domingo, 28 de fevereiro de 2021

Eclipso

 


Às vezes questiono-me quem sou e de onde sou.
Nasci num País de uma cidade que mudou o nome. Isso também não é relevante pelo menos, para mim.
Registaram-me no consulado numa data que talvez nem seja a verdadeiramente correcta.
Cresci aos trambolhões por locais e cidades que não me lembro os nomes.
Íamos com o pai que tinha uma profissão que o fazia andar de cais em cais de País em País.
As minhas raízes estão obscuras, porque assim alguém quis. E se escrevo é para não relembrar nem falar em passado, que acho não tive.
Todos tem passado eu só tenho presente e assim de vez em quando parto em busca de mim, mas sem sucesso e nem me importo muito, pois, acho que nunca tive nada.
Ou se calhar o que tive ou julguei ter, nunca foi totalmente meu. Foi tudo um empréstimo que paguei com juros.
Não sei se magoei alguém, pelo menos intencionalmente não creio que o tenha feito, mas houve pessoas e coisas que me magoaram, e muito.
Amei muito, e fui amada. Sei que em algum lugar do mundo ainda devo ter quem me queira bem, e se lembre de mim.
Agora quem me desprezou, não odeio nem renego, pois terão sempre a recompensa que será o arrependimento para toda a vida, cujo prémio será o remorso que lhes corrói a memória.
Ainda fujo do passado.
Mas vivo feliz com a felicidade possível que construí, sem névoas a destruir a minha crença, nem o meu carácter.

Autor : BeatriceM 2021-02.27
Imagem Magdalena Russocka


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Poema

 

                    

Esta a cabeça em fúria do poeta
como está nas fotografias tiradas de avião
depois de cair em chamas no mar de ninguém

estes dentes
o alfabeto doido com que vai escrever

e aqui está a sua mão direita
estátua de manhã e automóvel à noite
salvo acidente mortal

e eis os seus olhos
peixes verdes sem mar
a sua boca aquela voz horrível no deserto

os seus pés
dois príncipes encantados no palácio dos passos perdidos
antes de encontrar-te meu amor

Autor:  António José Forte
 In Uma faca nos dentes
Imagem :desconheço o autor

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Domingo

Hoje é o dia dos senhores
e dos sóis em algumas línguas. Noutras
já foi ontem ou será depois, conforme
o cansaço divino sucedeu ou
não ao sétimo dia. Vária
gente irá aos templos ou ao parque
passear o cão. É dia de
visitar o lar de idosos ou de
abastecer a nossa arca
congeladora. Os pais solteiros levam
os filhos a comer pizza e outros
putativos progenitores recuperam
as horas de sono convivialmente
líquidas. O ar das ruas
é mais leve devido à pausa de
domingo. Ao menos hoje acontece
algo de bom em nome de Deus.

Autor : Inês Lourenço
In " Logros Consentidos"

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Há um homem calado



Há um homem calado
que tem a noite no seu quarto
sendo de dia lá fora.
Não fala e tem um olhar distante
fixo num silêncio que persiste
palavra a palavra.
Essas palavras assustam na sua combinação
e não calam o silêncio.
O homem calado
que tem a noite no seu quarto
sendo de dia lá fora,
pega nelas e domina-as na sua imaginação.
Sem qualquer explicação
inscreve na primeira página da última noite sem dia
uma frase que lhe adormeceu na memória
“Temo que sejas toda a minha vida”.

Autor :-Luis Rodrigues-https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/2020/03/
Imagem : Mark Rothko

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Sem resposta

Como se vive depois de uma partida não anunciada?
Como se olha para um espaço que era nosso
E agora é apenas um espaço com memórias
Nas paredes e no chão de madeira
As ruas continuam com os mesmos nomes
Tudo continua igual
Menos esta dor gigante que se acumula cá dentro
Em estilhaços, que chocalham dentro de mim como
Facas afiadas que se desfizeram em cacos.

