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quinta-feira, 2 de julho de 2020

Radicalidade ─ nem urgentismo, nem conservadorismo



                                        Quadro de Chagall
Radicalidade ─ nem urgentismo, nem conservadorismo                                                            
1.A emergência climática, os riscos pandémicos e a constância das desigualdades socioeconómicas agravaram a toxicidade do capitalismo.
O sofrimento coletivo, a angústia prospetiva, a dissipação cultural criam uma atmosfera política cada vez mais insalubre, aberta a todos os desesperos. Os horizontes de esperança tendem a reduzir-se a miragens.
O combate por uma sociedade nova, para superação dos pesadelos que assombram o nosso presente, exige, cada vez mais, o fim da sofreguidão imediatista e políticas suficientemente inscritas no horizonte, para comportarem e até exigirem a opção por estratégias de longo prazo. Estratégias suscetíveis de visarem com verosimilhança transformações radicais da sociedade, de modo a que os estrangulados pelo modelo vigente, as vítimas das desigualdades atuais, se sintam impelidos e motivados a partilhar um caminho que leve a essas transformações. E só a exploração do fundo das questões, pelo exercício de uma radicalidade crítica, pode mostrar-nos o caminho. Se o longo prazo não impregnar o cerne do curto prazo, dando à utopia uma realidade imediata como esperança verosímil, dificilmente se poderá incorporar na nossa imaginação um futuro à medida dos grandes sonhos que movem a História. E se essa esperança nos fugir, estar-se-á mais perto de um desespero sem margens e do risco de caóticas automutilações das sociedades.
A radicalidade política passou, por isso, a ser uma condição indispensável do êxito de qualquer processo democrático de transformação social. Na verdade, sem se recusar desde a raiz o modo capitalista de reprodução da vida social não se dá verosimilhança a um tipo de futuro por que valha a pena lutar, não se abre uma janela de esperança que permita que respire quem atualmente suporta o maior peso da injustiça social.
Mas não pode nunca esquecer-se que a radicalidade política não é sinónimo de urgentismo. Especialmente, se for um urgentismo que embora se conforme com a eternização das árvores velhas lhes exija depois que deem frutos novos. Um urgentismo que, sentando-se apoplético à sombra das laranjeiras, lhes exija com veemência que passem a dar maçãs. Ora, já diziam os oráculos na antiguidade, que, por mais assustadas que fiquem, as laranjeiras nunca poderão dar maçãs. Mesmo que seja trovejante a vociferação dos urgentistas, as laranjas poderão no máximo dos máximos nascer um pouco mais doces, sem no entanto desaparecer o risco de afinal nascerem ainda mais amargas.
Na verdade, só uma radicalidade política, que aponte com verosimilhança e clareza para a metamorfose do modo de vida presente, será capaz de mobilizar as vontades de mudança suscetíveis de se fundirem numa dinâmica social transformadora. Só essa radicalidade geradora de uma metamorfose superadora do capitalismo, rumo a uma economia humana que possa ser o rosto de um pós-capitalismo, trará os povos para o interior da esperança.
De nada adiantará mastigar velhas soluções como se fossem novas. Nem mesmo recorrendo à lucidez crepuscular do velho leopardo, genialmente inventado por Giuseppe T. di Lampedusa, quando percucientemente sugeria a necessidade de se mudar tudo para que tudo pudesse ficar na mesma. De nada adiantará maquilhar de inovadoríssimas velhas receitas, cuja última razão de ser é a conservação aconchegada do modelo capitalista atual.
E não é possível também que se ache suficiente e eficaz o simples apedrejamento virtual do neoliberalismo, identificando-o como doença infantil e passageira de um capitalismo que afinal até se quer ver livre dele. E uma vez curado regressará provavelmente a si próprio, salvando-nos finalmente a todos. Não salvaria.
Por isso, não faz sentido acolher calorosamente, nas hostes que combatem o neoliberalismo, os ex-chefes das orquestras que o têm interpretado diligentemente, para que todos em fraterna cumplicidade apupemos ferozmente as sinfonias que eles próprios regeram até ontem; e cujo apedrejamento nos convidam hoje a partilhar. É que, em última instância, a hipocrisia política (quando subtil) pode driblar os incautos, adormecê-los com flautas mágicas, mas acabará por esbarrar na realidade. Nunca se deve confiar nos lobos para liderarem a resistência dos cordeiros.
Também não podemos deixar-nos escorregar para uma radicalidade indolente que se deixe dormir à sombra da sua própria lucidez. Pelo contrário, a lucidez da radicalidade crítica só é fecunda animada por uma inquietação permanente. Temos que valorizar uma radicalidade tensa e ativa, capaz não só de fazer pontes como de traçar fronteiras. Uma radicalidade em movimento.
Na verdade, uma radicalidade apenas paciente poderá ver esfumar-se rapidamente todo o seu potencial futurante. Desde logo, não pode fugir do combate às secreções mistificatórias da ideologia conservadora dominante, a ideologia de conservação do capitalismo, sempre enroupada por um discurso dogmático travestido de científico, numerologicamente condimentado. É preciso arrancar os narizes de cera que contaminam o espaço público, desfazendo as evidências que escondem a realidade. A radicalidade propositiva não dispensa, no entanto, uma tonalidade crítica que se questione a si própria, para que a coerência não possa ser confundida com dogmatismo e a persistência com teimosia. Uma radicalidade nunca inflexível, mas sempre vertical; sempre prudente, nunca pusilânime.
Por isso, esta radicalidade transformadora, centrada num horizonte emancipatório, que se assume como gradualista para poder ser profunda, só pode afirmar-se autenticamente no seio de um processo único em que se conjugue com a intensificação da democracia em todas as suas dimensões, em todas as instâncias. Uma democracia ao mesmo tempo modo de ser e objetivo parcial da metamorfose desejada; mas que é exigível desde já para que nela as ideias transformadoras se possam confrontar livremente com o conservadorismo dominante, para que vencendo-o, convençam, impregnando duravelmente as consciências, conquistando uma hegemonia robusta.
Nunca esqueçamos no entanto, que a recusa do urgentismo, a opção pelo gradualismo, o respeito pelas necessidades de amadurecimento dos processos, não pode converter-se numa complacência indutora de lentidão. Lentidão que fará aumentar o risco de paralisia e colapso de uma possível transformação e poderá bloquear a metamorfose almejada.

