25 de abril de 2012

10 de abril de 2012



Naufrágio

No fundo do mar,
perdidos,
estão os sonhos,
dia a dia, inutilmente, dobados.
Carne de medusa,
lacerada pelos corais,
oculta entre as algas,
quem poderá sabê-los?
ou encontrá-los?
Luísa Dacosta


8 de abril de 2012





























Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo em baixo como se viesse negro depois,
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo,
O mundo será diferente —
Haverá eu a menos —
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada.

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

7 de abril de 2012


                     De uma só vez recolhe
        Quantas flores puderes.
        Não dura mais que até à morte o dia.
        Colhe de que recordes.
        A vida é pouco e cerca-a
        A sombra e o sem remédio.
        Não temos regras que compreendamos,
        Súbditos sem governo.
        Goza este dia como
        Se a Vida fosse nele.
        Homens nem deuses fadam, nem destinam
        Senão o que ignoramos.


                                       Ricardo Reis

1 de abril de 2012





Amy Hit The Atmosphere

If I could make it rain today
And wash away this sunny day down to the gutter
I would
Just to get a change of pace
Things are getting worse but I feel a lot better
And that's all that really matters to me

Amy hit the atmosphere
Caught herself a rocket ride out of this gutter and
She's never coming back, I fear
But any time it rains,
She just feels a lot better
And that's all that really matters to me

We've waited so long for someone to take us back home
It just takes so long
And meanwhile the days go drifting away
And some of us sink like a stone
Waiting for mothers to come
 
There has to be a change, I'm sure
Today was just a day fading into another
And that can't be what a life is for
The only thing she said was she feels a lot better
And that's all that really matters to me

We've waited so long for someone to take us back home
It just takes so long
And meanwhile the days go drifting away
And some of us sink like a stone
Waiting for mothers to come

All I really know is
I want to know
And all I really know is I don't want to know
All I really know is
I want to know
And all I really know is I don't want to know.


Adam Duritz/David Bryson/ Charles Gillingham

3 de março de 2012




Negra Bílis


Há meses que vivo rodeada
por uma substância negra e pegajosa
que invadiu a minha casa. As paredes,
o chão, as janelas e os móveis,
a comida, os livros e a roupa,
o teclado do computador, as plantas,
o telefone… Está tudo impregnado
com esta pez escura, a mesma que respiro
e que me mata pouco a pouco.
Dizem que os venturosos e os néscios
chamam melancolia a esta porcaria
que apodrece o coração e asfixia a alma.


Amalia Bautista (daqui)


26 de fevereiro de 2012


Pouco sabe da tristeza quem, sem remédio para ela, diz ao triste que se alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dobram o que padece. (...)
Uma coisa sabei de mim: que queria antes o bem do mal, que o mal do bem, porque muito mais se sente o porvir, que o passado; e a morte, até matar, mata.(...)
No mundo não tem boa sorte senão quem tem por boa a que tem. E daqui me vem contentar-me de triste.

Luís de Camões, Contradança

19 de fevereiro de 2012









































Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro

5 de fevereiro de 2012




Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.


1-7-1916
Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis

http://www.youtube.com/watch?v=dAjS2mAGdps&feature=related

28 de janeiro de 2012


Sandra. Ontem à meia-noite começou a Queima das Fitas na nossa cidade do Sol. E o primeiro número da festa foi a serenata na Sé Velha. Transmitiram-na pela TV e eu ouvi-a até ao fim. Mas a certa altura e de súbito a imagem de todo o largo coalhado de gente recuou um pouco para uma outra imagem antiga se lhe sobrepor. Havias tu agora nessa imagem e eu soube porquê. Estávamos no pátio da Universidade e a agi­tação da festa chegava até lá. Irreprimivelmente então eu perguntei-te e se fôssemostambém ouvir? Ficaste em silêncio e eu pen­sei que ias ceder. Vou-te buscar à hora a casa e é só descer a rua do Norte para che­garmos ao largo. Foi quando me fitaste com o teu olhar triste e um pouco crispado — achas que isso tem algum sentido? (...) Mas ontem à meia-noite convidei-te outra vez e tu vieste. Tenho todo o teu destino na minha mão para o ter quando o não tiver. Se fôsse­mos ouvir? e tomo-te a mão e tu vens. Olho de novo aquela massa de gente e estamos lá. Nas escadas da Sé, escalonados pelo degraus, estão rapazes e raparigas de que só se vêem os rostos em destaque no traje pre­to de estudantes. E ao alto, os que irão can­tar e tocar — se nos sentássemos num degrau? mas tu preferes o largo coalhado de gente onde a música ressoa com maior amplidão. Subitamente retine a todo o espa­ço do largo um timbre de guitarra. E logo o silêncio se estendeu por toda aquela massa humana. Tomo a tua mão, os dedos entrela­çados, e escuto. Escutamos os dois, unidos como dizer-te? na transcendência de nós, na transfiguração de tudo o que pensássemos, numa legenda antiquíssima que nos levasse consigo. O céu estava limpo e viam-se as estrelas. Toda a iluminação do largo tinha sido apagada e viam-se melhor assim. E havia em nós um movimento alado para nos dissiparmos entre elas. Apertei-te a mão e tu apertaste a minha e eu tive a evidência de que nada nos podia separar. Agora um estu­dante cantava uma balada— «morrer é pas­sar um dia todo inteiro sem te ver». Como é triste pensá-lo. Sem te ver.
Vergílio Ferreira, Cartas a Sandra