BeatriceM 2021-02-18
Imagem:Natália Drepina

sábado, 20 de fevereiro de 2021

não te pergunto de onde chegas

 


não te pergunto de onde chegas?,
porque sei para onde vais.
hoje é a hora exacta em que até o vento
até os pássaros desistem.
e a noite a teus pés é um instante
e um destino.

não te pergunto onde está o teu rosto,
tantas vezes ocluso e pisado sob os ramos,
onde está o teu rosto?
nem te peço que incendeies o teu nome
numa nuvem nocturna,
nem te procuro.

és tu que me encontras.
ficas no rio que passa,
nada de um tempo que não existe,
nem correntes, nem pedra, nem musgo.
nem silêncio.

Autor : José Luís Peixoto
Imagem : Viktoria Haack

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Cântico das Nervuras

São tão largas as noites
para a concisão de um corpo.
Tão escuro o sorriso que as pernas abrem
ao mundo.
E no entanto animal que passe
aloira-se nas águas e geme
de uma alegria que tem flores e frutos.

Autor : Catarina Nunes de Almeida
Imagem: Eric Zener

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A chave inglesa

 


Era um corpo inteiramente
português.

Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.

Autor : Armando Silva Carvalho

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Ode da Liberdade II


devíamos criar uma cidade nova
livre
desde as pontas dos dedos
as estradas
à polpa das palmas das mãos
as muralhas
até ao centro histórico
para nela vivermos séculos sem fim
e mergulharmos nos rios as linhas do destino.
.
devíamos criar uma cidade livre
nova
desde o vulcão
o nosso repouso em labaredas
para um primeiro beijo
fora do território nacional
até à lonjura da maior viagem
dormirmos na pousada
que abriga tectos em estrelas
com os olhos fechados
trocados
numa nova cidade
até sermos ilha.
.
quando regressássemos
morávamos
na nossa grande casa da árvore
cravejados de folhas
pássaros e beijos
as mãos um do outro
polpa de maçã
só à espera de ver nascer
a madrugada debaixo dos braços
para o último arrepio
de todos os tempos
.
amarmo-nos.
.
Autor : Ana Salomé In "odes"
Imagem : Carla Coulson

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Desespero

 

É sempre inverno aqui,
nas páginas deste caderno com três folhas de
trevo.

O galo canta, nos meus baldios.
Despertam os sonhadores e os cães.

Um homem caminha,
com um fardo de erva e canas, na direcção das
montanhas.
Uma densa nuvem cresce,
pouco a pouco,
sobre as campas lavadas pela chuva, onde ele
se deita,
voltado para baixo.

E eu, que vejo tudo isto,
não encontro as palavras certas para o desespero.

Autor : José Agostinho Baptista
 in " Filho Pródigo "

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Tira as tuas palavras pesadas de cima do meu pescoço


Tira as tuas palavras pesadas de cima do meu pescoço
percorre as tuas maõs apenas pelo meu corpo faminto
beija-me por cada palavra que não digas
e fica docemente
a lembrar este momento em que somos só nós
e a ternura a espalhar pelo ar que respiramos

as palavras pesadas foram embora
não te vejo
mas sinto que estás aqui
leve e solto como eu ...

prometo que quando te encontrar levo-te a Paris!

Autor: BeatriceM 2021-02-07
Foto:Desconheço o autor
Inspirado aqui : https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/

sábado, 13 de fevereiro de 2021

As pontas dos meus dedos
percorrem a extensão
de lugares recônditos.

A peregrinação dos meus sentidos
levando-me aos confins da descoberta
perturba ainda mais este vazio.

Nas oliveiras pássaros
gritam a primavera
à espera de se unirem.

Autor : António Savado
In Mais uma vez as aves. S/c.: Folio Exemplar, 2015, p 19.
Imagem : Omar Ortiz

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

aspectos


as coisas são
como estão?

o cão vê o gato
bem diferente do rato
(questão de defesa e ataque)

aurora e crepúsculo
são noite dia ou mestiços?
(depende do ponto de vista)

o sol é para todos
e a chuva?

