Sandra. Ontem à meia-noite começou a Queima das Fitas na nossa cidade do Sol. E o primeiro número da festa foi a serenata na Sé Velha. Transmitiram-na pela TV e eu ouvi-a até ao fim. Mas a certa altura e de súbito a imagem de todo o largo coalhado de gente recuou um pouco para uma outra imagem antiga se lhe sobrepor. Havias tu agora nessa imagem e eu soube porquê. Estávamos no pátio da Universidade e a agitação da festa chegava até lá. Irreprimivelmente então eu perguntei-te e se fôssemostambém ouvir? Ficaste em silêncio e eu pensei que ias ceder. Vou-te buscar à hora a casa e é só descer a rua do Norte para chegarmos ao largo. Foi quando me fitaste com o teu olhar triste e um pouco crispado — achas que isso tem algum sentido? (...) Mas ontem à meia-noite convidei-te outra vez e tu vieste. Tenho todo o teu destino na minha mão para o ter quando o não tiver. Se fôssemos ouvir? e tomo-te a mão e tu vens. Olho de novo aquela massa de gente e estamos lá. Nas escadas da Sé, escalonados pelo degraus, estão rapazes e raparigas de que só se vêem os rostos em destaque no traje preto de estudantes. E ao alto, os que irão cantar e tocar — se nos sentássemos num degrau? mas tu preferes o largo coalhado de gente onde a música ressoa com maior amplidão. Subitamente retine a todo o espaço do largo um timbre de guitarra. E logo o silêncio se estendeu por toda aquela massa humana. Tomo a tua mão, os dedos entrelaçados, e escuto. Escutamos os dois, unidos como dizer-te? na transcendência de nós, na transfiguração de tudo o que pensássemos, numa legenda antiquíssima que nos levasse consigo. O céu estava limpo e viam-se as estrelas. Toda a iluminação do largo tinha sido apagada e viam-se melhor assim. E havia em nós um movimento alado para nos dissiparmos entre elas. Apertei-te a mão e tu apertaste a minha e eu tive a evidência de que nada nos podia separar. Agora um estudante cantava uma balada— «morrer é passar um dia todo inteiro sem te ver». Como é triste pensá-lo. Sem te ver.
Vergílio Ferreira, Cartas a Sandra