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quarta-feira, 8 de junho de 2011

A LONGA VIAGEM

A Maria Fernanda enviou a alguns amigos um texto de Jorge Semprún, extraído de “A longa viagem”, num gesto de homenagem ao grande escritor espanhol, agora desaparecido. A mim, o texto chegou-me vindo de uma outra sala, aqui de casa. Vou transcrevê-lo, acrescentando-o a um outro que publiquei ontem neste mesmo blog. Jorge Semprún foi enviado como prisioneiro para o campo de concentração nazi de Buchenwald, quando tinha vinte anos. Este texto foi , por isso, escrito pela sua própria vida. Não podia esquecer. Não esqueceu. Também nós, não podemos esquecer; nem deixar que nos confisquem a memória. Eis, finalmente, o excerto referido:

“Um dia, num desses vagões em que havia sobreviventes, quando afastaram o entulho dos cadáveres gelados, muitas vezes colados uns aos outros pelas roupas enregeladas e hirtas, descobriram um grupo de crianças judias. De súbito, no cais da estação, em cima da neve, no meio das árvores cobertas de neve, viu-se um grupo de crianças judias, umas quinze, pouco mais ou menos, olhando à sua roda de olhos esgazeados, olhando para os cadáveres amontoados como troncos de árvores já descascados em pilhas na berma das estradas, aguardando serem transportados para algures, olhando as árvores e a neve em cima das árvores, olhando como as crianças costumam olhar. E os S. S., primeiro, ficaram com ar aparvalhado, como se não soubessem que fazer daquelas crianças de oito a doze anos, pouco mais ou menos, ainda que algumas, graças à sua extrema magreza, à expressão do seu olhar, tivessem aspecto de velhas. Mas os S. S., dir-se-ia, antes de mais nada, que não sabiam que fazer dessas crianças e reuniram-nas a um canto, talvez para terem tempo de pedir instruções, enquanto escoltavam pela grande avenida as poucas dezenas de adultos sobreviventes do comboio. E parte desses sobreviventes ainda tinha tempo de morrer antes de chegar à porta da entrada do campo. Lembro-me que se viam certos desses sobreviventes cair no caminho, como se as suas vidas em vigia no amontoado dos cadáveres gelados dos vagões bruscamente se extinguissem, alguns caíam direitos como árvores fulminadas, a todo o comprimento, sobre a neve suja da avenida e aqui e ali lamacenta, no meio da neve imaculada, sob as grandes faias palpitantes, outros caíam primeiro de joelhos, tentando levantar-se, para se arrastarem ainda alguns metros, ficando por fim estendidos, braços abertos, mãos descarnadas enterradas na neve, numa derradeira tentativa, dir-se-ia, para se arrastarem ainda alguns centímetros para essa porta, lá diante, como se essa porta fosse o final da neve e do Inverno e da morte. Mas, finalmente, no cais, da estação já não havia senão aquelas quinze crianças judias. Os S. S. voltaram então à carga, deviam ter recebido instruções precisas, ou então tinham-lhes dado carta branca, talvez