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quarta-feira, março 05, 2025

Imprecação matinal

     Havia de chegar um comboio caído do céu que atropelasse aquela cambada de filhos-de-uma-grande-puta que os pariu! Havia de existir um deus verdadeiro, um deus justo que existisse mesmo e lhes atirasse para cima uma doença, uma sarna peganhenta que lhes pusesse o corpo todo numa chaga e os obrigasse a andar pelos cantos a coçarem-se como cães sujos, Titanics de pulgas e carraças, o corpo todo aberto num sanguinolento sofrimento, que é o que eles merecem, grandes cabrões, vigaristas das dúzias! Havia de rebelar-se a Natureza e provocar-lhes mutações que mostrassem ao mundo o verdadeiro aspecto daqueles animais esbaforidos, daquelas bestas hediondas que trazem escondidas dentro: os focinhos, as dentuças, a baba malcheirosa a escorrer-lhes desde as beiças até transformar o chão que pisam em lama e pasto de minhocas.

    Mas não, nada. Continuam vestidinhos nos seus fatinhos caros e gravatinhas de uma cor, penteadinhos (imagino que também perfumadinhos), como se nada de especial se passasse, como se estivessem apenas a cumprir a vontade de deus, do deus deles, um deus mesquinho e pastoso, uma coisa amorfa, pesadona e incómoda que ou se venera ou se é por ele devorado.

quinta-feira, novembro 21, 2024

Bom dia

     Não deveria esquecer-me de que todos os dias podem começar como este começou. Começou com a leitura de uma das conferências de Borges publicadas em Sete Noites (esta versando a Divina Comédia). Não tanto pela imensa erudição que irradia das palavras escritas, não tanto pela beleza rítmica da forma (que mesmo na tradução para português não é perdida), não tanto pelo poço celestial do conteúdo: os dias deviam começar desta forma pois é leitura que me faz recordar o prazer que é estar vivo.

    Dou por mim a pensar como seria agradável que após a hora da nossa morte pudéssemos continuar a ler; como seria agradável que o universo continuasse para lá da cortina dos sentidos, uma infindável biblioteca, como o terá sonhado Borges; dou por mim a pensar que o inferno decerto será semelhante ao silencioso deserto de ideias que imaginei ainda há pouco.

sábado, outubro 12, 2024

Dito repensado

     Comeram-me a carne mas não hão-de roer-me os ossos. Os meus ossos, quem os rói sou eu!

segunda-feira, março 11, 2024

O bestunto

     A ascensão da extrema-direita nas eleições legislativas de ontem deixou-me a pensar no modo como nascem os monstros. Nascem como todos os seres, aparentemente frágeis e desprotegidos até que ganham dentuça, garras nas patas e passam a cheirar mesmo mal. Ontem o fedor entrou-me de rompante pela janela entreaberta.

    O mundo não acabou, apenas ficou ficou bastante mais feio e mais perigoso.

sábado, novembro 25, 2023

Qualidades indispensáveis

     O segredo, dizem, é não sentir vergonha. Afirmar o necessário para o controle da narrativa do momento. Introduzir novos dados surpreendentes sem que o sangue inunde as faces do declarante. Ser capaz de sorrir quando se tem vontade  de morder até as pedras da calçada. Ter nos inimigos amigos e vice-versa, conseguir que tudo pareça uma única coisa: a vontade de Deus!

    Finalmente, ser Deus.

segunda-feira, julho 31, 2023

Tinham desaparecido

     Saíram da porta entrando na rua. Vinham já a matraquear os queixos. Debitavam discurso de forma sincopada, como se fosse de todo inevitável que aquelas palavras fossem ditas, precisamente; ditas daquele modo. Como se as palavras tivessem sido já escritas pela mesma mão que regista no Livro o Destino de cada um e de todas as coisas.

    Passaram por mim como se eu fosse espírito, coisa incorpórea ou invisível, como se fosse, pelo menos, tão discreto como papel amarrotado ou saco com merda de cão esquecido no passeio público. As palavras ganharam volume, máximo quando me passaram a rasar os ouvidos e foram perdendo nitidez com a distância, pela graça de Deus e das Leis da Física.

    Continuei o meu caminho pensando, como nem sempre faço. Pensei que, quando acordamos e até que pomos os penates fora de casa, o esforço matinal será imaginarmos que a nossa vida é uma coisa interessante, que faz sentido. Pensei ainda que verbalizar essa imaginação ajuda a que se aproxime de fazer sentido, fortalecendo a possibilidade de sermos pessoas cuja vida é plena. Que isso faz de nós agentes importantes no tecido social; que esse tecido abrirá um buraquinho caso estejamos ausentes.

    Voltei-me e já não vi as personagens falantes.

    Terão elas ido mudar o mundo?

sábado, julho 08, 2023

Sabedoria

     À interpretação do objecto artístico ajuda muito aquilo que sabemos mais o que vamos sabendo. A maior ajuda que nos pode dar a sabedoria é provocar-nos a imaginação, que mais não é que um certo tipo de conhecimento, meio selvagem, um animal que vive connosco mas difícil de domesticar. A sabedoria vive dentro de nós só que se esconde em grutas que ainda desconhecemos.

    A obra de arte esconde dentro dela muitos segredos que são nossos.

