Caso Freeport ou um jornalista disfarçado de “assistente”
[30 de Agosto de 2010]
Ao constituir-se assistente no processo Freeport torna-se parte no processo e contamina o próprio jornal nessa posição.
Não foi sem escândalo da sua consciência cívica que muitos cidadãos, leitores do jornal PÚBLICO, tomaram conhecimento da constituição do jornalista José António Cerejo (ora em diante só JAC) como “assistente” no inquérito judicial ao caso Freeport e, na sua sequência, têm assistido a um intenso e sistemático tratamento, descontextualizado e segmentado dos documentos e informações nele produzidas, em peças publicadas em várias edições do jornal.
A iniciativa de constituição de assistente, em si e por si, e ainda pelas consequências que desencadeia, merece solícita atenção de denúncia e os artigos publicados um exame crítico urgente e inadiável, pelo seu significado de um jornalismo impróprio de um jornal de referência que é (foi?) o PÚBLICO.
A peça do jornalista, publicada na edição do PÚBLICO do dia 10 de Agosto, sob manchete de primeira página, “Investigação ao Freeport não ouviu autor de DVD que fala de corrupção”, foi a insuportável gota de água que fez transbordar a minha vigilância cívica contra atentados a elementares princípios de legalidade democrática e infracção a regras deontológicas irrecusáveis.
Permita-se uma abordagem dos dois planos destacados como objecto da nossa preocupação: o caso da constituição de assistente e as infracções assinaladas.
Em jeito de proclamação ou manifesto, o senhor jornalista, após ter sido denunciado num canal de televisão, veio informar que se constituiu “assistente” por “razões de interesse público,” mas que verdadeiramente o estatuto de assistente nada lhe interessa, antes e só viu naquele meio legal uma forma de, assim, instrumentalizar a lei e ter acesso privilegiado – fácil e integral – aos documentos do processo.
Faz ainda a menção importante de que solicitou prévia autorização à Direcção do PÚBLICO e que tem, assim, a sua aquiescência. No mais, são visíveis as dificuldades explicativas em explicar o que não tem explicação possível, a não ser a de assumir o protagonismo de escrever uma página negra na história do jornalismo português, como já de seguida veremos.
A primeira consideração a fazer é a de que JAC, ao constituir-se assistente no processo Freeport, sob prévia autorização da Direcção do PÚBLICO, torna-se parte no processo e contamina o próprio jornal nessa posição, transformando-o – ele próprio jornal – em agente processual interessado no jus puniendi dos inquiridos e em posição parcial e irreversivelmente desfavorável para de futuro comentar e informar sobre o caso, como se constata veio a acontecer.
A constituição de assistente em processo penal torna o assistente em auxiliar do Ministério Público na prossecução do jus puniendi em relação ao delito cometido. O assistente não pode estar no processo disfarçado de outra qualidade sobreponível ou não, no caso não pode estar no processo na qualidade de jornalista disfarçado e para aí vir a ter acesso privilegiado a documentos nele produzidos, com a exclusiva intenção de os vir a tratar num processo paralelo de comunicação social e sem as regras inerentes à sua produção e contexto processual, em manifesta posição de fraude à lei e a valores como o princípio da legalidade, com ancoragem no ordenamento jurídico-penal e constitucional.
O acesso aos documentos de um processo pela comunicação social é legalmente transparente e de acesso igual e não preferencial a qualquer jornalista. JAC, ao constituir-se assistente no processo para nele assumir o papel de intruso e espião da documentação produzida, instrumentaliza a lei e coloca em sério risco a credibilidade da legeartis do exercício da profissão e em situação de prejuízo e alerta judicial restritivo futuro os direitos dos jornalistas ao seu acesso, nomeadamente com a adopção de medidas legislativas que evitem os abusos de direito configurados por actuações tão anómalas como a descrita.
Como se isto não bastasse, o jornalista em causa tem vindo a escrever no PÚBLICO, com base nessa intervenção e nesses documentos, um conjunto de artigos tendenciosos e de manifesta ausência de formação de respeito pela legalidade democrática, pretendendo, com eles e à viva força, tornar arguido quem no âmbito do processo nem sequer foi constituído arguido e, por isso, está completamente inocente.
Vêm as considerações precedentes, a propósito de um dos últimos artigos publicados e acima identificado, onde estão grosseiramente em causa dois comportamentos indesculpáveis. O primeiro, refere-se, num desesperado desejo de incriminação de José Sócrates, à questão da nulidade absoluta do DVD gravado clandestinamente e onde, segundo um depoimento anónimo de “um juiz que acompanhou de perto algumas fases da investigação e um procurador-geral adjunto, que pediram para não ser identificados, manifestaram a opinião de que essa questão [a da não audição do seu autor] podia ter sido ultrapassada a bem da investigação”. Afigura-se inacreditável que um jurista possa, perante um documento de prova absolutamente nulo e, por isso inexistente no processo, defender e sugerir a maneira enviesada e de grave fraude à lei da sua indirecta relevância e que um jornalista de formação democrática possa ser o lugar e meio da passagem de uma mensagem tão lesiva da vida privada, promovendo-a numa peça jornalística de ampla divulgação.
A segunda infracção a reter é o facto de em matéria de tanto melindre o jornalista ousar atribuir uma opinião juridicamente tão grave e desvaliosa a uma fonte anónima de juristas tão qualificados, com isso infringindo normas essenciais da deontologia profissional de jornalista, sabendo os efeitos devastadores que a mensagem produzida pode ter, junto do público, nos direitos de personalidade do cidadão que se pretende atingir.
Existe em José António Cerejo uma atitude que subliminarmente se comove com as representações de legalidade do passado e as estridentes proclamações do interesse público, que invoca, confundem-se com as ressonâncias da arcana fórmula do interesse público totalitário do antigamente, omnipresente e de triste memória no “A Bem da Nação”. Cultiva-se, assim, aquilo a que se pode chamar uma envergonhada sobrevivência da “polícia”, que no caso sobrevive não obstante todo o descrédito.
JAC procura, no caso Freeport, um processo de uma selecção de informação e documentos e no ambiente próprio e privilegiado de comunicação, de que dispõe, a sua transformação em opiniões e mensagens políticas em relação a ele, num quadro em que os leitores não têm uma informação contextual e um envolvimento cognitivo suficiente e necessário de resistência a mensagens unilateralmente persuasivas, mesmo em relação a argumentos inconsistentes, com as suas predisposições culturais e políticas.
A emergência de uma opinião pública do público, pelo público e para o público só se alcança a partir do reconhecimento da necessidade de apoiar a diversidade de opiniões, de forma a proteger o dissenso e a assegurar de forma permanente a riqueza do debate público. Subjacente a este entendimento está uma valoração positiva do pluralismo e da dialéctica da diversidade, porque só assim a esfera do discurso público pode ser desinibida, robusta e amplamente aberta.
Ao intervir neste debate, faço-o com a exclusiva preocupação de diurnamente actuar a promessa encerrada na letra e espírito do ordenamento jurídico-constitucional e ser o eco do grito de alarme contra as perversões da legalidade democrática e dos direitos de cidadania, sob qualquer forma de violação que assumam. É uma actividade cívica de tensão e intenção, um trabalho simultâneo de Prometeu e Sísifo. Sim, porque são comportamentos como os descritos que não raro conduzem às “aberturas de horror” e a processos sociais de clivagem onde contra o desespero não há medicina que impeça o recurso aos feiticeiros.
[José Augusto Rocha, Advogado – “Público” 29 Ago 2010]