domingo, 31 de março de 2024

Oração


E ao terceiro dia Tu ressuscitaste
E eu perdida no mundo, até de mim
Solitária
Dentro deste templo, que é a Tua casa
Peço-Te encarecidamente
Com a fé que me assiste momentaneamente
Amansa os líderes do rebanho cada vez mais tresmalhado
Ensina o caminho para a luminosidade
A quem pensa que é o dono da verdade
Ajuda-nos a merecer uma imensidão de Paz
Para que a harmonia reine entre todos nós

Autor BeatriceM 2024-03-31

sexta-feira, 29 de março de 2024

Quando imaginei que podias partir


Quando imaginei que podias partir
senti no corpo o gosto de uma voz distante.
Era voz de pinheiro negra como as estrelas
desprendia do acaso de um frio rarefeito
e já perdida na sua inexistência
como a pedra mais côncava
do mais profundo silêncio da terra.

Era uma voz de hora profunda e rouca
vinda dos ventres espumosos do tempo
ressoando como o rumo incerto de aves negras
crepusculares vértices tristes
sobre campos ausentes.

Vivi um pranto de fadiga indecisa
em lenta pausa de violências ocultas
e a tempestade apagou-se em círculos de brandura
nos rios de ondas pálidas do olhar de inverno
como uma velha nostalgia perdida
adormecida em sabor de ameixa triste.

Era uma fadiga de deuses errantes
vinda da hora perdida da canção de um naufrágio
espalhando-se na alma das árvores doridas
solta na vastidão de planícies de vidro
em entardecer áspero de sal.

Num abraço delgado e transparente
encostei a cabeça ao ombro da parede
marquei o limite da minha boca vacilante.
Era boca sem raiz ou fim de tarde
murmúrio arrastado ou sonolento
orvalho perseguido no país dos naufrágios
lucidez de riso afogado num cais.

Um riso a completar na tua inexistência
na ausência de quem não pode partir.
Um riso a completar na transgressão da incerteza
na despedida inventada por inventar
amanhã
ou hoje
devagar
em silêncio.

Autor : Ana Margarida Falcão

quinta-feira, 28 de março de 2024

Cada Poema


Cada poema um pássaro que foge
do local indicado pela praga.

Cada poema um traje da morte
pelas ruas e praças inundadas
na cera mortal dos vencidos.

Cada poema é um passo até a morte,
uma moeda falsa de resgate,
um tiroteio no meio da noite
perfurando as pontes sobre o rio,
cujas águas adormecidas viajam
da cidade velha para os campos
onde o dia prepara suas fogueiras.

Cada poema um toque rígido
daquele que jaz na lousa das clínicas,
um ávido gancho que percorre
o lodo macio dos túmulos.

Cada poema um lento naufrágio do desejo,
um rangido dos mastros e cordames
que sustentam o peso da vida.

Cada poema um estrondo de telas que desabam
sobre o rugido congelado das águas
o cordame branco da vela.

Cada poema invadindo e rasgando
a amarga teia do tédio.

Todo poema nasce de uma sentinela cega
que grita nas profundezas da noite
o lema de seu infortúnio.

Água do sonho, fonte de cinza,
pedra porosa dos matadouros,
madeira à sombra das sempre-vivas,
metal que dobra pelos condenados,
óleo funeral de dois gumes,
mortalha diária do poeta,
cada poema espalha pelo mundo
o cereal azedo da agonia.

Autor :Alvaro Mutis
Imagem : Remi Rebillard

quarta-feira, 27 de março de 2024

Um dia

Este céu nublado
de tempestade oculta
e chuva pressentida
me pesa;
este ar denso e quieto.

Que sequer move
a folha leve
do jasmim florescido,
me afoga
esta espera
de algo que não chega
me cansa.

Quisera estar longe,
onde ninguém
me conhecesse:
nova como a relva fresca,
suave,
sem o peso
dos dias mortos
e libre
ir por caminhos ignorados
até um céu aberto.

Autor :Alaíde Foppa
Imagem : Coco Liu

terça-feira, 26 de março de 2024

Insónia

Oleg Oprisco

Perguntarás aos peixes
como se dorme
de olhos abertos. Porque o sono
dos vivos é um fosso
de víboras
insones. E precisas
por isso
de estar atento. De dormir
acordado.

