alcança.

    Deixo vogar as ideias, garrafas atiradas às ondas com secretas mensagens de amor, de desespero, mensagens que são sonhos, outras pesadelos. Ali fico a vê-las que se afastam levadas pela força do mar. Imagino-as a vogar mar alto adentro, perdidas, para os confins do mundo. Irão elas juntar-se ao Sétimo Continente?

    Assim é. Sentado na areia húmida imagino-me diferente do que sou mas não consigo retirar esse outro eu deste mundo sujo. Olho distraído as ondas que desenham rendas de frol a dois metros dos meus pés. É o mundo a hipnotizar o que aqui está sentado na esperança de libertar o outro que nem ele nem eu sabemos se existe realmente.

    É claro que não! É claro que sim! É evidente, talvez.

quinta-feira, novembro 30, 2023

A ronda das sombras

     O que fazemos na noite por lá fica. A rondar. 

    Raiando o sol tudo muda. Vão-se os fantasmas a descansar, a poesia das sombras mais densas mistura-se com o mesmo ar que tanto envolve as flores como a sucata enferrujada. Os gatos deixam de ser leopardos e as ambulâncias recuperam o seu aspecto de veículos em movimento. Ou parados, atirando luz em volta, como ondas provocadas pela queda de uma pedrinha bem no meio da piscina deserta.

    O dia regressa e as coisas que fizemos durante a noite, lavamo-las no duche com sabonete Rexina. Por exemplo. É a luz, o efeito da luz. As coisas transformam-se tanto quando lhes bate a luz! Ou quando a luz as acaricia ou as submerge ou lhes empresta cor. 

    O mundo muda tanto.

    "É como da noite pró dia" dizemos nós quando queremos mostrar um abismo, uma diferença profunda como um abismo, um alto contraste, um objecto em movimento por oposição a um horizonte fixo, os mecanismos do tempo accionados pela deslocação do objecto. Quando ele se vai resta o horizonte. Fixo, fora do tempo.

    Desce a cortina da noite. Regressa o desejo, regressa o segredo, regressam as sombras, os leopardos, todas as coisas que rondaram por ali enquanto o sol fazia o seu trabalho. É tempo de voltarem a existir.

sábado, outubro 07, 2023

Absolutamente...

     Andamos para aqui aos tombos de encontro às paredes do Tempo que ora se fecham ora se abrem perante nós revelando um planeta selvagem que se vai estendendo em direcção ao infinito visível. E morre muita gente pelo caminho. Na verdade, morremos todos.

    A nossa morte não é motivo de tristeza duradoura pois os que esperam atrás de nós na fila das vidas a viver têm pressa de encontrar a sua forma de lidar com as paredes do tempo na busca interminável pelos caminhos que levam ao infinito.

    O melhor é ficar por aqui. Divago de forma confusa e nem cheguei a metade do que não queria dizer até porque não sei do que se trata.

quarta-feira, junho 28, 2023

Poema indolente

     Há tanta coisa a ver, a ter, a não perder,,, roda-me a cabeça.

    (rima fácil) 

    Tanta coisa a desejar, a explorar, o mundo todo para viajar... deus meu, nem sei para onde me virar, serei um bronco completo caso não seja capaz de aproveitar.

    Dizem-me que cada crise é afinal uma oportunidade, cada vez que ouço "não" estou, na verdade, perante uma sugestão de superação. Se perseverar haverei de lá chegar. O segredo é não desistir, ser positivo, acreditar!

    Mas sinto que sou um bocado lento, tenho por hábito pensar e dou por mim a dizer: ide-vos mas é foder, eu quero é descansar.

quinta-feira, abril 27, 2023

Fome de mais tempo

     O tempo encurta-se, cada dia mais curto, cada dia mais fechado, é uma caixinha com forma de ampulheta. O tempo muda de forma, ora ganha ora perde um aspecto que anteontem não tinha ainda. É um tempo de narrativas curtas, vidas inteiras metidas num clip, num anúncio publicitário, numa canção da moda, três minutos top. O tempo encolhe, as histórias são historinhas e os heróis... o que é isso?

    O passado continua moribundo, espeto-lhe um garfo, corto-lhe um bom pedaço. Chamo-lhe nomes mas ele, digno (afinal é o passado!), ele não responde à provocação. A caixinha cai no chão e despedaça-se. Tempo espalhado, varrido, tempo na pá do lixo, tempo a jazer no caixote. Mastigo o pedaço.

    Acabaram-se as epopeias.