    Até ao dia.

quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Sabedoria mais ou menos popular

  Quando a esmola é grande o pobre desconfia, o rico pede mais. O pobre pensa que talvez não mereça tanto ou que alguém o pretenda enganar com tamanha generosidade; já o rico, ciente do seu brilho e da forma como funciona o direito divino, acha pouco o que lhe oferecem. Tudo o que possa ganhar e acumular será sempre pouco. É tudo uma questão de hábito.

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

Da explicação do mundo aos mais jovens

     A tinta encolhe-se na caneta. Tem frio. A caneta sente necessidade de raspar no papel mais do que desejava mas não há razão para que se sinta culpada. A vida dos objectos é assim mesmo, eles não foram criados por deus.

quinta-feira, janeiro 12, 2023

Visão abjecta

     A Estupidez e a Ignorância passeiam sempre de mãos dadas. Quando encontram a Crueldade (nefastas ocasiões!) organizam orgias sangrentas.

quarta-feira, janeiro 04, 2023

Alegoria

         Por vezes penso: a Caverna da alegoria platónica é a caverna do meu crânio. O gajo especado defronte à parede é o meu cérebro e as sombras projectadas são as imagens recebidas pela minha retina. E concluo: cada um de nós é, ele próprio, a Alegoria da Caverna.

sexta-feira, dezembro 23, 2022

Mundo maravilhoso

     O mundo está tão cheio de coisas extraordinárias que é difícil perceber a reles ordinarice.

segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Dos monstros

    Os monstros não são  apenas aqueles que te querem comer; os monstros são também aqueles que te desprezam mas te lambem com volúpia.

segunda-feira, janeiro 11, 2021

Viver

As portas voltam a fechar-se. Somos todos crianças que não compreendem bem as regras de convivência adequadas, fazemos asneira, somos castigados. Parece ser esta a nova ordem natural das coisas: crianças mal comportadas são confinadas. Não é brincadeira,  é a vida que temos para viver a ser posta à prova e nós a a não sermos capazes de o fazer como imaginamos que gostaríamos.


domingo, abril 05, 2020

Isolado

Estar isolado é estar numa ilha. Como Robinson Crusoe, sozinho numa ilha, plantado numa ilha, como uma palmeira. Até que surge Sexta-Feira e o isolamento perde plenitude, passa a ser partilhado. Deixa de ser isolamento?

Isolamento social não é novidade. Todos nós somos ilhéus sociais de longa data.

domingo, fevereiro 09, 2020

Paz de espírito

O desconhecido pode provocar em nós angústias injustificadas. Só poderemos ter consciência dessa injustificação caso o desconhecido seja revelado. Se, por acaso, essa revelação nunca acontecer poderemos viver numa ignorância constante, em permanente equilíbrio sobre o fio da navalha mas sempre com um plácido sorriso nos lábios e uma pena de pintainho no lugar do coração.

sexta-feira, outubro 04, 2019

A sombra

"Já nem sequer me assusto" disse ele para o botão das calças, o único que lhe restava capaz de ter uma conversa, "sinto-o aqui atrás, parece-me estar mesmo sobre o meu ombro, mas já nem sequer me assusto". Continuou concentrado no jornal sem registar com grande rigor a informação que ia ingerindo juntamente com o ar que respirava misturado num café amargo como a vida.

terça-feira, setembro 10, 2019

Ir indo

Acabo de compreender que para se ter uma grande história não é preciso nada de especial. Uma grande história é sempre uma viagem. Só precisamos ir.

terça-feira, julho 30, 2019

Passeio na praia

Hoje de manhã fui até à praia. Bem cedo, pouca gente, muito vento. Resolvi passear a favor da ventania. Pessoas para trás, pessoas para a frente, aqui e ali uma gaivota, mais adiante um verdadeiro ajuntamento desta passarada.

Nesta conjuntura o pensamento espreguiça-se e vai andando mais à frente, por vezes atrasa-se, sinto-me uma espécie de autómato.

Foi então que reparei que tenho 56 anos e ainda não aprendi quase nada. Preciso de espaço para viver a minha vida mas não percebo muito bem como vivê-la. Haverá regras? Linhas gerais de orientação? Objectivos?

Sempre fui mais de fazer do que de reflectir, assim à maneira daqueles cowboys do velho Oeste, que disparavam primeiro e perguntavam depois. Vou deixando as coisas que faço, uma pista de bolinhas de miolo de pão; talvez um dia pretenda fazer o caminho de regresso.

Olho as gaivotas. Talvez elas comam as bolinhas e eu perca a noção do caminho de regresso. Não há volta a dar, resta-me avançar, ir fazendo, reflectindo... caminhei demasiado.

Quando fiz meia volta a minha atenção foi captada por outras coisas, outros pensamentos se formaram e esqueci tudo aquilo até que, sentado em frente ao teclado do computador escrevi isto.

É assim, a vida vai-se vivendo. Estou convencido de que é feita muito mais de esquecimentos que de recordações. Posso estar enganado. Na verdade nada disto interessa.

quarta-feira, fevereiro 13, 2019

Fogo!

A beleza é algo fulgurante, coisa que reconforta a alma... até que a incendeia.
Uma alma a arder não é exclusivo do inferno.