25 de janeiro de 2012





Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

Ricardo Reis

21 de janeiro de 2012


O meu projecto de morrer é o meu ofício
Esperar é um modo de chegares
Um modo de te amar dentro do tempo



Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais





15 de janeiro de 2012




Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida:
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!


Florbela Espanca

29 de dezembro de 2011






Encontrei-o no bolso do primeiro
casaco deste verão. Frio. Toquei-lhe
o corpo das letras devagar como se
fosse mão que me aguardasse. Frio.

Trouxe-o aos olhos com desejos de
lembrar-me que tarde e de que verão;
li com os lábios esse nome que talvez

me livrasse da doença, tentei escutá-lo
numa voz que me estendesse os dedos.
Frio,frio.




Maria do Rosário Pedreira,Nenhum Nome Depois
.
-

24 de dezembro de 2011






















Natal, e não Dezembro


Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal

 

23 de dezembro de 2011





LA MUY HERMOSA


Sê como eles. Chegam pela manhã
gastando os poucos trocos, a vida. Sentam-se
nos sombrios recantos da taberna e entretêm-se
a jogar bilhar ou lançando cartas sebentas sobre
mesas de madeira acariciadas pelos anos.

Fingem sorrir, acendem um cigarro sem que lhes
importe a beleza ou demais feridas. Mais relevantes
são os pequenos dramas de rua, intrigas, mortes e
desavenças - ou a ébria bondade dos amigos. Aprende
a humildade desses velhos de boné ensombrando
as súbitas rugas da face. Para tanto abandono
não são precisas palavras. Os mendigos e a grande confraria
do álcool te dirão o mais certo silêncio. Sepulta
a solidão nos mármores gordurosos de balcões tristes
e escuros e esquece o teu próprio nome, preferindo-lhe
a serenidade de um vagaroso declínio.

Bebe com eles, sabe a cor de seus ternos olhares
praguejantes, e diz às mãos que não passam
de mãos, ao corpo que não passa de corpo.

Manuel de Freitas



21 de dezembro de 2011





























Estou como tu dizias aqui há tempos: "Caiu-me a alma a uma latrina, preciso de um banho por dentro!"
Ega murmurou melancolicamente:
- Essa necessidade de banhos morais está-se tornando com efeito tão frequente!... Devia haver na cidade um estabelecimento para eles.

Eça de Queirós, Os Maias
.
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20 de dezembro de 2011




















escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar


Al Berto, O Medo

18 de dezembro de 2011



LIVRO ANTIGO

violetas secas entre páginas de livros
onde em tempos anunciaram o amargor da noite
e a humidade tremenda das insónias
o mar
o mar ao longe
debruça-se então para o interior do livro
lê qualquer coisa sobre o coração dos líquenes
ou deambula de sílaba em sílaba onde
os dedos se mancham de tinta e no cérebro
ergue-se uma planta de cinza noite adiante
fechou o livro ao amanhecer
era como se tivesse envelhecido séculos
com as violetas
fecha a persiana e adormece

Al Berto, O Medo


17 de dezembro de 2011


















Everlasting Everything

Everything alive must die
Every building built to the sky will fall
Don't try to tell me my
Everlasting love is a lie

Everlasting everything
Oh nothing could mean anything at all

Every wave that hits the shore
Every book that I adore
Gone like a circus, gone like a troubadour
Everlasting love for ever more

Oh I know this might sound sad
But everything goes both good and the bad
It all adds up and you should be glad
Everlasting love is all you have


Jeff Tweedy