Autor : Albano Martins

domingo, 24 de março de 2024

Livros

Gosto de ler
E transformar-me
Na protagonista do livro

Muitas vezes empolgada
Já nem sei se sou ela
Se o livro existe ou não

Uso roupas diferentes
Pinto os lábios de vermelho
E mudo minha personalidade

Outro dia
Quando o livro acabou
Mudei meu nome para o da personagem

Só então me lembrei
Que não podia ser ela
Detesto andar de comboio

Autor : BeatriceM 2024-03-23
Imagem :Gina Vasquez

sábado, 23 de março de 2024

Primavera


 
A Primavera vem dançando
com os seus dedos de mistério e turquesa
Vem vestida de meio dia e vem valsando
entre os braços dum vento sem firmeza

Nu como a água o teu corpo quieto e ausente
Só este inquieto esvoaçar do teu sorriso
Loiro o rosto o olhar não sei se mente
se de tão negro e parado é um aviso
do destino que me fixa finalmente

Ai, a Primavera vai passando
com os seus dedos de mistério e de turquesa
Segue Primavera vai cantando
Que será do nosso amor nesta praia de incerteza

Autor : Urbano Tavares Rodrigues
Imagem: Laura Zalenga

sexta-feira, 22 de março de 2024

Cenas

 
As pessoas são exímias a transformar-se
no pior que delas se espera.
A sugestão tem o poder
de fazê-las actuar sob o seu efeito.
Nem os espelhos familiares
as reconhecem.
Persistem como amadoras na novidade,
desempenham papéis que decoraram sem ler.
Depois, ficam soterradas na vergonha
de algo que lhes parece alheio.
Tão estranho e falso
real e assustado
o modo como se livram da dor.

Autor : Marta Chaves
In Avalanche
Imagem Korinne Bisig

quinta-feira, 21 de março de 2024

O dia nasceu chuvoso

 


O dia nasceu choroso,
Pediu que não sem palavras.
Rompeu enfim.
Deixou duplicar-lhe os redemoinhos da cabeça,
Sem aspereza;
Só esse dia,
Só dessa vez.

Autor : André Rosa
Imagem : Emerico Imre Toth

quarta-feira, 20 de março de 2024

Saudade

o que me mata
é o silêncio
e o beijo
não ser na boca

o que me mata
é a falta
de seus olhos
nos meus

o que me mata
é a ausência
de mãos
e palavras

o que me mata
é esse breu.

Autor : Martha Galrão
Imagem : Amy Haslehurst

terça-feira, 19 de março de 2024

O Pai


Terra de semeadura inculta e brava,
terra que não tem estreitos nem sendas,
minha vida sob o sol treme e alarga.

Pai, os teus olhos doces nada podem,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as fontes.

O mal de amor cegou a minha vista
e nesta fonte doce do meu sonho
refletiu-se outra água estremecida.

Depois… Pergunta a Deus por que me deram
o que me deram e por que depois
soube da solidão de terra e céu.

Olha, minha juventude foi broto
puro que ficou sem abrir, perdeu
sua doçura de sangues e de sucos.

O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de beijá-la… E sendo outono,
Pai, os teus olhos na podem.

Escutarei na noite tuas palavras:
menino, meu menino…
e na noite imensa seguirei
com as minhas e as tuas chagas.

Autor : Pablo Neruda

domingo, 17 de março de 2024

Será que a Paz

Mariam Sitchinava

Será que a paz?
num futuro muito próximo,
será apenas uma utopia,
ou os caminhos estão contaminados,
por criaturas __ que sendo da raça humana,
parecem não ser.

Será que a ganância,
só vê os lucros que a guerra traz,
e que a paz não compensa,.

Será que acordei,
com pensamentos danosos.
Ou não?

Autor : BeatriceM 2024-03-16

sábado, 16 de março de 2024

...

Mikeila Borgia

O mar foi ontem 
o que o idioma pode ser hoje,
basta vencer alguns Adamastores.

Autor : Mia Couto

sexta-feira, 15 de março de 2024

O Tempo

Johan Messely

O tempo tem aspectos misteriosos:
Um ano passa a toda a velocidade,
E um minuto, se estamos ansiosos
Parece, às vezes, uma eternidade.

Um dia ou é veloz ou pachorrento
-depende do que está a contecer-
O tempo de estudar, pode ser lento.
O tempo de brincar, passa a correr.

E aquela terrível arrelia
Que até te fez chorar, por ser tão má,
deixa passar o tempo. Por magia,
Quando olhamos para trás, já lá não está.

Autor : Rosa Lobato Faria

quinta-feira, 14 de março de 2024

Noite Escura


sobre a curva do rio cuanza
o sol mergulha
vermelho
recortando no horizonte sombras de palmeiras
ai, é tão triste a noite sem estrelas!

um dia
o meu sol caiu no mar
e me anoiteceu

um dia começou uma noite sem estrelas.

mas na noite escura
os corações se erguem

ah!é tão alegre a madrugada!

Autor :Agostinho Neto
Imagem :Adrian Borda

quarta-feira, 13 de março de 2024

Menina Perdida

Menina perdida
no bosque da vida.

Os olhos desertos,
os gestos errados,
os passos incertos,
os sonhos cansados.

Menina perdida,
desaparecida
nos longos caminhos
de pedras e espinhos.

Cabelos molhados,
pés nús, alma exangue,
vestidos rasgados,
mãos frias, em sangue.

Menina encontrada
na berma da estrada.
Andava perdida
mas já foi achada,
de branco vestida,
de branco calçada.

Menina perdida
no bosque da vida.

Autor : Fernanda de Castro
imagem :Aleah Michele

terça-feira, 12 de março de 2024

Na espera


Na tua ausência
suspendo a respiração
respiro apenas saudade
pelos poros do meu corpo

ficarei desnudado
à tua espera.

Autor :Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/search?updated-max=2024-03-05T00:01:00Z&max-results=100
Imagem : Martin Stranka

domingo, 10 de março de 2024

regresso


regresso ao início do caminho da minha infância
olho e tudo está diferente do que era
entro e ando ao sabor do vento que me impele
vou sem determinação
sinto que já não sou daqui
já faz muito tempo que fui para a cidade grande.

hoje regressei
para ver se ainda havia algum resquício na minha memória
mas já tudo se perdeu no tempo
só o nome do caminho ainda é o mesmo
e o nome dos velhos também
mas eles já não sabem quem eu sou
e eu também não.

Autor : BeatriceM 2024-03-09
Imagem : Sarah Ann Loreth

sábado, 9 de março de 2024

Poema do Engate

Atinge as palavras com fúria.
Avança na direcção
da rouquidão da noite.
Sabes que é assim
que se colhem paixões;
Com o cutelo do sonho empunhado,
os olhos esganados de desejo
e o corpo a tremer,
numa ressaca de ternura.

Autor :Fernando Dinis
In Dá-me-te Pág. 13
Imagem : Martin Stranka

sexta-feira, 8 de março de 2024

Deixa que o deserto

 

Deixa que o deserto seja o oásis e a areia seja o mar desta quietude branca
que corre e avança
no seu jeito de abraçar.

E que cada flor de areia
seja olhos do deserto
tão distante mas tão perto
tão árido mas tão liberto
onde correm
as palavras nas pegadas do verso.

Que subam, que desçam nas dunas
em grãos de palavras ao vento
que não penso,
nem quero,
nem digo
acorrentadas às algemas
dos meus pés nus de mendigo.

Que se enterrem na areia das minhas mãos, os seus dedos,
que sequem ao sol
na sombra vagabunda do medo.

Hoje sou a liberdade no esqueleto mudo do segredo.

Autor : Manuela Barroso
In Luminescências
Imagem :Pinterest

quinta-feira, 7 de março de 2024

Sentar-me

Sentar-me e
ver os outros passar é o
meu exercício favorito. Entretém.
Não esgota.
É gratuito. Neste meu jogo-do-não
são os outros que passam
(é aos outros que reservo a tarefa
de passar). Lavo daí os pés.
Escrevo de dentro da vida.
Pode até parecer que assim não
chego a lugar algum mas também quem
é que quer ir
ao sítio dos outros?

Autor :João Luís Barreto Guimarães
in Luz Última
Imagem : Martin Stranka

quarta-feira, 6 de março de 2024

Culpa tua (ou minha)


Culpa tua (ou minha)
Hoje sonhei contigo
e tive um pesadelo.
E quando acordei senti-me mal
com aquela reacção quase animal
de quem está no meio da teia
ou dentro de um novelo.
E o dia foi passando
tristemente morno,
castamente frio
num arrepio de sombras
de fantasmas mortos.
E só ao anoitecer
quando o escuro me estendeu os braços
na protecção do medo
é que eu me despertei
e percebi
que era superior
a este amor
que um dia recusaste
E vou esquecer.

Autor:Manuela Amaral
in "En Nome de Nada",
Imagem :TJ Drysdale

terça-feira, 5 de março de 2024

mais leve do que o ar

quando caímos um pelo outro,
não ardemos, nem nos quebrámos:
fomos mais leves do que o ar.

Autor : João de Mancelos
 Coração de aluguer. Lisboa: Colibri, 2023. 94 pp. ISBN: 978-989-566-285-2.
Imagem Oleg Oprisco

domingo, 3 de março de 2024

Apenas Memória

Renasço e volto à curva da estrada
Como os bichos que regressam ao local onde o dono se perdeu
Julgam eles, pobres inocentes
E voltam uma vez, duas vezes e outras tantas

Depois, tudo se transforma em rotina
A curva ainda fica mais destacada
No meu olhar esgotado
Onde o passado ficou soterrado

Volto e sei que a curva ainda existe
Mas o futuro já não faz parte de nós
Apenas e só, será meramente uma memória inserida
E que ainda não se desmanchou integralmente

Autor : BeatriceM 2024-03-02
Imagem : Janek Sediar

sábado, 2 de março de 2024

Para Escrever o Poema

laura makabresku

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

Autor : © Nuno Júdice

sexta-feira, 1 de março de 2024

Prece


Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás — (o teu templo) — eis o teu corpo.


Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

[…)

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

Autor:Fernando Pessoa.Prosa Íntima e de Autoconhecimento.