Soeiro Pereira Gomes (1909-1949)
As crianças da minha rua
As crianças da minha rua estiveram na praia - e vieram tristes.
- Coitadinhas, têm saudades do mar - disse-me alguém, talvez a pensar no último flirt do seu último veraneio de pessoa bem vivida.
Mas as crianças da minha rua não têm saudades: só eu sei por que estiveram na praia - e vieram tristes.
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A minha rua é suja, esburacada, carcomida de velhice. Não tem passeios, porque ali ninguém passeia , nem nome nas esquinas. Mas chamam-lhe a Rua de Detrás, certamente porque as casas, atarracadas, ficam detrás de vivendas dominadoras, e a gente que nelas mora anda sempre atrás nas passadas da vida.
Rua de gente que trabalha. Em certas horas, é silenciosa e quieta; noutras, movimentada e garrulha. Tem fluxos e refluxos , como as águas do mar. As crianças da minha rua não conheciam o mar, mas adoravam a rua.
Pelas tardes cálidas de Verão, os moradores vinham para a soleira das portas, e ali ficavam a tomar o ar, que é fresco e gratuito, e a contar as novidades velhinhas da sua vida sempre igual.
As crianças - umas raquíticas, outras semi-nuas - vinham também (agora já não vêm) espalhar-se em grupos a brincar. E então a rua convertia-se no mundo encantador da sua imaginação. Havia buracos que eram precipícios; pedras que semelhavam castelos; montes de lixo convertidos em florestas. O mar era o fio de água que escorria pelas valetas; os bocados de madeira flutuavam como barcos, os papéis rasgados transformavam-se em peixes. Até a areia, que o vento arrastava aos montões, era removida, com mil cuidados, nas latas enferrujadas.
Nada faltava às crianças da minha rua. Não: faltava-lhes iodo – dissera aquele senhor que tinha saudades do último flirt.
E , certo dia deste Verão, as crianças da minha rua lá foram para a praia, todas iguais nos seus babeiros de riscado, que mãos caridosas talharam em horas de contrição.
Instalaram-se num recanto da praia, sob olhares vigilantes. De manhã, tomavam banho pela mão dos banheiros. Um, dois ... – a respirar. Depois secavam ao sol o fatinho de algodão azul, colado ao corpo enfezado, a tiritar. De tarde, voltavam para o recanto, em filas, duas a duas, e ficavam a revolver a areia, em grupos silenciosos.
Distante, no extremo da praia, outras crianças brincavam. Meninos que possuíam barcos de corda, peixes de borracha coloridos, baldes caprichosos - um mundo de brinquedos.
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Chegaram há dias. Possuíam um mundo de fantasias, e agora já não olham para o fio de água que escorre pelas valetas, e, nos montes de lixo, as latas e papéis velhos jazem abandonados.
As crianças da minha rua estiveram na praia – e vieram tristes. Mas só eu e elas sabemos porquê.
Soeiro Pereira Gomes, Crónicas