Autor : Líria Porto
 em "revista mallarmargens", poemas. vol. 4, nº 10, 21 de fevereiro de 2016.
Imagens : karen hollingswort


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Não sei o que fiz antes de te amar

 

Não sei o que fiz antes de te amar.
Não sei que vão comércio ou vã empresa,
Que Estrada percorri, que luz acesa
Deixei pra que voltasse pra apagar.
Foi tudo um sono, um rente entorpecer.
O que fizemos nós, tão sós no mundo?
Não sei que vão pensar meditabundo
Tornou sua razão razão de ser.
Nem lembro... somos breves, uma onda
Que quebra no olhar sua saliva
E a renda delicada rende aos seixos...
Mas hoje a minha vida quero-a viva!
Pensei que eram vigílias meus desleixos...
Agora a minha noite o dia ronda.

Autor : Daniel Jonas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Um poema quer-se segredo

 

Um poema quer-se segredo
e vida íntima, mas também se deseja
como uma construção,
talhada a fio de prumo
de versos inóspitos
como o vento
abraçando os pinheiros
junto ao mar.

Autor : Maria Joao Cantinho
Imagem : Katerina Plotnikova

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Tudo é silencioso



Tudo é silencioso
e a noite

é urgente o silêncio
é urgente ouvir os pássaros
ao longe

escutar as coisas simples
a respiração do mar
os ritmos da manhã
as pequenas rotinas
o trânsito nas cidades
o sol que sobe sobre os campos no verão

é urgente escutar estar atento olhar
assistir com serenidade
aos ciclos à espontaneidade
ordenada da vida

Autor : Rui Esteves
In Poemas. S/c.: Edição do autor, 2017, p 21.
Imagem : parvana photography

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Momento

 


Todos temos um passado,
embora ele exista e do qual temos boas e más recordações,
guardemos as boas e mandamos para o arquivo as más,
bloqueamos o que nos perturbou.

Todos temos um presente,
e é esse que nos faz acordar e reviver cada dia,
como se fosse o último da nossa existência terrena.

Também há o futuro
mas esse fica para lá das dunas, imprevisto
misterioso e inimaginável.

Hoje!
Sento-me no presente e aspiro e sinto o dia.
o resto não existe.

Autor:BeatriceM 2021-02-06
Imagem:Jonna Jinton

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Quando não houver caminho


Quando não houver caminho
Nenhum lugar pra chegar
É hora do recomeço
Recomece a caminhar.

Autor : Bráulio Bessa

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Margem Sul

Não quero libertar-me
da minha história, dos grandes navios
que ajudei a reparar, pintar, soldar,
equilibrado como um hábil trapezista
a grandes alturas. Exilado
do cais, hoje navego
na luz do fim da tarde. As minhas mãos
voam na perícia que me resta
jogando os trunfos
que verdadeiramente nunca tive.

Autor : Inês Lourenço, In "A Enganosa Respiração da Manhã",

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Medo



Furo-te os olhos com os dedos magoados
como-te
torpor de medo as luas verdes
mordem-me a boca
do teu peito sobe o halo nacarado
a essência fútil das flores mortas
e novamente o medo
de nunca mais voltar a ser perfeito

Autor: Rui Costa in "As Limitações do Amor São Infinitas",
Sombra do Amor Edições, s/c, 2009, p 44
Imagem : Anastasia Alekseeva 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O garoto corria

 

o garoto corria corria
não podia saber
da diferença entre as flores.
O garoto corria corria
não podia saber
que na sua terra há
morangos doces e perfumados,
o garoto corria corria
fugia. 

Ninguém lhe pegou ao colo
ninguém lhe parou a morte 

Autor :Maria Alexandre Dáskalos
Imagem : Victor Bauer

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

OS Anos de Ti para Mim

 

O teu cabelo volta a ondular-se quando choro. Com o azul dos
teus olhos
pões a mesa do nosso amor: uma cama entre o verão e o
outono.

Bebemos o que alguém preparou, que não era eu, nem tu, nem
um terceiro:
sorvemos um último vazio.

Miramo-nos nos espelhos do mar profundo e passamos mais
depressa um ao outro os alimentos:
a noite é a noite, começa com a manhã,
é ela que me deita a teu lado.

Autor : Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno