terça-feira, 31 de março de 2020

.


Foi
como se tivessem aberto as comportas do medo
como se tivessem retirado dos álbuns
as fotos da nossa infância,
e nos empurrassem
para aquele espaço vazio.
Foi
como se tivessem aberto as comportas do medo
como se o medo nos prendesse ao chão
no tempo dos pesadelos,
do sono da nossa infância
Mas
quando se abriam as comportas do medo
eu sabia que chegavas
pelo cheiro dos morangos
naquele cesto agora abandonado e coberto de pó
A liberdade de ser nosso aquele espaço vazio,
agora,
abre-nos as comportas do medo,
fecha-nos as mãos __ vazias
invade-nos um frio exacto.

Autor  : Luís Rodrigues  26-março-2020

https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem :Jordi Puig

domingo, 29 de março de 2020

Procuro


Procuro, entre as estrelas.
Uma extensão para mim
Escolho o ir
Em voos sem obscuridade
Em silêncios na pele
Odores de frutos vermelhos
Respiro
Ainda a fundear
Em espaços de luz
E sons de permanecer

Autor : BeatriceMar 23-03-14(reeditado)
Imagem :Elisa Lazo de Valdez

sábado, 28 de março de 2020

Eu sei que és tu que te moves no meu coração



Eu não sei se estiveste ausente.
Eu deito-me contigo e levanto-me contigo.
Nos meus sonhos tu estás junto a mim.
Se estremecem os brincos nas minhas orelhas
Eu sei que és tu que te moves no meu coração 

Autor : José Agostinho Baptista
Imagem : Bree Rivers

sexta-feira, 27 de março de 2020

Noutro lugar do vento



Até posso corar se te disser que todas as noites,
quando me afundo na cama,
abraço-me como se fosses tu a abraçar-me.
Peço-me de empréstimo.
Enquanto os teus braços estão aí,
noutro lugar do vento 

Autor : Ana Salomé
Autor : Alex Stoddard

quinta-feira, 26 de março de 2020

Aqui é Primavera


(se aí é outono, aqui é primavera) 

A mulher é terna
Como a relva
No Outono. Umas vezes

Queima, outras vezes
Afoga-me
No seu orvalho. 

Autor : Casimiro de Brito
Imagem : Mikael Aldo

quarta-feira, 25 de março de 2020

..

Do teu beijo flor 
de tanto sorver 
tua boca, 
a minha 
secou saliva 
e colou-me aos teus lábios, 
eternamente.

Autor : Ana Peluso
Imagem : Elena Vizerskaya

terça-feira, 24 de março de 2020

Também o que é Eterno



Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.

Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!

A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.

Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.

Autor : Manuel Resende
in 'O Mundo Clamoroso, Ainda'
Imagem: Kyle Thompson 

domingo, 22 de março de 2020

Prece

Procuro na oração
Uma repercussão de luz
E suplico
União e solidariedade
Entre o mundo inteiro
Unidos  venceremos o vírus

Autor : BeatriceM

sábado, 21 de março de 2020

Perguntas


Tenho sempre, na algibeira da noite,
algumas vigorosas perguntas de reserva,
prontas a disparar em legítima defesa
contra o negrume 

Algumas são pequeninas, vulgares
aspectos de pormenor.
Outras, pelo contrário, são enormes,
desabridas como a boca dum forno —
do género porque é que deste quatro,
e não seis, ou oito, pernas à rã. 

Hoje ocorre-me fazer a menor de todas:
se foste tu que fabricaste o tempo
e a ele nos acorrentaste?
e com que barro? e com que raio
de segunda intenção? 

Se é que não foi apenas descuido.
Ou até casualmente, como acontece às vezes
ao cientista que faz experiências
e acaba por descobrir seja o que for. 

Autor : A.M. Pires Cabral

sexta-feira, 20 de março de 2020

O rio é dentro de mim



Hoje estou melancólica e suspirosa, choveu muito, a água invadiu este porão de lembranças, boiam na enxurrada a caminho do rio.
Deixo que naveguem, pois não as perderei.
O rio é dentro de mim.

Autor : Adélia Prado
Imagem : Stephen Carroll

quinta-feira, 19 de março de 2020

Debaixo do colchão tenho guardado


Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente 

Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui 

Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará 

Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.

Autor : António Franco Alexandre
Imagem:Aldara Ortega

quarta-feira, 18 de março de 2020

saber esperar alguém


Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.

Autor: Maria Gabriela Llansol
in "O começo de um livro é precioso", 2003
Imagem : Istvan Sandorfi 


terça-feira, 17 de março de 2020

As vozes partiram



As vozes partiram.
Voaram para fora do terraço deixando-os sós.
Os homens têm medo de chorar sozinhos.
Por isso escutam as histórias prodigiosas uns dos outros. Assim toleram o amor falhado, o amor flectindo na face como cachos de uvas. Os homens perderam-se, ficaram desamparados e retidos com medo da noite.
Não voltarão a estender-se no cansaço branco da juventude. Apertam nas mãos rosários de oiro sob os alpendres e deixam-se fitar pelas mulheres que passam altivamente. Ao fim da noite adoecem no calor dos terraços, escutam em silêncio os poemas de Kavafis. Ao fim da noite, as mulheres apaixonam-se perdidamente por eles e dão-lhes as almas para que as protejam.

Autor : Rui Coias
Imagem : Laura Makabresk

domingo, 15 de março de 2020

coronavírus


As ruas da cidade estão caladas 
Cobertas com um silêncio
De receio e tristeza
.
Encolho o meu temor 
No mais fundo imaginável 
De mim 
Estou com medo 
.
Não quero ouvir nenhum sino
Tocar a rebate 
.
Quero ver novamente
As ruas com vida e cor
.
Autor:BeatriceM
Imagem: Ilya kisaradov

sábado, 14 de março de 2020

Residência



Guardas as estações do sol e as harpas.
Os perfumados símbolos da terra cantam
no primeiro verão do olhar.
As mãos levam-te a vasos de margaridas brancas,
sinuosos e claros oceanos.
Sentas-te à mesa da tribo e repartes o pão.
Um homem que ama nas sombras o fulgor e as essências,
nunca chega tarde aos degraus da alegria, dizes,
o cheiro do vento e do trigo entre os dedos.

Não podes morrer contra o sonho contando as lágrimas,
a face reflectida nos espelhos da alma.

Nunca partas dessa casa onde cresce agora
a voz das crianças, os templos da sua inocência,
as mais bravas e fragrantes ervas do amor.
Queres, eu sei, esse mar, a breve cama dos pombos
quando se abrigam nos rumores.

Não há maior orfandade que chegar à ternura
sem palavras.

Autor: Eduardo Bettencourt Pinto
Imagem : Viktor Dikanchev

sexta-feira, 13 de março de 2020

Realidade


Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolam-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.

Autor : Isabel de Sá
in “Erosão de Sentimentos”
Imagem : Alex Stoddard

quinta-feira, 12 de março de 2020

o breve amor do tempo


venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.

Autor : António Franco Alexandre
Imagem : Bree Lion

quarta-feira, 11 de março de 2020

Eu te amo homem




Eu te amo, homem, hoje como toda a vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor, divago, quando o que quero é só dizer te amo. 
Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito para escutar o que bate. 
Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas das tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios da tua barba. 
Esmero. 
Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto… 
Aprendo. Te aprendo, homem. 
O que a memória ama fica eterno. 
Te amo com a memória, imperecível. 
Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos. 
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. 
Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho. Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal. 
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha. 
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.

Autor :Adélia Prado

terça-feira, 10 de março de 2020

As mãos



Onde tu pousas as mãos,
naturalmente
eu vou pousar as minhas. Um silêncio
faz-se pela casa, uma luz coada vem da janela
e cobre os móveis de uma poalha
doirada. Os objectos estão quietos
como nunca.