2. Feito este enquadramento, olhemos mais para o imediato. É um lugar-comum o alvitre de que a pandemia em curso vai mudar o mundo. Uma insidiosa e difusa neblina lança no entanto alguma incerteza sobre o significado desse alvitre.
Parece, às vezes, tratar-se de um voto de urgência quanto à necessidade de se caminhar com celeridade para um mundo mais justo; de uma consciência mais aguda e mais generalizada de que a insistência na conservação de um tipo de sociedade indutor de desigualdade, de pobreza e de exclusão é insuportável. Mas não deixa também de às vezes nos sobrevoar como ave agoirenta a ideia difusa de que o fruto da mudança, que se sugere já estar consumada, é um tempo de sacrifício que apenas  nos cabe estoicamente suportar.
O mundo mudou, dizem insistentemente as sereias do óbvio. Ora, fazer a constatação de que o movimento dos vários planos da vida e da sociedade é indutor de uma cadeia de mudanças na superfície das coisas e na pele dos dias, podendo ser um mero sinal de realismo, não deixa de poder ter uma ressonância perversa. Na verdade, a circunspecta proclamação de que o mundo mudou (já mudou), pode sugerir que isto que aí está e que tanto nos esmaga já é um aspeto, um fruto, uma antecipação dessa mudança. Não é. Mas, além de assim se poder sugerir que a estagnação é a mudança possível, pode subliminarmente induzir-se a ideia conservadora de que, uma vez que o mundo já mudou, perdeu sentido a vontade de o mudar.
Não perdeu. Igual a si próprio, espelhando o capitalismo que nele predomina, o mundo atravessa uma crise vivida como um pesadelo para milhões de pessoas. Verdadeiramente está agitado, mas não em movimento. Não se abriu ainda a uma humanização radical, libertadora e superadora das desigualdades atuais. A vertigem da aceleração do tempo numa sofreguidão de urgências, que parece arrastar-nos para uma voragem de precariedades em que tudo é provisório, não quebrou a inércia estrutural que tem conservado a sociedade atual confinada no capitalismo. Não escapámos ainda do pântano das catástrofes.
Não estamos a percorrer um caminho que tenha mesmo como horizonte a paz, a liberdade, a igualdade e a justiça, um caminho democrático numa atmosfera de solidariedade e cooperação. Adiar mais o início dessa transição, rumo a um pós-capitalismo, carrega cada vez mais  o mundo de riscos graves. É a imperatividade desta transição e a sua urgência que a atual pandemia tornou absolutamente incontornáveis.