lhes tivessem dado autorização para improvisarem a maneira de chacinar aquelas crianças. Seja como for, voltaram prontos para tudo, com cães, e riam muito, soltavam graçolas que os faziam torcer-se de riso. Formaram arco de círculo e empurraram diante de si, ao longo da grande avenida, as quinze crianças judias. Lembro-me, os garotos olhavam à sua roda, olhavam para os S. S., devem ter pensado, ao princípio, que os escoltavam simplesmente até ao campo, como tinham visto fazer aos adultos, havia pouco. Mas os S. S. soltaram os cães e puseram-se a zurzir as crianças a golpes de matraca, para obrigá-las a correr, para darem início àquela caçada às lebres na grande avenida, aquela caçada por eles inventada ou que lhes tinham ordenado que organizassem, e as crianças judias, zurzidas pelas matracas, atormentadas pelos cães aos pulos em volta delas, mordendo-as nas pernas, sem ladrar nem rosnar, eram cães amestrados, as crianças judias puseram-se a correr pela grande avenida fora, direitas à porta do campo. Talvez nesse momento ainda não tivessem compreendido o que as aguardava, talvez tivessem pensado que se tratava de uma derradeira partida, antes de as deixarem entrar no campo. E as crianças corriam, com os seus barretinhos de grandes palas, enterrados até às orelhas, e as suas perninhas moviam-se atabalhoadamente, ao mesmo tempo lentas e aos sacões, como no cinema quando se projectam velhos filmes mudos, como nos pesadelos em que corremos o mais que é possível sem avançarmos um passo que seja, prestes a ser apanhados pela coisa que nos persegue, acordando cobertos de suores frios; e aquela coisa, aquela matilha de cães e de S. S., a correr atrás das crianças judias, dentro de pouco devoravam as mais débeis, as que ainda não tinham oito anos, talvez, as que não tardaram a não ter sequer força para se mexerem, derrubadas, espezinhadas, zurzidas, caídas no chão, estendidas ao longo da avenida, demarcando com os seus corpitos magros, desmembrados, o rasto daquela caçada às lebres, daquela matilha que lhes ia no encalço. E não tardou que restassem apenas duas, uma grande e uma pequena, perdidos os barretes na fuga desvairada, os olhos a brilharem como centelhas de neve no rosto pardacento. A mais pequena começava a perder terreno, os S. S. gritavam atrás delas, e os cães puseram-se a uivar, o cheiro a sangue transtornava-os. E então a maior retardou o passo para dar a mão à mais pequena, que já principiava a tropeçar, e ainda correram alguns metros, juntas, a mão direita da mais velha na mão esquerda da mais nova, sempre a direito, até ao momento em que os golpes de matraca as abateram, juntas, de cara no chão, as mãos apertadas para sempre. Os S. S. reuniram os cães, que ladravam, e tornaram a subir a grande avenida, disparando à queima-roupa, na cabeça de cada uma das crianças caídas na grande avenida, sob o olhar vazio das águias hitlerianas, uma bala derradeira.”