Onde tu pousas as mãos,
onde tu pousas mesmo se brevemente as mãos,
torna-se íntima a percepção que se tem de cada hora,
de cada amanhecer,
de cada exacto momento. O entardecer
é só um vasto campo que se abre,
um rumor de folhas que restolham no jardim.

Escrever é ler,
ler é escrever - eu sei isso
porque em cada sítio onde [do meu corpo] tu pousaste as tuas mãos
ficou escrito - eu vejo-o: nítido -
sobre o mais frágil espelho dos sentidos, uma palavra que se lê
de trás para diante. Quando te deitas eu sinto-lhe o perfume,
que é o da noite que entra pela janela.

E onde tu pousas as tuas mãos faz-se um rio
de prata e de quietude mesmo nas minhas mãos
que pousam onde as tuas foram antes procurar
a quietude, procurar as tuas mãos. São exactas as tuas mãos,
são necessárias, têm dedos
que são os filamentos de gestos que descrevem na penumbra
desenhos tão perfeitos que surpreendem.

Onde tu
pousares as tuas mãos
eu quero estar.
Exactamente como a sombra
cai na sombra. A água
na água. O pão 
nas mãos.

Autor : Bernardo Pinto de Almeida
Imagem Ilya Kisaradova

domingo, 8 de março de 2020

Dias


dizem que hoje é o dia da mulher
deve ser!
mas tenho uma folha a me desafiar
e
tenho que disfarçar, porque, afinal!

hoje é dia de todas as mulheres
(de saltos altos e baixos)

BeatriceM

sábado, 7 de março de 2020

Entre as ondas e a bruma

O meu rumo é o que o mar quiser
De horizonte ausente
na penumbra silenciosa

atravesso madrugadas

sem fronteiras,
invento rumos, rotas e marés,
desfraldo as velas do sonho
e navego entre ondas de espuma

Deixo o meu mundo para trás
e dissolvo-me em místico nevoeiro,
pois sei que haverá um momento
em que me perderei na bruma,
o sol me queimará o rosto,
e alvas e alterosas ondas
serão nossos lençóis agitados
nas correntes loucas do desejo.

Nos lábios rubros da manhã,
molhados de sal e orvalho
haverá um impulso metafísico
de mergulhar neles num afago,
e neles voar como gaivota,
partindo livre e clandestino
até a um pôr-de-sol eterno…

Oiço-me então no meu silêncio!
Fecho os meus olhos de espanto.
E na avidez de tanto te amar,
descubro no imenso abismo azul
montes de páginas em branco
que haveremos de escrever
em bordados de espuma,
nos revoltos lençóis do oceano
com as cores da nossa paixão!...

Autor : Albino Santos

Imagem : Frank Melech

sexta-feira, 6 de março de 2020

Em Mim


No meu corpo vivem
Todas as formas das tuas mãos
Quando em movimentos lentos
Retomo cada gesto que me encheu
E cada lugar nunca antes habitado
Por ter sido a ti que entreguei uma pele sem véu

Autor : Madalena Palma
Imagem : Alex Stoddar

quinta-feira, 5 de março de 2020

Oração sem Imagens



Deito fora as imagens.
Sem ti, para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em qualquer parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Autor : Raúl de Carvalho
 in “Obras de Raul de Carvalho”

quarta-feira, 4 de março de 2020

Conclusão


Fui amante da morte 
e da beleza. Vi a loucura,
acreditei na vida.
Da infância falei
como lugar de abismo.
O prazer
foi também a grande fonte
de perturbação e alegria.
Lembrei as mulheres
que recusaram submeter-se,
escrevi palavras fúnebres. 

Não poupei a adolescência,
o coração magoado
e não soube que fazer
de mim fora das palavras.
Escrevi para desistir
e depender
e ter identidade.

Autor: Isabel de Sá
in 'Erosão de Sentimentos
Imagem:Ruslan Bolgov

domingo, 1 de março de 2020

o receio



o receio acorda-me o tempo
e eu
impotente, invento uma   oração
em forma de eco
para sentir que ainda
há esperança neste mundo
e para todos nós…

Autor: BeatriceM