3. Percorrer esta transição não será um alegre passeio através de jardins, fará certamente com que se rasgue a pele de muitos sonhos, porá escolhos diante de muitas ousadias, desafiará esperanças com desilusões, mas é o único caminho que pode levar a um horizonte humanizante e libertador. Dificuldades, no entanto, bem mais suportáveis do que a permanência no cinzento deste tempo fechado.
As esquerdas que ficarem alheias a essa transição deixarão objetivamente de se poderem considerar como tais. Nenhuma delas pode estagnar melancolicamente na saudade de um futuro a que renunciou. Mas as entidades político-partidárias, que protagonizam institucionalmente as esquerdas no aparelho de Estado, não devem ser tolhidas pela ilusão de que é aí que tudo se joga e se decide. É certamente também aí; mas não apenas aí. Sem as dinâmicas endógenas da sociedade que se projetam nos movimentos sociais, com relevo para as que materializam resistências ou alternatividade em face do capitalismo, a metamorfose cujo horizonte é a sua superação poderá ficar bloqueada.
É por isso urgente dar corpo a uma vasta rede de entidades e de cidadãos, de organizações e de pessoas, agindo conjugadamente com flexibilidade dentro e fora das instituições, protagonizando um permanente debate de ideias, gerador de conhecimento e de um cultura crítica que potenciem a compreensão do presente para se poder caminhar transformando-o. Mas, se a ação política tiver horizontes tão cinzentos que impeçam os explorados e os excluídos de cultivarem esperanças verosímeis em concreto, eles não se envolverão no combate pelo futuro. Ora, sem o envolvimento das vítimas atuais da desigualdade, uma luta pela transformação social continuada, esclarecida e consistente, que aproveite as energias do povo e as estimule cada vez mais, será uma miragem. Mas se forem fechadas as portas do futuro àqueles para quem o presente é insuportável, dificilmente se evitarão explosões sociais devastadoras e estéreis, eventualmente contra civilizacionais.
Por tudo isto, vemos como é necessário que as esquerdas revisitem sem preconceitos as suas tradições emancipatórias comuns, a história das suas conquistas e dos seus falhanços, das suas intuições luminosas e dos seus erros, para poderem somar-se umas às outras na construção de um espaço ideológico comum. Somar-se num espaço comum de crítica e de luta, ancorado firmemente numa imaginação do futuro bem enraizada nas tradições emancipatórias e libertadoras da humanidade. Espaço comum composto por regiões, cuja diferenciação exprima a heterogeneidade da esquerda no seu todo, respeitando diferenças sem comportar muros nem fronteiras. Um espaço em que as diferenças de opinião, a heterogeneidade das ideias, exprimam e estimulem uma permanente criatividade crítica. Sem dogmatismos, sem anátemas, sem excomunhões.
Só assim se pode esperar sem fantasia que o povo de esquerda se ponha sustentadamente em movimento, só assim o cinzento pesado e triste dos tempos presentes se esfumará no quotidiano dos explorados e dos excluídos, só assim o protagonismo institucional das esquerdas ganhará sentido e poderá ser eficaz na realização dos objetivos que o justificam.
É neste contexto que se pode compreender plenamente a importância da radicalidade na ação política e no combate ideológico , bem como a necessidade de lhe garantir robustez, pela recusa quer do urgentismo quer do conservadorismo.
                                              
                                                  RUI NAMORADO
                                            [2 de julho de 2020] 

sábado, 15 de setembro de 2012

DO PESADELO À METAMORFOSE


Tornou-se evidente: o governo de direita que está no poder em Portugal é um fanático do seu próprio caminho. Talvez tenha um número excessivo de idiotas políticos, mas o que é realmente alarmante é guiar-se por um mapa errado. Um mapa errado que, todavia, para essa direita é a materialização absoluta da verdade. O perigo é por isso imenso. Os precipícios que não estão no mapa, para essa gente, não existem. Mas esse é precisamente o erro do mapa: mostra abismos que não existem e esquece outros, bem reais

Não foi um infeliz acaso que produziu esse insólito roteiro desfasado da realidade. Foi a pulsão de sobrevivência do capitalismo que naturalmente segregou a ilusão da impossibilidade de não ser eterno. Pulsão traduzida em ideias falsas, em dados distorcidos, em preconceitos estéreis, em omissões calculadas, em exacerbamentos dirigidos e inócuos. Tudo isso, muitas vezes, embrulhado em equações fatais, numa feitiçaria numerológica que se mascara de verdade suprema, e em face da qual aos mortais nada mais parece restar do que ajoelhar perante ela e seguir como rebanho triste os seus ditames.

Criou-se assim uma enorme máquina de exploração e de opressão da grande maioria dos seres humanos, uma fábrica de produzir mais e mais desigualdade. Fechou-se nela o mundo e teceu-se a ilusão de que essa máquina artificial era, em primeiro lugar, eterna e, em segundo lugar, a expressão acabada da própria realidade social. Fora dela, só existiriam a ilusão e o caos. Ironia suprema, já que é essa ficção de realidade que representa o que há de mais próximo de uma ilusão e do caos, embora isso se traduza em rios de leite e de mel para um punhado de exploradores e em exclusão social, pobreza, perda de futuro, medo e angústia, para uma larga maioria da humanidade.