[A Longa Viagem (ed. Arcádia Lda., s. d.) ]

MORREU JORGE SEMPRÚN

Um grande escritor espanhol, Jorge Semprún, acaba de morrer em Paris. Um escritor, um militante político determinado, um intelectual brilhante que escreveu alguns livros indispensáveis para se comprenderem alguns dos dramas que afligiram o século XX. Prisioneiro num campo de concentração nazi, alto dirigente do Partido Comunista Espanhol de onde seria expulso nos anos 60, Ministro da Cultura de um governo espanhol liderado por Filipe González, merece bem ser lembrado. Lembrado e homenageado pelas palavras de um outro grande escritor espanhol da actualidade, Juan Goytisolo. Escritor que lhe dedica um pequeno texto evocativo, publicado no "El País" de hoje. O título da evocação é aliás sugestivo: "Un gran intelectual europeo". Sigamos pois o referido texto, transcrito aqui com a devida vénia do conceituado jornal madrileno.


"En mayo de 1962, a mi paso por Madrid, enviado por el semanario France Observateur, para cubrir de forma anónima la oleada de huelgas que sacudía España, a partir del movimiento de protestas de los mineros de Asturias, uno de mis contactos con los organizadores de aquellos, el novelista Armando López Salinas, me llevó a una terraza de la Castellana en la que, como evoqué más tarde, nos esperaba Federico Sánchez, perfectamente adaptado a su papel de burgués desenfadado y ocioso: su increíble aplomo, en unos momentos en que era el hombre más buscado por todas las policías de España, me impresionó en la medida en que se ajustaba cabalmente a su leyenda de invisible y burlón pimpinela escarlata.
Había conocido a Jorge Semprún meses atrás, en las reuniones de Orientación Cultural Marxista, celebradas en el domicilio parisiense del escultor Baltasar Lobo, a las que asistí más de una vez en calidad de "compañero de viaje" del PCE clandestino. Aunque por aquellas fechas nadie me había informado de la verdadera identidad del misterioso Federico Sánchez, no tardé en atar cabos y adivinarla. A diferencia de sus camaradas de militancia, cuya estricta formación política e ideológica les convertía en meros portavoces de la anquilosada doctrina oficial, Semprún, como su colega en la dirección del partido Fernando Claudín, mostraban un gran interés por los temas literarios y artísticos y, cuando a instancias suya pasé a formar parte del comité de redacción de Realidad, la revista cultural del PCE, integrada por ellos, Francesc Vicens, Juan Gómez, Jesús Izcaray, el pintor Pepe Ortega y otros cuyo nombre no recuerdo, nuestras afinidades personales y políticas se afianzaron y convirtieron en una verdadera y durable amistad.
En 1963 Jorge y su esposa Colette, junto al matrimonio Claudín, devinieron comensales asiduos de las cenas organizadas por Monique Lange, Enric Poissoniere. Fue así, como bajo la traza del militante y del Robin Hood urbano, descubrimos que se ocultaba un gran escritor. Monique le convenció para que le pasara el manuscrito de El largo viaje, y su lectura nos impresionó. La experiencia condensada en el libro de su incorporación juvenil a la Resistencia Antinazi, y su detención y siguiente deportación a Buchenwad, es el mejor testimonio de un autor español -aunque escrito en francés- de la barbarie hitleriana, y fue recompensado meses después con el premio Formentor, por su denuncia de aquella y su excepcional calidad literaria.
No voy a referir aún las vicisitudes de su oposición y la de Fernando Claudín a la línea oficial del partido, descritas ya en Autobiografía de Federico Sánchez, (1977). Evocaré tan solo una anécdota reveladora del sectarismo y arbitrariedad de la difunta Unión Soviética, en cuanto que le concierne. Según me contó en 1965, uno de los niños de la guerra, durante mi viaje a la URSS, invitado por la Unión de Escritores, tenía a cargo la preparación de una antología de literatura española, para una editorial soviética, y un cuadro del partido le ordenó que incluyeran en ellas unas páginas del recién editado libro de Jorge. Meses después, el mismo cuadro se presentó en la redacción de la editorial para exigir que la suprimieran, sin dar explicación alguna de tan sorprendente cambio. Aquello me demostró que el mecanismo de demonización del disidente, funcionaba en la URSS de idéntica forma a la de la España de Franco.
La creación literaria de Jorge Semprún, elaborada a partir de su cuádruple experiencia de exiliado republicano español, resistente francés, deportado a los campos nazis y conocedor de los entresijos de un PCE no espurgado todavía de las escorias del estalinismo, se enriqueció posteriormente con novelas de la envergadura de El desvanecimiento y La sengunda muerte de Ramón Mercader, hasta alcanzar con Aquel domingo, esa dimensión histórica, ética y cultural, que la convierte en una obra de referencia en el ámbito de la mejor novela europea. Frente al provincianismo imperante no solo en España sino en otros países del viejo continente -este petit contest del que habla Milan Kundera-, Semprún encarna como pocos una mezcla fecunda de experiencias ajenas a todo credo nacional o ideológico, y que funda en ella su propia ejemplaridad. La reflexión política recogida en la pasada década en El hombre europeo y Pensar Europa, corona su labor de persona y escritor a todas, como pedía Manuel Azaña, testigo sereno de los horrores y grandezas de la época convulsa en la que vivió. ´
Mi estima y amistad por él abarcan un lapso de casi medio siglo. Ninguna fundación estatal, provincial ni autonómica podrá adueñarse del legado de Jorge: lo que pervive en el ánimo del lector, ligero e inasible como el aire o la nube, no se deja atrapar."