Portugal é hoje uma ilustração particularmente nítida desta realidade universal. Não é simples sair deste colete-de-forças. A máquina de exploração que nos oprime conseguiu uma simbiose demasiado complexa com as nossas vidas, para que seja possível destruir a máquina de um dia para o outro num brusco gesto de desespero colectivo, sem pormos também em risco a nossa própria sobrevivência enquanto seres humanos.

Mas se deixarmos que a máquina do capitalismo continue a apertar o garrote que nos impede de respirar, a prazo, correremos o risco de perecer numa aflição colectiva, ainda mais funda do que aquela que hoje nos atrofia. Toda a navegação que leve a bandeira da esperança tem que aprender a passar permanentemente entre estes dois escolhos. Não podemos destruir o capitalismo num golpe súbito, porque se o conseguíssemos, o que não é certo, destruíamos também a sociedade humana, ou regrediríamos séculos na história. Mas também não podemos limitarmo-nos a inventar pequenos remédios e pequenos percursos, subordinados à lógica de eternização do capitalismo. Não podemos procurar apenas serrar os dentes do capitalismo, na esperança de que ele nos morda mais suavemente. Se assim for,  acabaremos por ser ciclicamente arrastados para novos pesadelos colectivos, cada vez menos suportáveis.

Se quisermos usar uma metáfora, para nos ajudar a compreender o que está em causa nas sociedades capitalistas de hoje, podemos recorrer a uma analogia com a metamorfose por que passam certas espécies animais. A lagarta tem como seu horizonte a borboleta. Para lá chegar tem que ser antes uma crisálida. Se a lagarta teimar em continuar lagarta, acabará por apodrecer e morrer. Se na constância da lagarta, se pretender saltar bruscamente para a borboleta, sem a complexa fase de ser crisálida, a lagarta acabará por morrer também.

Por isso, o reformismo concebido como processo de transformação efectiva das sociedades actuais é uma via possível e fecunda, se nele tiver inscrita a mutação qualitativa implícita na metamorfose. Isto é, se for um reformismo substancialmente revolucionário, na medida em que seja  um reformismo realmente transformador, globalmente transformador. O que, é bom que se diga, nada tem a ver com os embustes intelectuais que se traduzem na aposição da palavra reformismo a medidas avulsas e anódinas; e muito menos com a contra-reforma neoliberal que , mistificatoriamente chama reformas estruturais a regressões sociais  e políticas que materializam o retrocesso civilizacional protagonizado pelo neoliberalismo, cujos frutos se tornam agora dramaticamente ostensivos.

Olharmos o caminho da esquerda como a materialização de uma metamorfose necessária pode ajudar-nos muito a caminhar com segurança e acerto, bem como a distinguir as medidas por que temos que nos bater e aquelas que é imprescindível que evitemos. Esse caminho de saída do capitalismo, necessariamente prolongado, não poderá , como é óbvio, estagnar ou arrastar-se excessivamente no tempo, sob pena de implodir. Terá que ser pilotado institucionalmente, mas decidir-se-á na transformação por que há-de passar o tecido social. A simbiose destes dois planos será uma das condições do seu êxito. Mas o seu inêxito, que não é impossível, tornará improvável a sobrevivência da humanidade num registo que não seja de pesadelo.

Os ribeiros correm já, com a ambição de serem rios. E o mar é o seu destino, crisálida que é necessário que consigamos ser colectivamente. A orquestra de todas as lutas não precisa de um maestro, nem mesmo de uma oligarquia de maestros. Precisa sim que os seus membros aprendam a solidariedade, a complementaridade, a subtil conjugação das diferenças, a fraternidade das várias lutas, a emergência rápida de um tempo sem fome, sem guerra, sem miséria, rumo a um futuro que é necessário que  pertença a todos.

Neste contexto, todas as lutas são úteis, todas as lutas são legítimas, se apontarem para a urgência de uma metamorfoses que nos leve a superar o capitalismo que nos garroteia, rumo a um futuro humano.Do mesmo modo, é cada dia mais gravosa a actual insuficiência estratégica de todas as esquerdas organizadas, porque ela impede que encontremos o caminho que nos espera, porque reduz uma política, que devia projectar-se no futuro como esperança, numa mastigação triste de escolhas operacionais que se repetem e de manobras tácticas mais ou menos previsíveis. E assim  se deixa em paz o essencial do capitalismo, embora sob uma vozearia aparentemente contundente. De facto, se é certo que  a indignação dos explorados é estruturalmente justa, legítima e necessária, se não lhe for dada a oportunidade para ser seiva de um processo político global e transformador, pode esvair-se no desespero ou no desânimo.